Na época das fake news, na época da mentira com seu relativismo, subjetivismo, utilitarismo e hedonismo... a verdade ainda tem lugar? Como fica com a verdade máxima que é Deus, seus propósitos, seus desígnios e seus valores? Como fica com a verdade das virtudes teologais da fé, da esperança e do
amor? Como fica com a verdade divina sobre a criação e nela a verdade sobre a humanidade? Como fica com a verdade sobre a realidade do ser humano como “imagem e semelhança” do próprio Deus? Como fica com a verdade sobre as virtudes humanas da sinceridade, da honestidade, da justiça, da
solidariedade? Como fica com a verdade da convivência social construída na paz?
A verdade de Deus, da humanidade e da criação, precisa, mais do que nunca, ser encarada: enquanto seres humanos somente somos tais se formos verdadeiros, se encaramos a verdade “nua e crua”. O Verdadeiro “nu e cru” continua falando a sua verdade. Mas, é possível encarar a verdade assim como ela é: “nua e crua”? É possível encarar “nua e cruamente” a verdade sobre Deus, sobre a humanidade, sobre a criação? É possível acolher Jesus de Nazaré, o “Verbo feito Carne”, que irrompeu e irrompe em si mesmo a VERDADE segura, fazendo-se o Caminho certo e a Vida plena?
Existe um conto popular, sua autoria computa-se a um rabino judeu (o tempo se encarregou de torná-lo desconhecido), que reza assim: “Um dia, a Verdade andava visitando os humanos, sem roupas, tão nua e crua como seu nome (como ela é). E todos que a viam viravam-lhe as costas, de medo ou de vergonha, e ninguém lhe dava as boas vindas. Assim, a Verdade percorria os confins da terra, rejeitada e desprezada. Uma tarde, muito desconsolada e triste, a Verdade encontrou a Mentira, que passeava alegremente, num traje belo e muito colorido. – ‘Verdade, por que estás tão abatida?’ - perguntou a Mentira. – ‘Porque devo ser muito nua e crua – sem adornos e sem apetite, já que os humanos me evitam tanto!’ – respondeu a Verdade. – ‘Que disparate!’ - riu a Mentira. – ‘Por isso que os humanos te evitam: é tua nudez e crueza. Toma, veste algumas das minhas roupas e vê o que acontece’. Então, a Verdade pôs algumas das lindas vestes da Mentira e, de repente, por toda parte onde passava, era bem vinda e acolhida. Conclusão: ‘Pois a verdade é que os humanos não gostam de encarar a Verdade “nua e crua”... Eles a preferem ‘disfarçada – toda adornada e apetitosa’”.
A verdade “disfarçada”, toda adornada e apetitosa, não nos traz a verdade “verdadeira”, que é e continua sendo sempre “nua e crua”. Até podemos acolhê-la e apresentá-la “disfarçadamente”, mas não mudará sua essência de ser “nua e crua”. O certo é que com essa essência de “nudez e crueza” que a verdade opera libertação. Sim, é isso que Aquele que se autodenominou de a Verdade (“Eu sou o Caminho, a VERDADE e a Vida”) afirmou: “A verdade vos libertará”, pois toda a mentira, por mais adornada e apetitosa que se apresenta, ela escraviza.
Neste tempo pandêmico em que estamos vivendo, de uma forma e outra, ele nos está ajudando a encarar a verdade “nua e crua” libertadora e que não é “disfarçada” – com adornos ilusórios e apetites enganosos. Estamos mais confinados em nossas casas e tendo, de repente, mais tempo para distinguir a verdade “nua e crua” da mentira “adornada de ilusões e apetitosa de enganos”. Mais tempo para encarar a verdade “nua e crua” sobre Deus - Ele é o Criador eterno, início, fim e sentido de tudo; mais tempo para encarar a verdade “nua e crua” sobre a humanidade – ela é a mais digna e sagrada criatura, criada “à imagem e semelhança do próprio Criador”; mais tempo para encarar a verdade “nua e crua” sobre toda a criação – ela existe para manifestar um eterno louvor ao Criador sobre os nossos cuidados.
Verdade “nua e crua”, encarando-a, deixamos Deus nos plenificar, forjamos a humanidade ser feliz e cuidamos da criação como nossa “casa comum”. Se a humanidade sempre encarasse a verdade “nua e crua”, não escutando a voz da mentira “adornada e apetitosa, a “nahhás” - “serpente” não teria
lugar e o “héden” - “paraíso” seria a nossa realidade.
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas