Viveremos uma Semana Santa diferente: teremos tempo, com o isolamento social por causa do novo coronavírus, para irmos mais a fundo no mistério do alimento verdadeiramente saciável – quinta-feira santa, do mistério do sentido da cruz – sexta-feira santa, e do mistério da plenitude da vida – sábado santo.
Alimentar-se sempre envolve morte. O animal pequeno sempre morre para que o animal grande possa viver. Essa é a lógica da cadeia alimentar: peixe grande como peixe pequeno, para o desgosto do peixe pequeno. Mas no caso de Cristo, o “Peixe grande” livremente morre a fim de oferecer-se a Si mesmo como alimento a nós, peixes pequenos. Exatamente quando o “Peixe grande” aparece e nós pensamos que estamos prestes a sermos engolidos vivos, Ele diz: “Não! Vocês entenderam tudo errado. Eu quero que vocês comam a Mim. Verdadeiramente, eu desejo alimentar-vos, não comer vocês. Abandonai vossa incredulidade. Tende fé e vivam. Alarguem a boca para que eu a encha”.
Toda a missão de Cristo é salvar-nos da mentira de que a satisfação de nossa fome fundamental depende de nós. E a que ponto Ele chega! “Vocês não acreditam no ‘dom’ de Deus?”, Cristo pergunta. “Isto é o meu corpo entregue por vós; isto é o meu sangue derramado por vós. E sua carne é verdadeira comida; seu sangue é verdadeira bebida” (cf. Jo 6,55). Cristo vem como o mais fino trigo para ser “triturado” e “transformado em pão” a fim de que nos alimentemos até ficarmos saciados. Ele vem como as mais suculentas uvas para serem “esmagadas no lagar” a fim de que possamos beber do seu dom até ficamos embriagados. “Aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede” (Jo 6,35). Essa é a promessa de Cristo! Quanto mais, em nossos corações, dermos valor à promessa de Cristo, menos inclinados seremos a buscar a própria satisfação longe de Deus e de seu plano para nós.
Na cruz, Cristo encarou a fome, o medo e a pobreza humana face a face, sentiu isso “até a morte” e se recusou a buscar a própria satisfação separada da Providência do Pai. Cristo “permaneceu na cruz” e manteve a fé no “dom da cruz”. Ele aceitou completamente a pobreza desprezível da condição humana e sua total e absoluta dependência do Deus-Pai em meio à piores ofensas imagináveis das tentações de agarrar-se à “satisfação e de aliviar sua “cruz”. “Não”, disse Ele. “Não irei negar a minha postura de receptividade diante do meu Pai. Não irei agarrar nada para alimentar a minha fome. Eu sei Quem meu Pai é, e, meu alimento é fazer Sua vontade. Eu confiarei. Eu não O colocarei à prova. Eu não descerei dessa cruz. Adorarei a Ele e somente a Ele. Pois Ele é ‘minha herança e minha taça’; somente Ele me dará a recompensa. Ele não demorará a satisfazer os desejos do meu coração. ‘Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito’. Em tuas mãos, eu deposito a satisfação dos meus desejos”.
São João Paulo II, certa vez, escreveu: “Se houvesse faltado aquela agonia na Cruz, a verdade que Deus é amor ficaria por se demonstrar”. Esse amor de Deus demonstrado levou a vida plena para a humanidade pela vitória da ressureição.
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas