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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
02.04.2014 | 11:55 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
A Capelania da UCPel dá seguimento nesta semana à proposta de reflexão de textos disponibilizados na página eletrônica da Universidade. Com base na temática da Campanha da Fraternidade 2014, Fraternidade e Tráfico Humano, o primeiro texto de hoje complementa a reflexão da semana passada, acerca do acordo internacional firmado entre líderes de diversas instituições, com o propósito de cessar esta chaga do mundo contemporâneo.

Em seguida, oferecemos um artigo publicado no sítio do Ministério das Relações Exteriores e reproduzido pelo Instituto Humanitas (IHU) da Unisinos, no qual Marcos Vinícius A. Vieira, sociólogo, traz alguns dados estatísticos sobre esta terceira atividade criminosa mais rentável do mundo, o tráfico de pessoas. No artigo, o autor aponta questões teológicas que deveriam ser abordadas e discutidas pela Igreja no âmbito da sexualidade.

Ao disponibilizar periodicamente artigos que nos instigam a refletir, manifestamos a nossa disposição de contribuir para o amadurecimento da fé cristã/católica, o que coincide com um dos objetivos expressos nas Linhas Gerais de Atuação da Capelania.

Desejamos a todos/todas uma boa leitura e reflexão! 

Cristãos e muçulmanos juntos contra o tráfico de seres humanos

É o primeiro acordo entre cristãos e muçulmanos não para dirimir conflitos de fé ou para exaltar genericamente a paz e a justiça, mas sim para combater conjuntamente a grande vergonha escondida da sociedade globalizada: o comércio de seres humanos e a sua redução em novas formas de escravidão. O compromisso, anunciado oficialmente no dia 17 de março, viu unidos o Papa Francisco, o grande imã da mesquita de Al Azhar el-Tayeb e o primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby, juntamente com o responsável da Free Walk Foundation, Andrew Forrest.

A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 20-03-2014. [E A tradução é de Moisés Sbardelotto].

"Toda forma de indiferença com relação às vítimas de exploração deve cessar. Convidamos todos os fiéis e os seus líderes, todos os governos e as pessoas de boa vontade a aderirem ao movimento contra a escravidão moderna e o tráfico de seres humanos" está escrito no memorando de entendimento que cria a Global Freedom Network e que, em nome do Vaticano, foi assinado pelo chanceler da Pontifícia Academia das Ciências, Dom Sánchez Sorondo.

As armas serão a oração, o jejum e a caridade, mas também um intenso trabalho de pressão sobre os governos e as multinacionais, para que os circuitos de "aproveitamento e investimento excluam formas de escravidão modernas" e para que o G20 adote iniciativas concretas contra o tráfico e a escravidão.

Ao mesmo tempo, a Igreja Católica, a Comunhão Anglicana e a mesquita de Al Azhar (o chamado Vaticano sunita) se comprometem a sensibilizar sobre a questão os seus próprios movimentos, para que não sejam ignoradas as vítimas desse fenômeno sistematicamente removido da opinião pública.

Para o Papa Francisco, trata-se de um ponto crucial da "questão social" do século XXI. Já era quando ele dirigia a diocese de Buenos Aires e ainda é mais desde que ele se tornou papa, como está bem ilustrado no seu documento programático Evangelii gaudium. Para o papa argentino, não se trata de falar genericamente de "pobres... caridade... assistência... bom coração", mas sim de enfrentar um nó muito concreto da globalização.

Entre 20 e 30 milhões de homens, mulheres e crianças – segundo as diversas estimativas – são objeto de tráfico e de exploração econômica e sexual. Não se trata de resíduos sociais de distantes sociedades primitivas. É no coração da modernidade globalizada que os novos escravos arrastam a sua existência.

O volume de negócios desse comércio transnacional, afirma o jornal Avvenire, é de 30 bilhões de dólares por ano. Metade dos lucros são realizados na América Latina. Para aqueles que fingem não saber, existem os casos concretos da Itália. Os coletores de Rosario, por exemplo, os trabalhadores das fábricas clandestinas chinesas de Prato, os trabalhadores têxteis bengaleses das fazendas fantasmas da Campania.

Fala-se a respeito por 24 horas quando acontece uma desgraça e depois se finge que nada aconteceu. "O Papa Francisco quer que o tráfico de seres humanos e a nova escravidão seja declarada crime contra a humanidade", diz Dom Sánchez Sorondo, que, na Pontifícia Academia das Ciências (que reúne notoriamente cientistas de todas as fés e até mesmo ateus militantes), organizou em novembro um simpósio internacional sobre o problema.

Mas aqui se desencadeia um fenômeno interessante. Aplauso universal na mídia quando Francisco fala de comunhão aos divorciados em segunda união ou da nomeação de mulheres para cargos importantes, e silêncio persistente quando o pontífice toca as chagas do atual mecanismo econômico-financeiro. O papa, no entanto, insiste.

Quem pegou o bastão nesta quaresma foi a Comunidade Giovanni XXIII (fundada pelo padre Benzi) que organiza nesta sexta-feira, em Roma, a partir da Praça Santi Apostoli, uma Via Sacra pelas "mulheres crucificadas": vítimas internacionais do tráfico que as encaminha para a prostituição.

Dois terços dos "novos escravos", de fato, são mulheres, e um em cada cinco é uma criança. Marcharão juntos a Cáritas, neopentecostais da Renovação no Espírito, Santo Egídio, neocatecumenais, as irmãs da União das Superioras Gerais da Itália (USMI, na sigla em italiano) e muitos outros grupos. Um pequeno concílio para não fingir que nada acontece.



Tráfico de pessoas: a indiferença, o fetichismo do dinheiro e o prazer ambivalente

"Apesar da seriedade da questão, o tráfico de pessoas é ainda tema pouco conhecido e debatido na sociedade brasileira. É verdade que, em 2013, a Rede Globo trouxe à tona, em novela, a situação de mulheres brasileiras no exterior, vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Do mesmo modo, em 2006, o Governo Federal lançou Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto nº 5.948, de 26 de outubro, como ponto de partida para o enfrentamento dessa prática criminosa. Apesar disso, ainda prevalece na população certa ingenuidade a respeito não somente das raízes dessa chaga social, como também das formas de erradicá-la. Seguramente, uma das principais razões disso é a indiferença em torno do assunto", escreve Marcos Vinícios de Araujo Vieira, Sociólogo, em artigo publicado no sítio do Ministério das Relações Exteriores, 07-03-2014.

Eis o artigo.

Neste ano, a CNBB escolheu como tema da Campanha da Fraternidade a silenciosa, porém gravíssima e desafiante, questão do tráfico de pessoas. O lema, que faz alusão à Carta de Paulo dirigida à comunidade dos Gálatas, chama a atenção para a vocação humana para a liberdade: "É para a liberdade que Cristo nos libertou". A relação entre o tema da Campanha e seu lema é eloquente: o tráfico de pessoas constitui umas das versões modernas de escravidão.

Apesar da seriedade da questão, o tráfico de pessoas é ainda tema pouco conhecido e debatido na sociedade brasileira. É verdade que, em 2013, a Rede Globo trouxe à tona, em novela, a situação de mulheres brasileiras no exterior, vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Do mesmo modo, em 2006, o Governo Federal lançou Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto nº 5.948, de 26 de outubro, como ponto de partida para o enfrentamento dessa prática criminosa. Apesar disso, ainda prevalece na população certa ingenuidade a respeito não somente das raízes dessa chaga social, como também das formas de erradicá-la. Seguramente, uma das principais razões disso é a indiferença em torno do assunto.

Nessa matéria, superar a indiferença é importante, porém insuficiente. Tampouco bastam campanhas de informação. Nessa Quaresma, tempo de conversão, somos convidados a ir mais longe. É urgente meditarmos sobre o tráfico de pessoas como pecado social, que nos desumaniza a todos e crucifica milhões de pessoas, bem como refletirmos sobre as causas desse esquema criminoso, tendo sempre em vista uma ação pastoral que vise à sua erradicação.

Nessa reflexão, importa ter em conta, com base em perspectiva realista, que o tráfico de pessoas é a terceira atividade criminosa mais rentável do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e drogas; faz cerca de 2,5 milhões de vítimas no mundo, movimentando, aproximadamente, 32 bilhões de dólares por ano, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC); compreende um crime organizado transnacional, vinculado a interesses poderosíssimos em três campos diversos: a exploração de mão-de-obra escrava, a exploração sexual comercial e a comercialização de órgãos humanos; as principais vítimas pertencem aos grupos mais vulneráveis: migrantes, mulheres, crianças e adolescentes, procedentes de regiões marcadas pela pobreza, instabilidade política e desigualdade econômica; os empresários do tráfico de pessoas compreendem aliciadores e agenciadores que integram uma rede complexa e articulada que envolve inúmeras pessoas e instituições; o Brasil, país de origem, trânsito e destino desta prática criminosa, é responsável por 15% das pessoas exportadas da América Latina para a Europa.

À luz da fé cristã, que prima pela dignidade da pessoa humana e assume projeto de vida libertador, não podemos ficar indiferentes aos motivos profundos desse crime. Cabe assinalar que o tráfico de pessoas revela uma crise antropológica de nosso tempo, caracterizado, nas palavras do Papa Francisco, pela negação da primazia do ser humano. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Bispo de Roma afirma que se vive hoje o fetichismo do dinheiro sob a ditadura de uma economia sem orientação antropológica que reduz o ser humano ao consumo e que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios de poucos (EG, 53-60). O caso do tráfico de pessoas é emblemático desse fetichismo, uma vez que corpos de milhões de pessoas são reduzidos à condição de meras mercadorias, objeto de lucro e prazer. O tráfico de pessoas e a ideologia da mercantilização andam, portanto, de mãos dadas.

Nessas condições, resultaria ingênuo acreditar que o enfrentamento policial e de inteligência seria suficiente para erradicar essa lucrativa e complexa atividade criminosa. Não basta repressão. É imprescindível também um trabalho consistente de prevenção das causas do tráfico de pessoas. Não se pode falar em combate ao tráfico de pessoas sem incluir o combate à desigualdade socioeconômica, sem questionar a cultura consumista responsável pela globalização da indiferença, sem nos atentar para a questão do prazer na sociedade contemporânea.

Tendo em vista o preconceito que as vítimas de tráfico de pessoas sofrem em razão de uma moralidade desumanizadora ainda em voga (daí se falar da dupla penalização da vítima desse crime que, em vez de encontrar compaixão na sociedade, é responsabilizada pela sua própria desgraça), caberia à Igreja assumir o papel de "hospital de campanha após a batalha", como desejada pelo Papa Francisco. Nesse sentido, a Igreja é desafiada a promover ações pastorais destinadas a acolher, com espírito misericordioso e terno, as vítimas do tráfico de pessoas.

Mais importante, a Igreja é mais do que nunca interpelada a refletir sobre uma teologia do prazer sexual humanizante que se contraponha à ideologia mundana do prazer sexual alienante. Parece cada vez mais evidente que o prazer tem sido tratado de maneira ambivalente em nossa cultura atual. Essa ambivalência, que confunde os aspectos humanizantes e alienantes do prazer, arrisco-me a dizer, se deve, entre outros motivos, a séculos de tradição religiosa de natureza maniqueísta, desencarnada, agnóstica, baseada em dualidade antropológica radical que opõe espírito e corpo. Não surpreende que, na sociedade atual, onde não se admite a incompreensível e infantil condenação do prazer sexual pela religião, a mercantilização do sexo, o signo da cultura capitalista, encontrou espaço propício para sua reprodução. Urge, portanto, resgatar a dimensão positiva da sexualidade, lamentavelmente ainda hoje colocada sob suspeita pela moralidade, bem como superar a resistência histórica da Igreja em discutir amplamente esse tema tão fundamental para a maturidade psicoafetiva, física e espiritual das pessoas.

A Campanha da Fraternidade de 2014 é oportunidade, portanto, de abordarmos com discernimento questões sérias que afetam dimensões fundamentais da sociedade contemporânea. É ocasião, por fim, para nos libertarmos da cultura perversa que se encontra por trás da ditadura de uma economia sem orientação antropológica.


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