/ Notícias / [Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
30.11.2015 | 17:30 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
No dia 16 de novembro,  completeram-se 50 anos do Pacto das Catacumbas, realizado durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) onde um grupo de bispos, principalmente da América Latina, liderados por Helder Câmara, se reuniu periodicamente para refletir sobre o lema da Igreja dos pobres que João XXIII tinha proposto para o Concílio. Eles eram motivados a isso por um desejo de fidelidade a Jesus pobre de Nazaré.  Inicialmente 40 bispos participaram da Celebração Eucarística e assumiram o compromisso com uma Igreja pobre e servidora. Posteriormente outros 500 bispos do Concílio foram signatários. 

A Capelania buscando contribuir com uma fé amadurecida e com a reflexão pastoral, oferece primeiramente, uma reportagem de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire e reproduzida pelo portal IHU, com o título “Pacto das Catacumbas: 50 anos do compromisso com uma Igreja pobre”.

Em seguida disponibilizamos o artigo de Víctor Codina, sj “O Papa Francisco, uma revolução da misericórdia” que traz presente o Ano da Misericórdia anunciado pelo Papa Francisco. 

Por ultimo apresentamos  um artigo que traz presente a motivação e compromissos assumidos no  Pacto das Catacumbas, onde um dos signatários e propositores foi Dom Hélder Câmara, que dá nome ao Centro de Direitos Humanos da UCPel. 



Pacto das Catacumbas: 50 anos do compromisso com uma Igreja pobre

 
Eram cerca de 40, no início, dos mais de 2.000 bispos que se reuniram em Roma para o Concílio Vaticano II. Em poucos anos, chegaram a superar os 500. Hoje, a sua sensibilidade é assumida pelo Papa Francisco, do qual – ele o disse no dia 16 de março de 2013, sendo pontífice há algumas horas – passaram para a história estas palavras: "Ah, como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres". Bergoglio evocava assim aquele "Pacto das Catacumbas", que cerca de 40 bispos de todo o mundo assinaram no dia 16 de novembro de 50 anos atrás, em Roma, nas catacumbas de Santa Domitila.

A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire, 07-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O "Pacto" foi documento desconhecido para a maioria das pessoas, em que prelados de todo o mundo se comprometiam a viver ao lado e em nome dos pobres, com uma série de indicações precisas e meticulosas. Entre os signatários, nomes conhecidos como Dom Hélder Câmara, arcebispo de Recife (Brasil); o arcebispo de Nazaré, Hakim; Máximo IV, patriarca de Antioquia; Leonidas Proaño, bispo de Riobamba(Equador), famoso pela sua defesa dos camponeses; Enrique Angelelli, auxiliar de Córdoba (Argentina), morto como bispo de La Rioja, durante a ditadura e ponto de referência para o então padre Jorge Mario Bergoglio; o bispo de Tournai (Bélgica), Charles-Marie Himmer, que fez a homilia naquele dia.

Alguns ainda estão vivos: o então bispo auxiliar de Bolonha, Luigi Bettazzi, depois bispo de Ivrea, e José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, Brasil. Era diversificada a origem dos signatários: China, Coreia do Sul, Zâmbia, Djibouti, Indonésia, Argélia, Cuba, a então Iugoslávia, Canadá, França, Grécia, Espanha e outros. Nenhum prelado dos EUA. Uma curiosidade: o primeiro a dar notícia desse Pacto foi o secularíssimo jornal Le Monde, no dia 8 de dezembro de 1965, dia de encerramento do Concílio.

A 50 anos daquele evento, multiplicam-se os compromissos para celebrar o Pacto. No próximo sábado, está previsto na Urbaniana de Roma um congresso com Jon Sobrino, teólogo e ex-colaborador de Óscar Romero (outro que assinou, como bispo, o Pacto), o historiador Alberto Melloni, o bispo Bettazzi, o cardeal Roger Etchegaray.

Na ocasião, será apresentado o livro Il Patto delle Catacombe. La missione dei poveri nella Chiesa (Emi), disponível em várias línguas, com textos, dentre outros, de Bettazzi, Sobrino, Piero Coda e Stephen Bevans.

Além disso, no dia 16 de novembro, em Nápoles, nas catacumbas de San Gennaro, algumas personalidades eclesiais (Alex Zanotelli, Raffaele Nogaro, Luigi Ciotti, Virginio Colmegna e outros) vão se encontrar para assinar um novo Pacto (disponível aqui), que combina a sensibilidade conciliar com os novos desafios de hoje, particularmente no plano ambiental.

Mas como se tinha chegado àquele texto? Dom Câmara faz memória disso no livro Roma, due del mattino. Lettere dal Concilio Vaticano II (San Paolo). Na circular do dia 30 de novembro, o famoso "bispinho", conta: "Lembram-se que na casa de Paul Gauthier [jesuíta] tinha sido programado um compromisso que devia ser assumido livremente pelos Padres conciliares que celebrariam nas catacumbas? As concelebrações multiplicam, e todos os Padres receberam essa folha mimeografada".

E lá Câmara transcreve essa página mimeografado que a história transmitiu justamente como Pacto das Catacumbas, assinado "na penumbra da noite", no dia 16 de novembro de meio século atrás (como lembrou o site Crux, do Boston Globe), em que os prelados, "iluminados sobre as falhas da nossa vida de pobreza segundo o Evangelho", se comprometiam em 12 pontos com uma" Igreja pobre e para os pobres".

Em síntese: "Viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue (…). Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (…) Nem ouro nem prata. Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc. (…). Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico (…). Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre".

Eram elencados outros aspectos para construir uma Igreja mais próxima dos pobres, "cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas": os signatários se comprometiam a dar "tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos", "procuraremos transformar as obras de 'beneficência' em obras sociais baseadas na caridade e na justiça", "evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas".

Quem estimulou o Pacto foi especialmente o Grupo da Pobreza, uma parceria entre bispos conciliares, que incluía o Patriarca Máximo IV, o cardeal Giacomo Lercaro, de Bolonha, Georges Haddad, auxiliar de Beirute, Georges Mercier, bispo de Laghout (Argélia), prelado da diocese de Charles de Foucauld.

Mercier foi protagonista de uma resposta realmente positiva por parte de Paulo VI, a respeito de uma carta enviada por ele ao papa em agosto de 1963. Tema: a demanda de que o tema da pobreza fosse inserido transversalmente no Concílio. "Eu sabia que Mercier, durante uma audiência em Castel Gandolfo – anota Câmara –, quando tinha se apresentado como o bispo do Saara, tivera a surpresa de ouvir do papa: 'Recebi a sua carta. Abençoo com todo o coração o trabalho do Grupo da Pobreza. Diga isso aos seus amigos'".

Nota da IHU On-Line:
As Edições Paulinas estão publicando o livro Pacto das Catacumbas. Por uma Igreja servidora e pobre de José Oscar Beozzo.

O livro pode ser usado como subsídio para uma oração ou vigília em torno do Pacto e também em memória de D. Enrico Agelelli, bispo de La Rioja, que assinou e foi assassinado pelos militares da Argentina.

O livro, em pdf, pode ser acessado neste link.

 

O Papa Francisco, uma revolução da misericórdia

(Víctor Codina, sj)


“O tema da misericórdia não é novo. A novidade consiste em que Francisco o converteu na chave do seu pontificado, no ponto álgido da hierarquia das verdades cristãs, no centro do anúncio evangélico.”

A reflexão é de Víctor Codina e publicada por Vida Pastoral e reproduzida por Religión Digital, 06-11-2015. A tradução é de André Langer.

Víctor Codina é padre jesuíta espanhol radicado desde 1982 na Bolívia. Estudou Filosofia e Teologia em Sant Cugat e em Innsbruck. Fez o doutorado em Teologia na Universidade Gregoriana de Roma e de Teologia Ortodoxa em Paris. Participou como teólogo da Conferência Episcopal Boliviana e na IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo (1992). Atualmente é professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Boliviana de Cochabamba. Seu trabalho pastoral centra-se nas comunidades de base e setores populares. Seus livros mais recentes são: ‘Não extingais o Espírito(1Ts 5,19). Iniciação à Pneumatologia. São Paulo: Paulinas, 2010; Una Iglesia Nazarena. Santander: Sal Terrae, 2010; Diario de un teólogo del posconcilio. Bogotá: San Pablo, 2013.

Eis o artigo.

Um livro recomendável
Curiosa e estranhamente, Francisco, em uma das suas primeiras aparições para o Angelus dominical, recomendou o livro do cardeal Walter Kasper sobre a misericórdia. Poucos dias depois, o livro se esgotou em todas as livrarias. Mais tarde, soube-se que o cardeal Bergoglio, durante o conclave que precedeu a sua eleição papal, lia este livro de Kasper, com quem tem uma grande sintonia, como reconheceu o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.

Como jesuíta, Bergoglio estava familiarizado com o colóquio da misericórdia diante do Cristo crucificado que “de Criador veio a fazer-se homem e de vida eterna a morte temporal e assim a morrer por meus pecados”, como Inácio de Loyola propõe no final da meditação dos pecados nos Exercícios Espirituais (EE 53). Quando Bergoglio foi eleito bispo escolheu como lema em seu escudo a frase Miserando et eligendo – Olhando-me com misericórdia, escolheu-me –, uma paráfrase de Beda o Venerável ao Evangelho de Mateus sobre a vocação de Mateus-Levi, o arrecadador de impostos (Mt 9, 9-13). Francisco sempre pede que rezem por ele e ele se apresenta como um homem perdoando. No dia 11 de abril de 2015, Francisco convocou o Jubileu extraordinário da misericórdia que começará no dia 08 de dezembro de 2015, aos 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II.

O que podemos deduzir desta convergência de dados? Que existe, certamente, uma especial sensibilidade de Francisco com o tema da misericórdia.

Uma novidade revolucionária
Já João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II, disse que a Igreja preferia usar o remédio da misericórdia mais que a severidade e a condenação. Paulo VI, no encerramento do Concílio, afirmou que a espiritualidade do Vaticano II era a dom bom samaritano. João Paulo II, em 1980, escreveu uma bela encíclica sobre a misericórdia (Dives in misericordia [Rico em misericórdia]), inspirada em parte pela mística polonesa Faustina Kowalska. Bento XVI, em Deus é amor (2005), também aprofundou este tema.

O tema não é, portanto, novo. A novidade consiste em que Francisco o converteu na chave do seu pontificado, no ponto álgido da hierarquia das verdades cristãs, no centro do anúncio evangélico. Francisco não parte de um método dedutivo, de cima para baixo, mas de uma realidade que é superior à ideia (EG 231-233), uma realidade dolorosa, carregada de pecado e injustiça, de vítimas e pobres que clamam. Diante desta realidade, Francisco não responde com dogmas e doutrinas teológicas abstratas, mas com ternura e misericórdia, com a pastoral do abraço. Não é o doutor que ensina da sua cátedra magisterial, mas o pastor que vai em busca da ovelha desgarrada, que cheira a ovelha.

Seus gestos simbólicos de abraçar crianças, doentes, deficientes, anciãos, pessoas privadas de liberdade, emigrantes africanos, sua viagem a Lampedusa, sua afirmação de que o sacramento da Reconciliação deve ser uma experiência da misericórdia do Pai e não um castigo e que o pedido dos sacramentos não pode converter-se em uma alfândega... sua exortação A Alegria do Evangelho, a encíclica Laudato si’, a proclamação do Júbilo da misericórdia (Misericordiae vultus)... são manifestações desta revolução da misericórdia, da sua ternura e compaixão diante do sofrimento do povo e das ameaças à nossa casa comum.

Da revolução à revelação
Esta revolução de Francisco não é uma inovação ou uma invenção sua, mas que nasce da revelação bíblica.

O Deus do Antigo Testamento não é simplesmente o Deus iracundo e vingativo, mas que progressivamente se revela como um Deus que ouve o clamor do seu povo e desce para libertá-lo (Ex 3, 7), um Deus clemente e misericordioso (Ex 34, 6), o Deus que caminha e está junto com o povo (Ex 3, 14), que perdoa culpas, liberta os cativos e cura os corações aflitos. O coração de Deus se contorce diante do sofrimento de seu povo, suas entranhas se comovem (Os 11, 8). É uma misericórdia que, como aparece nos profetas, está ligada à opção pelos pobres e pela vida.

Não é uma graça barata; é a expressão da justiça divina que condena o pecado, mas salva o pecador, é uma justiça criadora, que ultrapassa o castigo. Os Salmos expressam a confiança de Israel neste Deus clemente e misericordioso (Sl 103, 8; 111, 4; 145, 8; 86, 15; ...).

Este Javé do Antigo Testamento é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que Jesus nos revela com sua vida e ensinamento. Jesus é o rosto misericordioso do Pai: come com os pecadores (Mc 2, 13-17), sente que as entranhas se comovem diante dos doentes (Mt 14, 14; Mc 1, 41), diante da viúva de Naim (Lc 7, 13), diante do povo com fome (Mt 25, 32) que vaga errante como ovelhas sem pastor (Mc 6, 34). Suas parábolas do bom samaritano (Lc 10, 25-31) e do filho pródigo (Lc 15, 11-32) mostram a centralidade da misericórdia no Evangelho do Reino. Devemos ser compassivos e misericordiosos como o Pai (Lc 6, 36). Jesus se identifica com os marginalizados e os últimos e os constitui em juízes escatológicos da história (Mt 25, 31-46).

Esta teologia narrativa da misericórdia, própria dos Evangelhos sinóticos, aprofunda-se nos escritos paulinos e joânicos. A misericórdia é o maior atributo divino (Ef 2, 4; 2Cor 1, 3; 1 Jo 4, 8), é sua essência que se manifesta em relação ao mundo, é a palavra chave do agir de Deus conosco.

Diante da imperturbabilidade e impassibilidade dos deuses gregos do Olimpo, as entranhas do Deus trinitário se comovem diante da dor do povo, compadece-se de seu pecado, está sempre disposto a perdoar e curar. Nós nos cansamos de pedir perdão, mas não Deus de nos perdoar (EG 3). A justiça de Deus é sua misericórdia. A misericórdia é o atributo fundamental de Deus e a maior das virtudes, a razão da alegria que o Evangelho suscita em nós (EG 37). Esta revelação existencial da misericórdia do Pai foi, em última instância, o que levou Jesus à morte. Seu coração aberto nos revela seu amor misericordioso até o final (Jo 13, 1; 19, 31-34).

Infelizmente, o tema da misericórdia até há pouco tempo teve um lugar marginal na teologia dos manuais, no catecismo e na pregação. Na própria liturgia invoca-se ordinariamente o Deus onipotente e eterno. Parece que a mentalidade helênica, essencialista, metafísica e abstrata prevaleceu sobre o realismo dinâmico, histórico e existencial semítico, como se Atenas tivesse triunfado sobre Jerusalém. Felizmente, agora se começa a reverter esta situação e se coloca a misericórdia como o núcleo fundamental da essência divina e da revelação cristã.

O escândalo dos fariseus
Os fariseus se escandalizaram com o fato de que Jesus comesse com pecadores e perdoasse seus pecados. As parábolas da misericórdia (Lc 15) e a resposta de Jesus mostram que Deus quer misericórdia e não sacrifícios (Mt 9, 13; 12, 7; cf. Os 6, 6).

Também em nossos dias há aqueles que se escandalizam com esta chave pastoral de Francisco, consideram-na perigosa, contrária aos dogmas, propensa à relaxação, a um laissez-faire, a um cristianismo light... Tudo isso é visto como fruto de um Papa que não é teólogo profissional.

Um exemplo desta atitude é a reação de alguns setores da Igreja que, encabeçados por cardeais, bispos e teólogos, pediram por escrito para que no Sínodo sobre a Família não se concedesse a comunhão aos divorciados recasados, pois isso atentaria contra o dogma da indissolubilidade do matrimônio e da santidade da Igreja.

Diante desta postura farisaica, outras vozes teológicas desfizeram estes falsos argumentos: a indissolubilidade do matrimônio não é um dogma sem exceções, mas o ideal utópico para o qual deve tender gradualmente todo matrimônio cristão; não se parte do acima doutrinal, mas de baixo, da dolorosa realidade de matrimônios fracassados irremediavelmente e de pessoas que desejam refazer suas vidas e para isso necessitam do perdão de Deus e da força da Eucaristia. Deus não é o guardião da lei, mas o Pai misericordioso que vai ao encontro do filho pródigo, abraça-o e prepara-lhe um banquete.

Diante da acusação de que Francisco não é teólogo profissional devemos responder que, como disse Santo Tomás, existem na Igreja duas formas de magistério ou de cátedra: a cátedra ou o magistério pastoral dos bispos (e, portanto, também do Papa) e a cátedra ou o magistério teologal dos teólogos. Ambos os magistérios convergem, mas são diferentes. O Papa não necessita ser um teólogo profissional, mas cabe a ele ser pastor, fiel testemunha da Palavra e da Tradição, e deixar em liberdade os teólogos profissionais para que aprofundem e discutam sobre a fé. Se o Papa é um teólogo profissional existe o risco de querer impor sua teologia a toda a Igreja e de desqualificar como dissidentes os teólogos que defendem pontos de vista diferentes dos seus. Assim, o restauracionismo pré-conciliar que houve (e há) é, no fundo, uma nova forma de farisaísmo...

Uma Igreja misericordiosa
Se a misericórdia é a essência de Deus revelada por Jesus, então a Igreja, formada por todos os batizados, deve seguir as pegadas do Senhor, deve ser clemente, misericordiosa e perdoadora; as entranhas da Igreja devem se comover diante do sofrimento do povo, deve ser uma Igreja pobre e dos pobres, que sai para as periferias em busca da ovelha perdida, que se preocupa com a nossa casa comum. O Espírito do Senhor que preparou e acompanhou a vida e a obra de Jesus é quem agora guia a Igreja para o Reino, um Espírito que age de baixo para cima, do clamor dos últimos (famintos, sedentos, desnudos, doentes, encarcerados, marginalizados...) e nos impulsiona a ser misericordiosos como Jesus e nosso Pai.
 
As consequências práticas desta revolução da misericórdia são imensas: devemos situar o amor e a misericórdia como central na vida cristã, como o mandamento central do cristianismo que nos leva a amar e perdoar os outros, a optar pelos pobres e por nossa casa comum, a Mãe Terra, a lutar pela justiça, a mudar o sistema atual que já não dá mais de si, que exclui grande parte da humanidade e destrói a natureza, a buscar estilos de vida alternativos ao atual paradigma tecnocrático patriarcal e consumista, a mudar a imagem do Deus terrível e juiz policial e converter-nos a um Deus Pai-Mãe cheio de ternura e misericórdia, a abandonar a pastoral do medo, a nos aproximar do sacramento da Reconciliação como um espaço de misericórdia e não de tortura, a atualizar as obras de misericórdia descritas em Mateus 25, 31-46 com reformas estruturais, a nos aproximar dos lugares de sofrimento e dor: migrantes e refugiados, indígenas, camponeses, bairros periféricos, mulheres abandonadas, doentes, idosos, prostitutas, crianças de rua, drogados, inválidos, creches, cárceres...

Maria, Mãe da misericórdia
Se Maria é figura e ícone da Igreja (LG VIII), se tudo o que se afirma biblicamente da Igreja puder ser afirmado de Maria (EG 285), o ícone e arquétipo da Igreja misericórdia é Maria, rainha e mãe de misericórdia, como rezamos na Salve Rainha, uma mãe cujos olhos misericordiosos nos mostram Jesus, bendito fruto de seu ventre.

Mais ainda, A alegria do Evangelho nos fala de um estilo mariano de evangelização, centrado na revolução da misericórdia, da ternura e do carinho (EG 288). Maria (na invocação de Guadalupe), disse a Juan Diego para que não se perturbe, que ela é sua mãe que está com ele (EG 287), Maria é a mãe que está junto dos seus filhos, é a Mãe que, nas diversas invocações marianas ligadas aos santuários, compartilha a história de cada povo e passa a fazer parte da sua identidade histórica, caminha conosco, luta conosco, derrama incessantemente a proximidade do amor de Deus (EG 286). Na Laudato si’, Maria é a rainha da Criação, a que cuidou de Jesus e que agora cuida com amor e afeto deste mundo ferido e se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo arrasadas pelo poder humano (LS 241).

A modo de síntese
Em síntese, a revolução da misericórdia do Papa Francisco é fruto pastoral da ação do Espírito que age de baixo para cima e que nos revela em Jesus o rosto misericordioso do Pai e em Maria o rosto materno de Deus. Deste modo, torna-se possível que a Igreja não seja uma simples instituição ou uma ONG piedosa, mas se converta em um lar, em uma casa para muitos, em uma mãe para todos os povos, onde possa nascer um mundo novo (EG 288).


Dom Helder e o Pacto das Catacumbas

 
No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, cerca de 40 Padres Conciliares celebraram uma Eucaristia nas catacumbas de Domitila, em Roma, pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus. Após essa celebração, firmaram o "Pacto das Catacumbas" [1].

O documento é um desafio aos "irmãos no Episcopado" a levarem uma "vida de pobreza", uma Igreja "servidora e pobre", como sugeriu o papa João XXIII. Os signatários - dentre eles, muitos brasileiros e latino-americanos, sendo que mais tarde outros também se uniram ao pacto - se comprometiam a viver na pobreza, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. O texto teve forte influência sobre aTeologia da Libertação, que despontaria nos anos seguintes.

Um dos signatários e propositores do Pacto foi Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento é celebrado neste sábado, dia 07.

Eis o texto.

* * * * *

PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

 a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

 a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez oPapa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

 esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;

 suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

 procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;

 mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

AJUDE-NOS DEUS A SERMOS FIÉIS.

Notas:
1. Publicado no livro "Concílio Vaticano II", Vol. V, Quarta Sessão (Vozes, 1966), organizado por Boaventura Kloppenburg (p. 526-528).  

Compartilhe:

Leia Mais
EU FAÇO
A UCPEL.
E VOCÊ?