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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
17.06.2015 | 17:48 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Neste mês, a Capelania priorizou em seu projeto de convite à reflexão o eixo “Igreja e Reflexões Pastorais”. Dando sequência ao tema da beatificação de Romero, oferecemos primeiramente um artigo que o aborda como símbolo de uma Igreja próxima dos pobres. A reportagem foi  publicada por Religión Digital, em 20 de maio de 2015.

Em seguida, apresentamos um excerto do capítulo 1, "Perfil espiritual e apostólico de monsenõr Romero”, tópico 1.1.3  “A conversão de Romero”, e o capítulo 2, tópico “Dimensões presentes nas homilias de Romero,  disponibilizado pelo Pe.Rogério Mosimann da Silva, ao Convite à Reflexão. O texto compõe a Tese de Doutorado “SEMPRE O BEM DOS POBRES: O pastor Oscar Romero, o teólogo Jon Sobrino e o povo salvadoreño (um tríptico eclesial e sua totalidade para o século XXI).

Por último, oferecemos o artigo selecionado do IHU sobre a beatificação do bispo mártir de El Salvador, que faz uma análise do ponto de vista intra-eclesial a partir do que este fato representa na história da Igreja Latino-americana. 

Que os artigos disponibilizados nos ajudem sempre mais na compreensão e vivência de uma fé madura.

São Romero da América: “Nunca vão calar a voz de um santo”

Dom Óscar Arnulfo Romero, símbolo de uma Igreja próxima dos pobres, será beatificado no sábado, embora os salvadorenhos já o tenham como um santo a quem rezam por um país mais justo e a quem recordam em murais, estátuas e até chaveiros.
A reportagem é publicada por Religión Digital, 20-05-2015. A tradução é de André Langer.

Dom Romero será proclamado beato em uma cerimônia que reunirá milhares de pessoas na Praça Salvador do Mundo da capital salvadorenha.

No dia 23 de março de 1980, dom Romero, em uma homilia, fez um veemente apelo aos soldados para desobedecerem às ordens de atirar contra o povo: “Suplico-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus, cesse a repressão”.

Um dia depois do emotivo apelo, um francoatirador da extrema direita atirou contra ele enquanto presidia a missa na capela do hospital para cancerosos Divina Providência, no norte da capital.

No dia 30 de março, a multidão que acorreu ao seu funeral foi dispersada a tiros por soldados que deixaram muitos mortos.

O magnicídio de Romero foi o detonador de uma guerra civil que durou 12 anos (1980-1992) e deixou 75.000 mortos.
 
Sua vida e a Igreja
Romero nasceu no dia 15 de agosto de 1917 em Ciudad Barrios, um povoado que produzia café no Departamento de San Miguel, a 156 quilômetros de San Salvador.

Sua vida religiosa começou em 1931, quando ingressou no Seminário Menor de San Miguel, onde ficou conhecido como ‘O menino da flauta’, pelo pequeno instrumento de bambu que herdou de seu pai.

Em 1937, foi aceito no Seminário Maior San José de la Montaña, em San Salvador, e sete meses depois, viajou para estudar teologia em Roma, onde presenciou as calamidades da Segunda Guerra Mundial e foi ordenado padre em 04 de abril de 1942.

Em 21 de junho de 1970, foi nomeado bispo auxiliar da capital e, mais tarde, bispo de Santiago de Maria, Usulután, no dia 15 de outubro de 1974, numa época em que começava a repressão contra camponeses organizados.

Conhecido então por sua postura conservadora, Romero foi ungido arcebispo no dia 23 de fevereiro de 1977, aos 59 anos.

Em março de 1977, o assassinato de seu amigo o Pe. Rutilio Grande, junto com dois camponeses, transformou Romero, que fez da denúncia sua bandeira. Pelas denúncias que transmitia pela rádio católica Ysax e o semanário Orientación, Romero chegou a ser conhecido como “A voz dos sem voz”.

Simples e admirado
Muitos salvadorenhos recordam-no como um homem simples, que gostava de fotografar cenas da vida cotidiana. “Era simples, gostava do contato direto com as pessoas. Sua morte me doeu, pois é dos poucos que conheci que viveu integralmente o Evangelho”, recorda o artesão da madeira Fernando Llort, que conheceu pessoalmente a dom Romero.

Llort recorda que Romero visitou várias vezes sua oficina na cidade de La Palma, a 86 quilômetros ao norte de San Salvador e numa ocasião lhe pediu que fizesse um báculo para usar nas missas.

Outros, que talvez não o conheceram em vida, visitam diariamente a cripta de Romero, no subsolo da Catedral, onde os fiéis se ajoelham, depositam flores, acendem velas e rezam para pedir melhores tempos no país. Um destes visitantes, Guadalupe Navarro, um carpinteiro de 77 anos devoto do pastor recordou: “No dia em que o mataram, chorei, perdíamos a esperança de mudanças no país, mas hoje vemos uma luz e essa luz é nosso São Romero. Nunca vão calar a voz de um santo”.

Hoje, a imagem de Romero se multiplica em estátuas, murais, camisas, chaveiros e copos com seu rosto que são vendidos nas ruas.

Diante da sua sepultura, desfilaram personalidades como o falecido Papa João Paulo II em 1983. Anos depois, em 2011, visitou-a Barack Obama.

Uma Comissão da Verdade, criada pela ONU, culpou o falecido major do Exército Roberto d’Aubuisson, fundador da Aliança Republicana Nacionalista, na época no poder e de direita, de ser o responsável por “organizar e supervisionar” o assassinato.

A causa para a canonização de Romero foi aberta na Igreja católica local em 1994 e em Roma em 1997. Em abril de 2013, o Papa Francisco desbloqueou o processo e no dia 03 de fevereiro de 2015 assinou o decreto que reconhece Romero como mártir da Igreja.

Por sua vez e como informa a Rádio Vaticano, o coordenador regional da Caritas na América Latina e do Caribe, o Pe. Francisco Hernández Rojas, da Costa Rica, explica como funciona esta rede da Caritas na América Latina composta por 22 conferências episcopais e destaca a importância de dom Óscar Arnulfo Romero que será beatificado no próximo dia 23 de maio em El Salvador.

“A Caritas América Latina e Caribe é um órgão de comunhão vinculado ao Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) dentro do departamento de justiça e solidariedade do CELAM” na qual desenvolvem vários eixos de trabalho, como o do meio ambiente, a gestão dos riscos e das emergências.

Outro âmbito em que trabalha é a “dignidade, direitos humanos e construção da paz” sobre o qual o Pe. Francisco Hernández explica que “o ponto de partida sempre é a dignidade humana na mesma perspectiva que nos assinala o magistério social da Igreja e a partir dali queremos construir uma perspectiva de direitos onde todos os seres humanos sejam sujeitos de direitos e também de deveres, e que possam ser respeitados e que possamos ser construtores e sujeitos da nossa própria história...”.

Nesta linha, o padre costarriquenho assinala à Rádio Vaticano que “dom Óscar Arnulfo Romero é a expressão da busca de uma sociedade justa, fraterna e solidária como o ‘mínimo da caridade’, como nos ensina o magistério social da Igreja, expressado muito bem, magistralmente, pelo Papa Bento XVI na Encíclica Caritas in Veritate”.

“Dom Romero é essa expressão da entrega na caridade de uma Igreja que quer proteger os seus filhos, as suas filhas, que quer defendê-los, que quer que todos, cada um dos seus filhos e de suas filhas tenham oportunidades iguais, haja uma sociedade equitativa, onde todos possam encontram os elementos necessários para uma vida humana, como diz o Documento de Aparecida”.

1.1.3.2.2) Reaproximando Romero do povo e da Igreja de El Salvador
[ excerto do capítulo 1, “Perfil espiritual e apostólico de
monseñor Romero”, tópico 1.1.3, “A conversão de Romero” ]

Jesús Delgado destaca que Romero primava pela sinceridade e franqueza. Juan Hernández Pico respalda essa afirmação, ao matizar que, já antes de sua conversão, Romero era homem de excepcional retidão, eticamente íntegro, que jamais faria nada contra sua consciência. Mas então era ainda “conservador, com uma espiritualidade forte, mas desencarnada que, nos clamores de justiça, via redução da fé à sociologia e politização indevida da mesma fé”. Historicamente, Romero foi também o responsável pelo fato de que a implementação de Medellín na Igreja salvadoreña tivesse sido bloqueada ou ao menos caminhasse em marcha mais lenta (1).
 
Através de sua pastoral renovada, o Pe. Rutilio Grande vinha ajudando os campesinos de Aguilares a ir tomando consciência da exploração que sofriam, e a reagir, organizando-se. Isso atraiu a repressão, de modo que, antes do sangue de Rutilio, já corria o sangue do povo. O clamor do sangue dos pobres, ao qual o de Rutilio se vai confundir estreitamente, é que chegou aos ouvidos de monseñor Romero. E pouco a pouco Romero vai clareando sua posição, e passa a denunciar o sofrimento de seu povo, e não apenas o sacrilégio dirigido contra um sacerdote.

Para entender a transformação operada em Romero é preciso ter presente de quê e para quê ele mudou. Refletindo com agudeza sobre esse aspecto da trajetória pessoal de monseñor, Juan Hernández Pico identifica alguns passos ou aspectos do processo de conversão de Romero, que passamos a sintetizar a seguir:

a) ruptura com seus antigos conselheiros (representantes duma espiritualidade triunfalista e desencarnada, que optavam por deixar de lado o mundo tenebroso do pecado estrutural e evitavam tomar partido pelos pobres, mas apostavam na via da conciliação com o poder), e convocação de uma nova equipe de colaboradores/as, comprometida com seu povo;

b) ruptura pessoal e institucional com o poder repressor, elegendo como seu novo interlocutor o povo pobre de seu país; os pobres passam, então, a ser o lugar desde onde Romero estabelece as condições para o diálogo com o Estado. Ao fazer-se povo e abrir espaço para o povo ser Igreja, ao se pôr a serviço desse povo com o qual o Estado está em conflito, a Igreja passa a participar da perseguição que o povo já vinha sofrendo;

c) passagem do espiritualismo e a preocupação unilateral com a outra vida, à fé historicamente comprometida e solidária com os pobres, reconhecendo a realidade histórica como mediação do Reino;

d) superação de uma compreensão eclesiológica centrada na instituição eclesiástica e no influxo sobre o Estado em vista da garantia de direitos e benefícios à Igreja, para se dedicar, à luz da fé, ao serviço de seu povo, apoiando projetos populares geradores de vida: nega-se a legitimar religiosamente a ordem estabelecida; ameaçado, recusa-se a receber proteção policial enquanto ao povo não lhe for dada segurança, rejeita negociar com o poder estabelecido possíveis privilégios para a Igreja e assume os riscos advindos dessas decisões;

e) Reinterpretação de seu lema episcopal, abandonando uma lealdade conservadora, universalista, e por vezes servil ao magistério hierárquico romano, para substituí-la por um sentir eclesial encarnado nos pobres; inserção da defesa da fé na promoção dos direitos do pobre; relação madura com as organizações populares; recusa do anticomunismo (que, em El Salvador, coincidia com o discurso autolegitimador da direita repressora); busca do difícil equilíbrio entre a fidelidade à Igreja povo de Deus e ao povo em geral, por um lado, e, por outro, a manutenção da comunhão eclesial em situação de conflito e divisões;

f) mudança da percepção de como o Espírito age: essa ação era entendida primeiro como restrita à Igreja, e a preocupação prioritária era com a pertença eclesial e com a profissão explícita da fé cristã (católica); depois, a ação do Espírito é reconhecida em todos os recantos da História humana, todas as religiões, povos e culturas, derivando de aí exigências éticas; o eixo se desloca da contribuição específica da tradição cristã à manifestação da glória de Deus em toda experiência histórica de verdadeira libertação humana (que o pobre viva);

g) a compaixão pelo pobre individual e pela multidão abstrata de desvalidos (massa) dá lugar à primazia por uma opção pelos empobrecidos que se organizam para a defesa do direito e a construção autônoma de seu projeto histórico, e pelas vítimas da violência institucionalizada;

h) Romero passa também da defesa dos pobres enquanto princípio geral ao discernimento do projeto histórico mais viável para o contexto concreto de seu país e que mais favoreça o bem comum e mais acarrete em vida aos pobres;

i) sua disposição genérica a dar a vida pelo rebanho (probabilidade ainda remota até meados de 1979) ganha concretude, expressando-se como disponibilidade efetiva de entregar a vida, no horizonte nada improvável, nos últimos meses de sua existência, de uma morte violenta; ao invés de se tornar mais prudente, monseñor Romero não se deteve, não baixou o tom de suas denúncias, mas identificou-se até o fim com seu povo crucificado e assassinado.

Para J. H. Pico, nos últimos três anos de sua vida Romero se tornara um homem novo, recriado e libertado. O sujeito tímido, retraído, conservador, apegado à segurança do passado, “de fé desencarnada e unilateralmente espiritual”, é agora alguém “cheio duma fortaleza única”; “abordando com audácia o novo”; “em contínua busca de conselho e de amizade e em comunicação com multidões”, “aprendendo o dom do Espírito em seu povo”, “sentindo com a Igreja encarnada nesse povo necessitado de libertação”. De “homem de corredores e escritórios, afeito à vida eclesiástica” a “homem dos caminhos de seu povo, das veredas rurais, dos barrancos e tugúrios (barracos de favela), de sua catedral repleta de gente do povo dos pobres”. De alguém “desintegrado, fendido entre sua retidão e seu aprisionamento a esquemas conservadores” e com “cansaços nervosos que necessitaram de cuidados médicos” ao “homem integrado, de alegria, liberdade e independência profundas”, “que não se quebrou em seus três anos de arcebispo” ante tantas e tão fortes pressões e tensões. Alguém que “aguentou firme a morte” de tanta gente amiga e dos membros do seu querido povo, sereno mesmo ante tantas calúnias e ameaças; uma pessoa “de sorriso aberto ante a vida”, mesmo com o “coração ferido e em carne viva” ante tanta injustiça.

Sem dúvida não se trata, como estamos vendo, duma passagem do mal para o bem, pois, apesar de seu temperamento, conservadorismo e dificuldades de convivência, Romero sempre foi uma pessoa que primava por sólidos valores humanos e espirituais. Se pecava, era por excesso de zelo. Sua vontade, contudo, era sempre a de servir com amor, através duma reta consciência, alimentada pela oração. Do mesmo modo, sua sensibilidade à miséria humana (também a material) e seu zelo pelas pessoas pobres é característica que perpassa toda a sua vida, e sua pobreza pessoal vai a par com um desapegado e generoso ministério sacerdotal. Além disso, não apenas valorizava as tradições populares, como era ele mesmo um típico representante do campesinato salvadoreño.

Com paciência acolhia os pobres com quem se deparava, ia ao encontro das pessoas doentes, e atendia com carinho a quem passava por algum sofrimento. Por detrás de sua aparência sisuda, de homem excessivamente sério, sabia brincar e divertir-se. E se sentia à vontade, verdadeiramente em casa, em meio à gente simples. Já como arcebispo, em San Salvador, rejeita imóvel e carro que as classes ricas lhe ofertam, e escolhe morar num modesto quarto do Hospital da Divina Providência. E, quando as Irmãs do hospitalito aventam a possibilidade duma reforma, só a aceita sob a condição de que o ambiente não ferisse seu propósito dum estilo de vida verdadeiramente modesto, próprio duma família pobre; do contrário iria à busca de outra habitação.

Sendo um processo, a conversão comporta, porém, alguns marcos mais visíveis. Brockman assim o explicita: “foi preciso o assassínio de Rutilio Grande, que sintetizava um ataque geral à Igreja que ele amava e ao sacerdócio que reverenciava, para fazê-lo compartir da visão predominante na arquidiocese” (2).  Tal processo culminará em seu radical compromisso evangélico com os pobres, durante os três anos à frente da Igreja de San Salvador (fevereiro de 1977 a março de 1980).

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2.3.6) Fé, esperança e amor até o fim
[ excerto do capítulo 2, “Dando voz ao pastor dos sem voz: a atuação e o pensamento de monseñor Romero através de suas homilias”, tópico 2.3, “Dimensões presentes nas homilias de Romero” ]

Uma vez rompidos os laços com os grupos poderosos e pessoas de influência, e rejeitado radicalmente o pacto pelo qual privilégios à Igreja são usados como moeda de troca para a legitimação religiosa do sistema, a primeira tentativa é então a de voltar a cooptar. Em seguida busca-se desqualificar a crítica do profeta, através da calúnia e de ataques sistemáticos nos meios de comunicação. Como nada disso conseguiu demover a palavra incômoda de Romero, os que têm muita voz passam então a hostilizá-lo diretamente. O pastor passa a compartilhar a mesma perseguição que o povo pobre vinha sofrendo, e a correr progressivamente os mesmos riscos. Já se atingia o bispo quando se feria a sua Igreja (sacerdotes, membros de congregações religiosas, lideranças leigas das comunidades), quando se cometiam atentados contra a gráfica da arquidiocese, a rádio YSAX, etc. Mas agora as ameaças são nominais. Romero começa a aparecer na lista dos que estão para ser fisicamente eliminados.

Romero estava bem consciente dos riscos que corria. E, embora por vezes descontentasse também as alas radicais da esquerda, sabia donde vinha o principal perigo: “E eu denuncio, sobretudo, a absolutização da riqueza. Este é o grande mal de El Salvador: a riqueza, a propriedade privada como um absoluto intocável, e ai de quem toque esse fio de alta tensão, porque se queima!” (3).  

Mais uma vez se confirma que a perseguição é o destino histórico de todo verdadeiro pregador, de quem assume o dever cristão de acompanhar os pobres no seu sofrimento, infligido pela repressão. E, em situações difíceis e perigosas como a de El Salvador, é necessário que a legítima prudência não ceda à tentação do medo nem arrefeça a audácia ante a exigência evangélica de denunciar as injustiças (4).  

O martírio é o destino histórico dos profetas, “porque têm que apontar as chagas mais dolorosas e ardentes, têm que correr os riscos de quem não quer ouvir” (5),   enfrentar a oposição de quem está praticando a injustiças e não se quer converter. O país está um barril de pólvora com o pavio aceso e perto de explodir, mas nem assim os poderosos abrem mão de seus privilégios. A violência cresce, jorra um rio de sangue, sobretudo popular. E o círculo se fecha cada vez mais para Romero, que entra em conflito com todos os que já estão em conflito com o povo pobre.

Mais e mais, Romero  -  como todo aquele que se compromete com os pobres  -  passa a compartilhar o destino destes, a perseguição. “E em El Salvador já sabemos o que significa o destino dos pobres: ser desaparecido, ser torturado, ser capturado, aparecer cadáver”. O pastor toma parte de sua Igreja martirial, da qual se orgulha (6):

Quero felicitar com imensa alegria e gratidão aos sacerdotes, precisamente, quanto mais estão comprometidos com os pobres, mais difamados; precisamente, quanto mais comprometidos com a miséria de nosso povo, mais caluniados. Quero alegrar-me com os religiosos e as religiosas comprometidas com este povo até o heroísmo de sofrer com ele, com as comunidades cristãs, com os catequistas que, enquanto fogem os covardes, permanecem no posto.

Romero chega a se alegrar, não é claro com o fato em si da morte das lideranças eclesiais, mas sim porque interpreta a perseguição à Igreja como testemunho fiel de um corpo eclesial comprometido com os pobres, decidido acompanhar a caminhada desse povo oprimido e reprimido, até misturar seu sangue ao de tantos/as outros/as salvadoreños/as (7):

Esta morte dos sacerdotes [...] solidários com o povo, une-se às múltiplas mortes de outras categorias humanas; podemos apresentar junto ao sangre de professores, de operários, de campesinos, o sangue de nossos sacerdotes. Isto é comunhão de amor. Seria triste que numa pátria onde se está assassinando tão horrorosamente, não contássemos entre as vítimas também aos sacerdotes. São o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas de seu povo.

Pouco a pouco Romero vai pintando o seu próprio retrato. Quanto mais chama à conversão, mais vê o endurecimento da elite, dos oligarcas. Mas insiste: “Não sigam calando com a violência aos que estamos fazendo essa exortação nem, muito menos, continuem matando aos que estamos tratando de conseguir que haja uma mais justa distribuição do poder e das riquezas de nosso país”. E esclarece: “E falo em primeira pessoa porque esta semana me chegou um aviso de que estou na lista dos que vão ser eliminados na próxima semana” (8).  

Romero, porém, completa: “mas que fique claro que a voz da justiça ninguém a pode matar”. Pode-se silenciar a voz do pregador, porque ela passa. Mas a palavra, esta fica. Por isso Romero pode exclamar: “Minha voz desaparecerá, mas minha palavra, que é Cristo, ficará nos corações que a tenham querido acolher” (9).
 
Como Jesus, por três anos Romero acompanhou seu povo em sofrimento, pelos caminhos da Galileia salvadoreña, e quando percebeu que não conseguiria evitar a morte de seus pobres, então toma a firme decisão de rumar para a sua Jerusalém (Lc 9, 51), seu Horto, seu Calvário. Resolve permanecer radicalmente com eles até o fim, até as últimas consequências; compartilhar o destino de sua gente também, se preciso for, na morte (10).  

Ameaçado, Romero recebeu ofertas, sinceras ou hipócritas, de proteção por parte do governo. Rejeita-as, com o seguinte argumento: “o pastor não quer segurança enquanto não deem segurança a seu rebanho” (11). O pastor não quer vantagens pessoais para si, enquanto vê o seu povo na completa insegurança.

O chanceler nicaraguense Miguel D’Escoto oferece-lhe asilo (12). Também a Santa Sé lhe sugere uma temporada em Roma (13).  

Mais de uma vez Romero manifesta a promessa de que a Igreja de San Salvador não abandonará seu povo: “jamais nossa Igreja deixará só a nosso povo que sofre”. “A opção preferencial de nossa Igreja é pelos pobres e a Igreja não abandonará os pobres”. E nem o seu bispo, pessoalmente, vai deixá-los a mercê da própria sorte: “Quero assegurar a vocês, e lhes peço orações para ser fiel a esta promessa, que não abandonarei meu povo, mas que correrei com ele todos os riscos que meu ministério me exige” (14).  

Caminhando com seu povo, Romero animava-o na Esperança: “Passará esta hora de prova e permanecerá refulgente o ideal pelo qual morreram tantos cristãos”. Atrás dessa noite escura que o país está atravessando já irrompe a aurora. A Igreja não precisa temer, pois o Filho de Deus caminha com ela (15). El Salvador é hoje Egito, terra de escravidão. Mas “já se vislumbra a liberdade de um povo oprimido”. Por isso “nos momentos da repressão de El Salvador, de nossa terra, não desesperemos; muito mais difícil era a situação de Israel no Egito”. As forças de morte serão precipitadas nas águas, como o exército do faraó no Mar Vermelho, e o povo poderá cantar seu hino de vitória, pois “em Cristo Ressuscitado já foi decretada a transformação do mundo e ninguém a poderá deter”. As circunstâncias do país não devem apagar, mas reavivar ainda mais a chama da esperança e da fé. (16) Se impera em El Salvador o mistério da iniquidade, o exemplo de um verdadeiro cristianismo “será capaz de transformar este reino do pecado em nossa pátria em um reino de Deus. Oxalá seja logo” (17).
 
Um derradeiro facho de luz se acendera com o golpe de 15/10/1979. Romero acreditou que esse fato pudesse significar o controle aos setores mais repressivos das forças armadas, de modo que se detivesse o banho de sangue e se corrigisse a injustiça no país. Apagado, porém, esse luzeiro, Romero vê seu país se encaminhando para um inexorável abismo. A pequena e frágil chama da vela ainda persiste, mas está a ponto de sucumbir frente a ventos tão impetuosos. Em sua sólida convicção de Fé, o pastor segue a frente de seu povo esperando contra toda Esperança. Sem sucumbir à tentação de pagar o mal com mal, aponta qual é a única violência que o Evangelho admite: “deixar-se matar por amor ao povo”. (18) Lentamente o pastor se torna cordeiro que se dirige ao matadouro. A bala assassina só está aguardando que se puxe o gatilho. Em abandono total, Romero confia no Deus da vida, no Deus de Jesus Cristo, o Ressuscitado. Entrega-se totalmente. Em meio à escuridão, sem ver uma alternativa palpável para seu país, a fé lhe traz a certeza da plenitude final. Enquanto isso, Romero continua sendo fermento para seu povo também entregue à paixão, que peregrina e busca ir efetivando os sinais do Reino já na História. O povo cristão tem em Óscar Romero alguém que atualiza a experiência de Cristo, que toma a sua cruz e segue o Salvador: “tendo amado os seus, até o extremo os amou” (Jo 13, 1). O próprio Romero afirmara que, quando tantos desistem, há também quem vai até o fim, porque compreendeu que “um Messias não pode terminar sua vida em um leito de rosas”, e sim “em uma cruz, pobre, desprezado, desconhecido”. (19) A semente foi posta na terra, e logo passou a germinar e a produzir frutos. Romero é dom divino para renovar em seu povo a determinação de se pôr na estrada.

A beatificação de D. Romero. Uma vitória para o Papa Francisco

A beatificação no dia de hoje, 23 de maio, de D. Oscar Romero, é uma demonstração da natureza radical da revolução que o Papa Francisco está realizando", afirma Paul Vallely, em comentário publicado no jornal The New York Times, 22-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Paul Vallely é professor de ética pública na University of Chester, na Inglaterra, e autor da biografia “Pope Francis: The Struggle for the Soul of Catholicism”, a ser publicado em breve. Ele também é autor de uma biografia muito comentada do Papa Francisco. Trata-se do livro Pope Francis: Untying the Knots. London: Bloomsbury, 2013.

Segundo ele, "a beatificação de Oscar Romero é, pois, motivo para um regozijo duplo. Ela honra um homem cujo amor pela justiça e o foco nos pobres eram uma manifestação direta de sua fé. Mas ela também revela que, com a chegada do Papa Francisco, algumas das forças das trevas que se esconderam no Vaticano nas décadas recentes foram, finalmente, derrotadas".

Eis o comentário.

O arcebispo assassinado Oscar Arnulfo Romero está na reta final de um caminho tortuoso para a santidade com a realização de sua beatificação neste sábado. Esta ocasião fez se realizarem celebrações da mais alta ordem em El Salvador, sua terra natal. Porém o evento envolve um regozijo muito mais amplo – pois revela uma vitória contra algumas influências malignas de dentro da Igreja e dá provas da natureza radical da revolução que o Papa Francisco está forjando em Roma.

Dom Romero foi atingido e morto no altar enquanto celebrava missa em San Salvador no ano de 1980. O seu assassino fazia parte de um dos esquadrões da morte que davam sustentação a uma aliança pecaminosa entre proprietários de terras, o exército e segmentos da Igreja Católica no momento em que o país se movia em direção a uma guerra civil. O crime do arcebispo havia sido ordenar que os soldados parassem de matar civis inocentes. A elite de extrema-direita viu-o como um apologista da revolução marxista – uma difamação que indivíduos da alta hierarquia vaticana alimentaram durante três décadas e que, agora, o Papa Francisco finalmente silenciou.

A principal preocupação de tais críticos era que esta sua canonização acabasse sendo um endosso eficaz para Teologia da Libertação; muitos temiam que ela iria permitir a infiltração do comunismo na América Latina. Tal pensamento era uma caricatura intencional do movimento que sustentava a ideia segundo a qual os Evangelhos carregam uma “opção preferencial pelos pobres” e insistia que a Igreja tinha o dever de trabalhar pela libertação social e econômica dos oprimidos bem como pelo seu bem-estar espiritual. Esta representação equivocada alcançou o eu ápice nas calúnias grosseiras perpetradas contra o arcebispo, tanto durante a sua vida quanto depois da sua morte.
Quando se tornou arcebispo de San Salvador, a oligarquia do país esperava que o Dom Romero fosse um prelado de confiança. A sua formação era a de um religioso conservador e a sua espiritualidade baseava-se naquela do Opus Dei, grupo de sacerdotes e leigos profundamente tradicionais. Porém ele ficou indignado com a violência crescente contra os pobres e contra os que os defendiam.

Dentro de algumas semanas depois da sua instalação como arcebispo, um de seus sacerdotes – um amigo próximo, o padre Rutilio Grande – foi assassinado por apoiar alguns camponeses que protestavam pela reforma agrária e por melhores salários. Vários sacerdotes foram mortos depois disso, embora em 1979 estes formavam somente uma pequena parcela das 3 mil pessoas, em princípio, assassinadas todos os meses no país. Quando um jornalista perguntou sobre o que fez na qualidade de arcebispo, Romero respondeu: “Eu recolhi os corpos”.

Na medida em que a violência piorava, Dom Romero se tornava mais crítico em seus sermões, os quais eram transmitidos em rede nacional. Neles, o religioso condenava a opressão e dizia às pessoas que Deus estava com elas.

Ainda que Dom Romero não fosse um teórico da libertação, Dom Vincenzo Paglia, o principal defensor da causa da canonização, chamou-o de “mártir da Igreja do Concílio Vaticano II” porque a sua decisão de “viver com os pobres e defendê-los da opressão” advinha diretamente dos documentos do Vaticano II.

Tampouco era ele um teórico marxista. Em um sermão de 1978, disse: “Uma Igreja marxista não seria só autodestrutiva, mas também sem sentido”, pois “o materialismo destrói o significado transcendente da Igreja”.

Este era, porém, um ambiente no qual qualquer um que levantasse a voz em nome da justiça acabava sendo rotulado como comunista.

As elites sociais, militares e eclesiásticas de El Salvador estavam profundamente infelizes com o arcebispo. As 14 famílias que controlavam a economia e que faziam grandes doações à Igreja enviavam um fluxo constante de queixas a Roma. Elas acusavam Dom Romero de se intrometer na política, ratificando o terrorismo e abandonando a missão espiritual da Igreja de salvar almas. Quatro bispos, preocupados que o arcebispo estava questionando os laços deles com a oligarquia, começaram a se manifestar, com virulência, contra ele.

Os diários copiosos de Dom Romero desmentem todas as afirmações feitas pelos seus críticos. O mesmo fez o dossiê que ele deu ao Papa Paulo VI em uma audiência privada, que terminou com o pontífice instando-o: “Coragem! Ânimo. Tu és o responsável”.

No entanto, Dom Romero percebeu uma mensagem muito diferente quando foi chamado a Roma pelo Cardeal Sebastiano Baggio, então prefeito da Congregação para os Bispos. Este cardeal falou que ele estava com um volume sem precedentes de queixas contra Dom Romero. O despacho de acusação estava cheio de alegações ferozes e distorções perniciosas, e Dom Romero ficou angustiado porque o cardeal tinha claramente acreditado nelas. De novo, ele foi até o papa, que novamente o instou: “procede com coragem”.

Mas o papa seguinte, João Paulo II, tinha pouco conhecimento sobre a América Central e confiou no conselho de autoridades curais hostis ao arcebispo. O Cardeal Baggio enviou um inspetor vaticano a El Salvador, que recomendou destituir Romero de suas funções. O arcebispo apelou a João Paulo II, que pediu que seus críticos moderassem em suas atitudes para com o prelado.

Após o assassinato, os seus inimigos deram início a três décadas de manobras que buscavam evitar que ele fosse declarado oficialmente santo. Uma série de táticas foram postas em prática para impedir que isso acontecesse, tudo liderado pela mesma pessoa que havia recebido a tarefa de defender a causa [de beatificação] de Dom Romero: o Cardeal Alfonso López Trujillo, religioso colombiano profundamente avesso à Teologia da Libertação. Anos se passaram enquanto as autoridades vaticanas examinavam os escritos de Dom Romero em busca de erros doutrinais. Quando nada encontraram aqui, os críticos mudaram de posição para argumentar que ele – Dom Romero – não havia sido morto por sua fé, mas por suas “declarações políticas”.

Os que apoiavam Dom Romero culpavam os papas conservadores, que seriam contrários à Teologia da Libertação, mas isso não é justo. Em 1997, João Paulo II condecorou Romero com o título de Servo de Deus e, em 2003, disse a um grupo de bispos salvadorenhos que o prelado centro-americano era um mártir.

Em 2007, Bento XVI chamou-o de “um homem de grande virtude cristã”. E acrescentou: “Que Romero como pessoa merece a beatificação, eu não tenho dúvida”. (Esta última frase foi estranhamente cortada da transcrição disponível no sítio do Vaticano.) Um mês antes de renunciar, Bento XVI deu ordens para que o processo de canonização de Dom Romero fosse desbloqueado.

Foi a chegada do Papa Francisco – que prontamente engendrou uma reaproximação entre o Vaticano e a Teologia da Libertação – o que finalmente fez as coisas andarem. A causa de Dom Romero, disse ele aos jornalistas, estava “bloqueada na Congregação para a Doutrina da Fé ‘por prudência’”. Mas acrescentou: “Para mim, Romero é um homem de Deus”.

Nesse sentido, o organismo competente dos teólogos declarou, universalmente, que Dom Romero não havia sido morto por motivos políticos, mas tinha de fato morrido por causa do odium fidei – ódio à fé. Francisco prontamente o declarou mártir, e o caminho para a santidade estava aberto.

Para o Papa Francisco, esta ação era algo evidente. Ele disse, em seu segundo dia de como papa, que queria uma “Igreja pobre para os pobres”. E escreveu, em seu documento Evangelii Gaudium: “Há que afirmar, sem rodeios, que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres”.

A beatificação de Oscar Romero é, pois, motivo para um regozijo duplo. Ela honra um homem cujo amor pela justiça e o foco nos pobres eram uma manifestação direta de sua fé. Mas ela também revela que, com a chegada do Papa Francisco, algumas das forças das trevas que se esconderam no Vaticano nas décadas recentes foram, finalmente, derrotadas.

(1) Tanto o que tange aos passos da conversão de Romero quanto às demais considerações contidas nos parágrafos deste tópico (1.1.3.2.2) se assentam (quando não indicado em contrário) em: PICO, Juan Hernández. Mons. Romero: exigente conversión cristiana. In: _____________. Un cristianismo vivo: reflexiones teológicas desde Centroamérica. Salamanca, Sígueme, 1987. p. 99-113. O mesmo texto aparece publicado em: ARZOBISPADO DE SAN SALVADOR, 1982, p. 502-511; e originalmente saiu como editorial na revista Diálogo (Guatemala: abr-mai/80, ano X, nº 51, p. 1-9).
(2) BROCKMAN, James. A palavra fica: vida de Dom Oscar Romero. São Paulo: Loyola, 1984,.p. 68.
(3) Homilias, Tomo V, p. 208-209 (12/08/1979). 
(4) Conciliar audácia e prudência foi um dos temas conversados por Romero em audiência privada com o papa João Paulo II, conforme relatado na homilia de 13/05/1979. Ver: Homilias, Tomo IV, p. 444.
(5) Homilias, Tomo III, p. 294 (1º/10/1978). 
(6) Homilias, Tomo VI, p. 285 (17/02/1980).
(7) Homilias, Tomo V, p. 56 (30/06/1979; Missa única por ocasião do assassinato do Pe. Rafael Palacios). 
(8) Homilias, Tomo VI, p. 323 (24/02/1980).
(9) Homilias, Tomo VI, p. 323 (24/02/1980).
Homilias, Tomo IV, p. 65 (17/12/1978). 
(10) DENNIS, Marie; GOLDEN, Remy; WRIGHT, Scott. Óscar Romero: reflections on his life and writings. New York: Orbis Books, 2000. p. 64. 
(11) Homilias, Tomo V, p. 148-149 (22/07/1979).
(12) BROCKMAN, James. A palavra fica: vida de Dom Oscar Romero. São Paulo: Loyola, 1984. p. 290.
(13) MOROZZO DELLA ROCCA, Roberto. Monseñor Romero: vida, pasión y muerte en El Salvador. Salamanca: Sígueme, 2010. p. 404.
(14) Homilias, Tomo IV, p. 522 (10/06/1979).
(15) Homilias, Tomo V, p. 346 (23/09/1979).
(16) Homilias, Tomo I, p. 243-244 (07/08/1977).
(17) Homilias, Tomo V, p. 430-431 (14/10/1979). 
(18) Homilias, Tomo V, p. 215 (02/08/1979): 
(19) Homilias, Tomo V, p. 322 (16/09/1979).
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