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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
02.09.2015 | 20:14 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
A Capelania oferece nesta semana duas entrevistas sobre o momento político atual, as manifestações e o ódio que permeia as manifestações de rua e virtuais, além de um texto da teóloga Maria Clara Bingemer, publicado em seu blog e reproduzido pelo site Dom Total. 

Nas entrevistas o professor e pesquisador Francisco Foot Hardmann discorre sobre o esgotamento do modelo político atual no Brasil e as manifestações realizadas no país. A primeira com o título “Intolerância é a antessala da violência e a violência e a negação da política”, é uma reportagem de Gabriel Manzano, publicada pelo Jornal O Estado de São Paulo, em março deste ano. 

A segunda entrevista “Intolerância, a filha primogênita do ódio” foi concedida por e-mail à IHU On-Line.  Hardman analisa os processos sociais que desembocam no ódio, que na sua avaliação deriva sempre do desconhecimento e do medo do outro. Segundo ele “A intolerância é a recusa frontal ao espaço da linguagem e da palavra, que é sempre dialogal”. 

Por último, oferecemos o texto “Ver, olhar, contemplar” de Maria Clara Bingemer, em uma perspectiva teologia de não apenas ver, mas contemplar a realidade. 

Desejamos que os textos dessa semana contribuam para uma prática reflexiva. 


‘Intolerância é a antessala da violência e a violência é a negação da política’

Anarquista nos áureos tempos, hoje um dedicado professor do Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, o professor Francisco Foot Hardman olha os vários Brasis à sua volta, a bater panelas e agitar as ruas, de um jeito impaciente e preocupado. “A intolerância é a antessala da violência e a violência é a negação da política”, adverte, sobre a alta temperatura a que chegaram as recentes manifestações de rua por todo o País.

A reportagem é de Gabriel Manzano, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 16-03-2015.

Preocupa-o “a mais absoluta superficialidade e irracionalidade” do que se diz nas redes sociais – e também o peso que elas adquiriram, ao injetar no debate político altas doses de radicalismo e a incivilidade. Livre-pensador 24 horas por dia, formado na USP e há quase três décadas na Unicamp, Hardman – que escreveu, entre outros, os livros Nem Pátria nem Patrão e Trem Fantasma – passou a semana envolvido com a Mostra Internacional de Teatro, em São Paulo, mas sem deixar de acompanhar o tenso momento vivido pelo País. Nesta entrevista, ele afirma: o atual modelo político, montado a partir do fim da ditadura, “está esgotado e a saída talvez seja uma constituinte”. E o ano que vem por aí “não vai ser fácil, não”.
Eis a entrevista.

Que país é este, onde ficou tão difícil dialogar e as manifestações de rua viraram palco para ódio e grosserias?
É um país desigual e injusto, com uma enorme diversidade cultural. Vivemos um momento em que várias crises se cruzam – a estagnação econômica, a paralisia da política, a urgência de medidas na questão energética, na hídrica. Tudo isso aumenta a sensação de imprevisibilidade e de insegurança.

A política deveria ser o espaço para isso ser corrigido, mas não é. Por quê?
Porque persiste uma tradição de violência – além da corrupção – que levou a um descrédito profundo com relação à política institucional. O modelo de organização política montado depois do regime militar é extremamente insatisfatório, precário, frágil, e dá claros sinais de estar esgotado.

As redes sociais parecem estar tomando o lugar dos partidos como espaço para se fazer política.

No que isso vai dar?
As novas tecnologias têm um papel central nesse cenário. Elas aceleraram enormemente o ritmo de ação pelas redes e isso está deixando os partidos, tão burocráticos, para trás. Bom exemplo foram as Jornadas de Junho de 2013. Elas trouxeram à cena um tema urgente e essencial, o da mobilidade urbana, questão decisiva para 80% da população das cidades médias e grandes. Mas essas demandas esbarraram no imobilismo dos poderes tradicionais – Congresso, Estados, municípios. Donde o recado daquelas Jornadas, me parece, foi o da urgência de uma reforma política. Mas não essa reforma de que se fala por aí. Uma mais profunda, no sistema partidário, na representação, na forma de financiamento de campanhas. Projeto que, a depender do Poder Legislativo, não avançará nunca, pois sabemos que no Congresso predominarão sempre os interesses corporativos.

Mas o dinamismo das redes, por serem mais imediatistas, mais concretas e plurais, não deveria ajudar a tornar o debate político mais realista?
As redes oferecem facilidade, velocidade, mas tudo acompanhado da mais absoluta superficialidade, irracionalidade e completa dispersão das vontades no processo. E esse fenômeno é do mundo inteiro, não só do Brasil. Prova disso foi a Primavera Árabe, que despertou sonhos mas não tinha projeto. Acabou redundando em nova ditadura militar no Egito. Em Brasília, nas mobilizações de 2013, houve quase uma ocupação do Congresso… Foram repentes, mais nada.

O anonimato das redes abriu espaço para ataques e julgamentos sumários e isso mais cria problemas do que resolve, não?
Esse ambiente virtual produz um rebaixamento acentuado da educação pública – e este, por sua vez, provoca um afastamento da política. Essa facilidade de se apresentar e dizer algo é vendida como valor democrático mas, sabidamente, não tem nada a ver com democracia.

Também na política é mais fácil destruir do que construir.
Sim. O grande problema é que tais manifestações não conduzem a fóruns coletivos onde pautas e ideias predominem. No mais das vezes, elas vão dar num vazio completo. Vazio do ponto de vista da organização social e da construção teórica, um vazio conceitual.

Quer dizer que elas só fazem parte do serviço, é isso?
Uma coisa é trazer milhares de estudantes para a rua, outra coisa é conseguir convencer trabalhadores e operários a participar. Esses movimentos se apegam a uma ideia fixa – que é limitada – em sua recusa a participar do sistema político como um todo. Disso estamos vendo sinais agora.

Quais sinais?
Em 2013, o Movimento Passe Livre tocou numa questão central do Brasil contemporâneo, a da mobilidade urbana. Quando colocam o tema “por uma vida sem catracas”, falam de algo relevante. Mas a insistência nesse ponto, sem a devida articulação com algum plano de transformação da vida política brasileira, provocou um relativo isolamento.

Nas disputas partidárias, um lado chama de ‘fascistas’ todos os que discordam dele e outro fala em impeachment da presidente Dilma ou de ‘fazê-la sangrar’. Há institucional?
A relação entre o baixo nível das redes sociais e essa violência e intolerância que invadiu a política A intolerância é a antessala da violência. E a violência é a negação da política. Esse é, no momento, um dos nossos dramas. Vivemos a negação da chamada pólis, da cidade como fórum aberto de ideias que se embatem e, pelo diálogo, produzem os consensos. É verdade que, mesmo nos modelos clássicos, essa condição da polis só se viabilizava num circuito muito restrito de cidadãos. Para cada bom cidadão grego havia milhares de escravos excluídos do sistema.

Quanto do atual mal-estar da sociedade decorre das desigualdades históricas, quanto se deve ao que o senhor define como “esgotamento do modelo” e quanto é responsabilidade direta, hoje, da presidente Dilma Rousseff?
Creio que a chamada “Nova República”, iniciada em 1985, esgotou seu ciclo histórico-político e que essa é a razão principal dos impasses atuais. Discordo da visão segundo a qual Dilma é a principal responsável pelas mazelas da conjuntura. É verdade que seu estilo muitas vezes “autista” – que talvez seja marca de um aprendizado político feito na clandestinidade da ditadura militar – não ajuda em nada e contribui para agravar a crise política. Mas sem uma reforma radical, que culmine num processo constituinte em que as forças da sociedade civil e de movimentos sociais participem ativamente, não creio em mudanças efetivas nem em superação da instabilidade crônica do atual sistema de poder. E isso nas três esferas de governo.

Existe hoje na sociedade uma imensa maioria que, pelas razões já mencionadas, se sente excluída do debate. É possível mudar isso, sem se dividir o mundo em “chapas brancas” e “fascistas”?
Quando os métodos de dialogo se tornam impositivos e se valem da força, da ameaça, da desqualificação, estamos no terreno autoritário – que pode, sim, contaminar os discursos de todos os lados. E por trás, existe esse enorme e decisivo desafio, a crise da representação. Que produz essa multidão dos sem mandato, sem cidadania, sem espaço, grande massa do povo brasileiro. O povo não se sente representado pelas dezenas de partidos, os milhares de candidatos.

Pode-se dizer que são partes do mesmo problema a aparição dos black blocs quebrando de tudo no final das manifestações e os conflitos entre torcidas organizadas de futebol– a ponto de se apelar para “torcida única” em clássicos?
Essas realidades são o retrato de uma luta política atravessada por manifestações irracionais. As torcidas organizadas do futebol não são diferentes. Mas há uma enorme faixa da população que não partilha desses métodos.

O clima talvez melhorasse se os dois principais partidos, PT e PSDB, pudessem estabelecer um diálogo sobre os grandes desafios do País. O senhor vê chances de superação desse impasse? E o PMDB, hoje fortalecido, pode ter papel mais decisivo nessa pacificação?
Não guardo mais nenhuma ilusão sobre o atual sistema partidário institucional, ele está todo “bichado”. O PT converteu-se em uma máquina burocrática, financeira e eleitoral poderosa. Há mais de uma década as lideranças que criticavam seu afastamento crescente dos movimentos sociais foram marginalizadas ou tiveram que sair. Ou ainda o farão. O PSDB é menos um partido e mais um clube de caciques e luminares, imaginar que em sua sigla inscrevia-se a proposta de uma “social-democracia brasileira” parece piada de mau gosto. E o PMDB, cada vez mais, revela-se o que nunca deixou de ser: um entulho do regime autoritário, fisiológico e corrompido até a medula. Triste que o governo Dilma tenha se tornado, em razão de suas escolhas estratégicas, refém dos apetites dessa sigla.

A crise de hoje tem alguma ligação com os antigos “Brasis” descritos por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, ou Sergio Buarque, em Raízes do Brasil?
Essa pergunta me traz à mente uma visão final de Raimundo Faoro em Os Donos do Poder, onde ele fala de “uma civilização tolhida no seu crescimento, como se tivesse sido atacada de paralisia infantil”. Ele fazia uma imagem com Jesus e o “deitar vinho novo em odres velhos” para dizer que “os velhos odres devem ser abandonados”. E definia o País como “uma monstruosidade social, engendrada por instituições anacrônicas, comandadas pelo estamento burocrático”. Não é uma marca só do Brasil. As redes sociais não fazem o que fazem só em nosso País. Mas aqui formam um caldo que cria toda essa urgência.

Como imagina que o País vai atravessar 2015?
Vai viver mal. Percebe-se que há vários impasses. Para falar do meu lado, temos uma clara crise financeira na universidade pública paulista – produto direto do momento, pois se a economia para, os tributos diminuem, faltam os recursos. Some-se a situação dificílima do emprego. Acho que a resposta – de novo – tem que ser política. Mas não essa da intolerância, da gritaria. Política no sentido de articular as forças em busca de mudanças reais.

Por falar em universidades, acha que os intelectuais, como classe, estão desempenhando o papel que deles se espera no atual momento?
Esse cenário todo é completado, não podemos negar, com a falha deixada pela ausência de um papel mais positivo dos intelectuais. Sabemos que as universidades enfrentam uma dura crise, mas isso não pode nos impedir de admitir que o papel social da universidade pública no Brasil de hoje está muito inferior ao que deveria ser. Não é só questão financeira, não. Também a responsabilidade das pessoas que lá estão. Vou me apropriar, aqui, do nome de um grupo de teatro colombiano novo, que participa da MIT, a Mostra Internacional de Teatro. Ele se chama La Maldita Vanidad (“A Maldita Vaidade”). Esta é uma das marcas mais deletérias do perfil acadêmico dominante do Brasil, que se tornou individualista, carreirista, e muitas vezes completamente indiferente ao País e à sociedade que o sustenta.


Intolerância, a filha primogênita do ódio

Francisco Foot Hardman analisa os processos sociais que desembocam no ódio, que na sua avaliação deriva sempre do desconhecimento e do medo do outro

Por: Márcia Junges e Ricardo Machado

Na língua portuguesa há um verbo do qual compreendemos melhor seu avesso que seu sentido literal: tolerar. Daí que a intolerância se mostra como apenas um aspecto do confronto entre determinados regimes sociais direcionados à submissão das vontades e um contexto de vivência pleno de singularidades. “A intolerância é a recusa frontal ao espaço da linguagem e da palavra, que é sempre dialogal. É a negação do princípio do conhecimento, fundante de qualquer processo educativo”, adverte o professor e pesquisador Francisco Foot Hardman, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“A estupidez humana, se não é socialmente controlada, não possui limites. Fiquemos agora com a menina de 11 anos, Kayllane, praticante de candomblé e apedrejada na Vila da Penha, Rio de Janeiro, fato ocorrido em junho de 2014”, relembra o professor. “Este é o Brasil real em que vivemos, onde a barbárie moderna está plenamente instalada, com todos seus ingredientes de intolerância-violência”, complementa.

Mais do que pensar simplesmente uma intolerância que é sensível aos olhos, como no caso acima citado, há processos muito mais sofisticados de negação das alteridades que se materializam em sistemas biopolíticos. “Quem, afinal, dá a última palavra, o eleitor-cidadão, ou as finanças-corporações? O sistema político eleitoral, como um todo, esgotou sua capacidade de refletir uma democracia representativa digna desse nome”, avalia. “O PT passou a ser não um partido do governo, mas governado. É um impasse muito grave. Mas apostar na fúria dos coxinhas como alternativa de poder é dar um passo na direção do aventureirismo oportunista mais arriscado e sórdido”, reflete.

Francisco Foot Hardman é bacharel em Ciências Sociais - Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e licenciado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Realizou mestrado em Ciência Política pela Unicamp e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é professor da Unicamp, atuando como docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem - IEL, desde 1987. Recebeu, em 2011, o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico Zeferino Vaz e, em 2012, o Prêmio de Reconhecimento Docente pela Dedicação ao Ensino de Graduação, ambos da Unicamp. É autor de várias obras, entre as quais destacamos Morte e Progresso: Cultura Brasileira Como Apagamento de Rastros (São Paulo: Unesp, 1999), Nem Pátria, Nem Patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil (São Paulo: UNESP, 2002 - 3ª edição), Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva (São Paulo: Companhia das Letras, 2005 - 2ª edição), A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna (São Paulo: Editora Unesp, 2009).

Confira a entrevista.
 
IHU On-Line - Há nexos entre a intolerância e a modernidade? Por quê? Até que ponto isso é um paradoxo?
Francisco Foot Hardman - Com a modernidade-mundo, entendida como a expansão em nível planetário do capitalismo comercial, industrial e financeiro a partir da Europa Ocidental e desde o século XV. A chamada globalização nas últimas décadas nada mais é do que a continuidade e aceleração desse processo, com a “financeirização” da economia em todos os continentes e a submissão do trabalho e da produção ao capital fictício, ou seja, à reprodução em escala ampliadíssima e velocíssima, virtual-real, do esquema de valor Dinheiro-Dinheiro. Esse cenário, diga-se de passagem, foi visionariamente previsto por Karl Marx,  ainda na segunda metade do século XIX, quando dele somente se vislumbravam traços e tendências. Sua consequência mais determinada e incontornável é a transformação de coisas, pessoas, instituições e relações sociais em mercadorias, em valores comparáveis e intercambiáveis tendo como medida e equivalente geral o Coringa, o Mamon, o Deus-Dinheiro. Não há propriamente paradoxo, pois a contradição é intrínseca a todo esse processo e ao sistema de trocas entre desiguais que gera, alimenta e reproduz. A intolerância, em todas as esferas da vida social, é apenas um aspecto do confronto entre regimes sociais voltados para a submissão das vontades dispersas e todas as manifestações de diferença, diversidade, dissidência, oposição e crítica que ainda teimam em existir e lutar contra a negação dessa existência-ainda-não-submissa. 
 
IHU On-Line - Quais são os pensadores fundamentais para discutirmos e pensarmos a temática da tolerância/intolerância?
Francisco Foot Hardman - Bem, a lista poderia ser enorme. A questão é por demais geral e possibilitaria programas inteiros de cursos voltados ao seu estudo. 

Numa visada contemporânea, de inventário lexical e conceitual, não poderia deixar de recomendar o trabalho dirigido pela filósofa italiana Michela Marzano,  cuja edição mais acessível saiu na França (Paris, PUF, 2011), intitulado Dictionnaire de la violence. São mais de 1.500 páginas de um esforço de pesquisa notável, feito por equipe das mais competentes. Lembro também das obras do sociólogo da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Michel Wieviorka,  que reflete, sempre em interface com a filosofia e a psicanálise, sobre os novos paradigmas da violência. Historicamente, não há como fugir de Karl Marx, ele continua a ser “o cara” na antevisão de um mundo dominado pelos delírios e cegueiras do fetiche-mercadoria, e de todas as violências cometidas em nome desse ídolo maior. Em torno à geração de pensadores que inspiraram e foram inspirados, ao mesmo tempo, pelos ares de 1968, eu citaria, em registros e tradições diversas, mas ambas interessantes, Herbert Marcuse  e Michel Foucault.  E para ficar com autores ainda mais contemporâneos e diversos entre si, eu lembro, para completar essa brevíssima listagem, do paquistanês editor da New Left Review, Tariq Ali,  grande analista do choque entre os fundamentalismos ocidental e oriental; do filósofo-filólogo italiano Giorgio Agamben,  cujo ceticismo em relação à brutalidade do tempo presente está cada vez mais impregnado de um retorno a tradições judaico-cristãs primordiais; e do filósofo-polemista alemão Peter SloterdijK,  cujo ceticismo em relação ao cenário caótico global vem sendo por sua vez modulado pela busca de razões esquecidas nas civilizações antigas da Índia e da China, em especial na sua formulação inusitada de um “euro-taoísmo”.
 
IHU On-Line - Por que a intolerância é a antessala da violência?
Francisco Foot Hardman - Alguma dúvida? A intolerância é a recusa frontal ao espaço da linguagem e da palavra, que é sempre dialogal. É a negação do princípio do conhecimento, fundante de qualquer processo educativo. E quem não tem argumento, tenta superar essa inferioridade indo para a porrada. Fiquemos num exemplo histórico, para mim extremamente didático na sua clareza sinistra, na violência que já se revela nos seus próprios termos. Os franquistas espanhóis, versão canhestra e provinciana do fascismo italiano, este por sua vez a caricatura terrível do nazismo alemão, adotavam entre seus slogans diletos: “Morte à inteligência!”. É preciso explicar mais?... A estupidez humana, se não é socialmente controlada, não possui limites... Fiquemos agora com a menina de 11 anos, Kayllane, praticante de candomblé e apedrejada na Vila da Penha, Rio de Janeiro, fato ocorrido em junho de 2014. Este é o Brasil real em que vivemos, onde a barbárie moderna está plenamente instalada, com todos seus ingredientes de intolerância-violência.
 
IHU On-Line - E em que aspectos a violência é a negação da política? Nesse sentido, vivemos um tempo em que a política vive no leito de morte?
Francisco Foot Hardman - A política, no sentido originário da polis, é a arte da convivência e da resolução dos conflitos na cidade. Pressupõe espaço público, debate, confronto dialógico das diferenças, reunião, deliberação por mecanismos de voto, representação, etc. Este modelo está evidentemente em crise, em todo o mundo, em ritmos e aspectos diferenciados. A violência é a negação primária desse conceito e das práticas que lhe são próprias. O filósofo Paulo Arantes,  no seu belo livro O novo tempo do mundo (Boitempo, 2014) fala no fim da temporalidade histórica própria da modernidade, tanto na era das revoluções quanto contrarrevoluções, introduzindo a ideia de um “tempo das insurgências”, onde a violência dos aparatos repressivos estatais, mais ou menos democráticos, alterna-se com os levantes dos despossuídos de todos os quadrantes. Dá sem dúvida o que pensar, e muito. Mas eu prefiro ainda pensar numa micropolítica das resistências sociais e ecológicas. Quando concedo aqui esta entrevista à revista do IHU estou fazendo política. E as pessoas que puderem, para minha felicidade, ler essas linhas e páginas, também estarão fazendo política. Frágil, é verdade, insuficiente para mudar estruturas sólidas de poder, mas necessária como novo momento de aglutinação de vontades humanas dispersas e não submissas ainda aos mais requintados mecanismos de “morte da inteligência”. 
 
IHU On-Line - Nessa perspectiva, como analisa o cenário político brasileiro, sobretudo no que diz respeito à última eleição presidencial e aos protestos ocorridos este ano?
Francisco Foot Hardman - Quem, afinal, dá a última palavra, o eleitor-cidadão, ou as finanças-corporações? O sistema político eleitoral, como um todo, esgotou sua capacidade de refletir uma democracia representativa digna desse nome. A propaganda oficial foi um espetáculo digno de regimes autoritários, tanto no campo petista quanto no tucanato. A explosão de manifestações de direita ou até extrema-direita, a partir de março passado, espelham um retrocesso possibilitado também pelo imobilismo e alianças espúrias do Partido dos Trabalhadores. O Congresso Nacional, para não falar da maioria dos legislativos estaduais, está hoje dominado pelas forças mais reacionárias do país. E o partido governista, e com ele o Governo Federal, caminham a reboque da claque peemedebista que passou a controlar hegemonicamente a Câmara e o Senado. A tese da “governabilidade” decantada em prosa e verso desde os tempos do estratego Zé Dirceu  esboroou-se diante dos interesses imediatistas do clientelismo e do patrimonialismo. O PT passou a ser não um partido do governo, mas governado. É um impasse muito grave. Mas apostar na fúria dos coxinhas como alternativa de poder é dar um passo na direção do aventureirismo oportunista mais arriscado e sórdido. Aécio Neves tem apostado nessa via. Poderá um dia vencer e logo a sociedade verá quebrar suas ilusões. Isso se ele não quebrar a cara muito antes. Já o PMDB mostra-se hoje como herdeiro mais promissor da ditadura militar: de oposição oficial consentida passou a organismo federado de velhas e conhecidas oligarquias, um balcão de negócios sem nenhum escrúpulo. A grande obra peemedebista, hoje, chama-se shopping center parlamentar. Nada mais didático ou ilustrativo.
 
IHU On-Line - Em que medida a superficialidade e a irracionalidade disseminadas pelas redes sociais servem como combustível para o radicalismo e a incivilidade?
Francisco Foot Hardman - Durante a ditadura militar, e isso vale em geral para regimes autoritários ou totalitários, a censura geral da informação era uma maneira eficaz de controle social. Já no momento “democrático” presente, e isso não é apenas um “caso brasileiro”, a censura faz-se, ao contrário, pelo excesso de “informação”, pelo excesso de “participação”, de “comentários” infinitos, produzindo uma grande ilusão de igualdade que escamoteia as verdadeiras cadeias do poder estatal-corporativo-midiático. Xinga-se livre e impunemente, proclama-se a morte do adversário pela impotência de discutir qualquer ideia, conceito ou projeto. A desinformação geral e ampla, aliada à falência dos sistemas públicos de educação, são matéria-prima da ignorância e do preconceito tornados nova ditadura de opiniões. Da intolerância e violência verbais e virtuais à violência física concreta, é apenas um pulo. E todos ficam eufóricos nessa explosão egoico-fascitoide de “eus-mínimos” (cf. Christopher LASCH). Nada mais sintomático da barbárie moderna e civilizada do que tal fenômeno. 
 
IHU On-Line - Pode-se falar em um esgotamento do modelo político que experimentamos? Quais são as raízes desse esgotamento?
Francisco Foot Hardman - Estou convencido de que o regime político instaurado pós-ditadura militar, em 1985, e denominado algo ufanisticamente de “Nova República” pela Constituição de 1988 que o legalizou e legitimou, esgotou seu ciclo histórico. As raízes dessa crise geral vêm de longe, mas suas contradições se acirraram nos dois últimos anos. O atual regime político pode até sobreviver por algum tempo, mas será aos trancos e barrancos e cada vez mais permeado por crises institucionais e socioambientais insolúveis. Por isso vejo que os movimentos sociais, as forças de esquerda e coletivos mudancistas devem juntar esforços no sentido da luta por uma Assembleia Constituinte livre, soberana e exclusiva. Tarefa dificílima, mas o único processo que pode levar a uma transformação da conjuntura no sentido de uma democracia social efetiva.
 
IHU On-Line - Até que ponto a intolerância descamba em desigualdade e, por conseguinte, em injustiça? 
Francisco Foot Hardman - Diria que muito mais as desigualdades sociais seculares, essas sim descambam no mais das vezes em intolerância e violências as mais funestas. E também em injustiça “estrutural”. Basta ver a composição social e étnica da nossa população carcerária, que agora em junho, segundo o Conselho Nacional de Justiça, ultrapassou a marca dos 700 mil e se tornou a terceira maior do mundo, para se ter uma radiografia da justiça desigualmente aplicada contra pobres, pretos e mestiços.
 
IHU On-Line - Em que aspectos o entrecruzamento de diferentes crises é um dos esteios da situação de intolerância que experimentamos em termos civilizacionais?
Francisco Foot Hardman - Sim, creio que vivemos uma confluência de crises conjugadas e interativas em seu poder de reprodução ampliada. De um lado, o par crise política—crise econômica. De outro, o par crise social—crise ambiental. Esses dois pares de contradições e crises interligadas articulam-se num conjunto mais complexo, que pode levar ou está levando para um colapso mais profundo e sem retorno da vida individual e coletiva. Aqui, afinal, não estamos sós. Os dilemas e impasses cá comentados espraiam-se, em graus e manifestações diversas, por todo o planeta. A globalização, longe de ser a do Estado de Direito ou Estado do Bem-Estar (já nem se cogita da utopia socialista soterrada a partir da queda do muro de Berlim em 1989), tem muito mais para ser a do Estado de Tragédia Humanitária Permanente ou a da normalidade como Estado de Exceção. Cerca de 60 milhões de refugiados no mundo, em 2014, por motivo de guerras, perseguições religiosas, étnicas, nacionalistas ou mudanças climáticas extremas. Este número, agora mesmo divulgado pela ONU, excede em muito todos os outros registros estatísticos feitos pela agência. Imagina-se, ingenuamente, às vezes, que estamos longe desse quadro. Não estamos mais. Fazemos parte inerente dele. Nossos índices de homicídios são recordistas em qualquer ranking entre nações conflagradas. O Haiti, definitivamente, também é aqui.
 
IHU On-Line - Qual é a atualidade das contribuições teóricas de Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda para compreendermos as raízes da intolerância no Brasil e a situação política atual?
Francisco Foot Hardman - Gilberto Freyre  foi um dos maiores pesquisadores sociais e prosadores literários no Brasil do século XX, no gênero do ensaísmo histórico-cultural. Mas não esqueçamos, sua perspectiva sempre foi conservadora. Sua ideia de democracia racial poderia ser boa para a casa-grande, mas sempre foi ruim para a senzala. Nos anos 1970, quando me formei, Freyre era barrado no baile da maior parte dos cursos de ciências humanas no Brasil, por sua simpatia à ditadura militar no Brasil e ao salazarismo e colonialismo português. Depois, em tempos democráticos, quando o liberalismo conservador norte-americano penetrou como nunca nas ciências sociais brasileiras, passou-se a glamourizar sua figura, junto com certa revisão mais adocicada da escravidão colonial. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Trata-se de autor fundamental, mas não é demônio nem santo. Sérgio Buarque de Holanda  possui, afora também toda sua glamourização atual, traços de muitas afinidades eletivas com Gilberto Freyre, inclusive na matriz comum de um conservadorismo romântico que perpassa a ambos. Por mais que tenha querido se desvencilhar de uma ideia mitológica acerca da “cordialidade brasileira”, ao polemizar com Cassiano Ricardo,  entre outros, o impasse dessa construção persiste. E seu apego a outro mito da ideologia paulista, o do bandeirantismo, é realmente um caso sério. Maria Sylvia de Carvalho Franco,  minha estimada orientadora de doutorado em filosofia na Universidade de São Paulo - USP, tem sido uma crítica pioneira e corajosa na desconstrução do ora mito “Sérgio Buarque de Holanda”. Além de ter sido ela própria uma arguta analista das raízes do poder agrário capitalista no Brasil, com seu clássico estudo Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Editora Unesp, 1997 – 4ª edição), que vai muito além dos dualismos recorrentes nas leituras sobre a nossa formação social, sejam os de matiz marxista mecanicista, sejam os de certa sociologia funcionalista. Dos três autores citados, Raymundo Faoro  em Os donos do poder (Rio de Janeiro: Editora Globo, 2001 – 3ª edição) produz a análise mais bem acabada acerca das origens e desenvolvimento do patrimonialismo rural e logo como aspecto organizador das estruturas burocráticas do poder de Estado. Seu estudo até hoje é dos mais atuais ao desvelar as mazelas de nosso sistema político tão moderno em seu vigoroso arcaísmo.
 
IHU On-Line - Como analisa as manifestações de intolerância em nosso país em relação aos povos originários, aos afrodescendentes e aos homossexuais? Qual é a racionalidade que move os ódios contra essas pessoas?
Francisco Foot Hardman - Nenhuma racionalidade, o ódio é sempre expressão da irracionalidade constituinte de boa parte de nossa vida psíquica, já antevira Freud.  As manifestações contra os grupos acima referidos é a negação dos seus respectivos direitos à plena inclusão na sociedade nacional. O ódio nasce sempre do desconhecimento e do medo do outro. Mas isso não é fenômeno específico do Brasil, basta ver, por exemplo, o comportamento racista, machista e, no limite, fascista, de tantas torcidas futebolísticas mundo afora.


Ver, olhar, contemplar

01/09/2015  |  domtotal.com

De todos os sentidos, talvez o da visão seja o mais ambíguo e arriscado.  O que mais engana, o que mais finge efeitos especiais que não são reais.  E, no entanto, trata-se de um sentido fundamental, o veículo da luz para o corpo e para a vida inteira.  O que seríamos sem os olhos, sem o olhar, sem a capacidade de perceber a beleza, as cores, os seres vivos?

A Bíblia fala sabia e belamente da importância deste sentido.  O desejo mais profundo do ser humano, segundo os textos bíblicos, é "ver a Deus".  O salmista suspira por essa visão e geme porque ela tarda: "Quando irei ao encontro de Deus e verei tua face, Senhor?" Ver a face do Senhor é abismar-se na contemplação de uma beleza que não tem fim, de um mistério que é dinamismo que impulsiona a vida, e ao mesmo tempo aconchego que a protege e cultiva, alimenta, nutre e acalanta. 

Em meio a uma vida fragmentada e ameaçada, com a morte como horizonte obrigatório e temido, o ser humano anseia por essa visão que não terá fim.  A fé, que é um caminhar ainda sem ver, incute no ser humano a certeza a respeito do que ele não vê e o faz prosseguir no caminho, mesmo sem enxergar.  Por isso a Bíblia tanto valoriza a escuta, que permite andar sem ver, e crer sem vislumbrar o objeto de Amor que o coração deseja e por cuja visão anseia. Por isso igualmente o ver é tão posto sob suspeita na Escritura, uma vez que ele sozinho, desvinculado de uma escuta obediente e atenta, pode conduzir ao caminho desviado da idolatria e das imagens enganosas.

Para nós que vivemos em uma cultura da imagem, esses matizes bíblicos sobre a importância do olhar, do ver, do contemplar podem ser de grande valia.  Vivemos acossados de todos os lados por imagens que procuram invadir, sem ser convidadas, nossos sentidos e deles apossar-se.  Em todo o decurso do dia, somos instados a olhar, ver coisas, objetos, luzes, que nos despertam sensações, desejos e dinamizam todas as dimensões de nosso ser.

É tanto a olhar que muitas vezes não se consegue ver.  Sim, parece sem sentido, mas é isso mesmo que se quer dizer.  Perdidos em meio a uma abundância de estímulos visuais, poluídos pela superabundância de imagens, corremos o sério risco de não mais ver, enxergar, o que é mais importante.  Não ver o que se encontra para além do imediatamente visível, não ver a identidade mais profunda, não ver o sentimento exposto, a alma em carne viva, o sonho machucado.  Não ver o verdadeiro rosto do outro, da outra e permanecer apenas em sua aparência.
A experiência humana de olhar não se transforma em ver realmente se não consegue atravessar a floresta de imagens que se oferecem sem cessar a nossas retinas e aportar naquilo – ou melhor dito – naquele ou naquela que é digno de ser visto.  É então que fazemos a passagem do olhar e do ver para o contemplar.  É neste momento que nossos olhos deixam de ser simplesmente um sentido biológico e corpóreo, para ser um sentido espiritual, transcendente.

Os antigos olhavam o universo e viam nele a presença de deuses, semideuses, divindades várias que povoavam cada astro, cada planta, cada animal e a tudo dava sentido.  A modernidade trouxe consigo o desencantamento deste mundo que desde muito tempo a humanidade concebeu como povoado de deuses.  Chamou as coisas por nomes racionais, proclamou em alto e bom som que estávamos sozinhos, entregues à realidade de nossa condição humana, finita e mortal.

A partir daí, nos foi dito e ensinado que não havia mais que gastar tempo buscando olhar para além das coisas visíveis a fim de experimentar o Misterioso, o Invisível.  Mais valia permanecer no visível, no alcançável, no tangível, para não se iludir, não se enganar, não se transviar. E neste vazio o enlouquecimento da imagem, a sociedade do espetáculo penetrou e nos fez seus reféns.

Hoje, ensinados pela implacável racionalidade moderna, mas também mais lúcidos sobre seus limites e patologias, procuramos com grande esforço redescobrir a contemplação.  E sentimos que é necessário reeducar nosso olhar, para que então possamos ver um mundo re-encantado, grávido, prenhe de beleza, de presença, de sentido. Entramos em um segundo noviciado para reaprender a ser contemplativos.

E nesse aprendizado experimentamos, como o grande Agostinho de Hipona, que Aquele que de Si mesmo disse ser a Luz do mundo, relampejou e afugentou nossa cegueira. E capacitou-nos, então, a ver a beleza do mundo em sua abundante generosidade, mas também em seus signos invertidos.  É bom não esquecer e ter olhos para ver que o mais belo dos filhos dos homens não tinha graça nem beleza que pudesse atrair os humanos olhares, porque fora reduzido a nada pelo amor.  A única beleza digna de contemplação, digna do olhar re-encantado pela contemplação, é o amor.

Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

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