As cigarras têm uma vida interessante. Dizem que uma cigarra, antes de viver o seu dia de cantoria, passa um ano inteiro debaixo da terra preparando-se, uma preparação minuciosa e demorada que tem como meta um único dia de canto. A cigarra canta até morrer. A meta específica da sua espécie é o canto e para isso cada cigarra se prepara. O recolhimento no silêncio na terra é o momento da fabricação do canto.
Aqui vem à lembrança palavras do nosso Vinícius de Moraes, que afirmam que, para fazer um samba, é preciso ter uma boa dose de dor no coração. Ele tem razão. Até a alegria do canto, para ser verdadeiramente alegre, precisa ter esbarrado na dor. Só sabe se alegrar de fato, aquele que soube sofrer. Caso contrário a alegria é vazia, sem razão. E por isso vai embora fácil.
Essa mesma dinâmica da cigarra e do samba é fundamentada na mensagem divina do Mestre de Nazaré. O seu anúncio, de forma metafórica, era claro: “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, não produzirá fruto” (Jo 12). O seu testemunho, de forma radical, foi convincente: Ele abraça a cruz, entrega a sua vida, “traz a vida e vida em abundância” a todos (Jo 10).
A pandemia que estamos vivendo, está sendo uma experiência de cigarra: “o ano de preparação no silêncio da terra”; também, está sendo uma experiência de compositor de samba: “a dor no coração”; ainda, está sendo uma experiência de grão de trigo: “a caída na terra e consequente morte”. Essas experiências são doloridas. Exigem silêncio, dor e caída/morte.
Quanto tempo de silêncio nesta pandemia! Um silêncio que a humanidade tinha desaprendido a fazer em nome do barulho da grandeza falsa e ilusória. Quanto tempo de dor nesta pandemia! Uma dor que a humanidade descartava em nome da alegria do sucesso líquido e fácil. Quanto tempo de caída/morte nesta pandemia! Uma caída/morte que a humanidade relativizava em nome da vida finita e ilusória.
A pandemia pode/deve tornar-se uma orquestra em movimento. Nela, cada instrumento tem sua partitura definida e precisa ser ensaiada em vista da harmonia do todo. Ao assistir sua apresentação, então estamos presenciando um resultado que levou tempo para ser alcançado. Quanto tempo de silêncio para a preparação em vista do evento, quanto tempo de dor na espera para o parto da apresentação e quanto tempo de caída/morte para a experiência da conquista da ressurreição.
Se não formos capazes de reaprender a fazer silêncio, de reabraçar a dor e de revivenciar a queda/morte, nesta pandemia, como será a apresentação final da orquestra pandêmica? Poderá apenas ser mais um desastre! Mas também poderá ser um acontecimento único na história, onde a humanidade inteira sairá mais elevada.
A humanidade não deve ter medo da orquestra da pandemia, mesmo com silêncio, com dor e com queda/morte.
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas