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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
03.09.2014 | 10:48 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Os textos propostos para esta semana são bem diferentes um do outro. Contemplando, porém, os dois grandes polos que procuramos trabalhar enquanto Capelania Universitária, eles se complementam e conversam entre si. Vale, pois, recordar essas duas grandes vertentes que constam de nossas Linhas gerais de atuação na UCPel: “favorecer a experiência de uma fé amadurecida, própria de cristãos(ãs) adultos(as), em conformidade com o mundo crítico universitário onde estamos inseridos” e “estabelecer, a partir de nossa identidade cristã/católica, um diálogo construtivo e respeitoso com as diferentes manifestações culturais e religiosas que o mundo contemporâneo comporta, especificamente no ambiente universitário”.

Por vias diversas as duas perspectivas (foco mais diretamente eclesial; e inserção dialogante no conjunto da sociedade brasileira tão plural, no espírito do serviço, para além do horizonte explícito da Fé) se encontram justamente lá onde a questão política de fundo e a necessidade da reforma política se impõem, a saber, a exigência da construção histórica do bem comum, a primazia do social sobre o econômico, o primado da exigência de mais vida para a pessoa humana sobre a nefasta dinâmica do mercado compreendido desde atributos divinos (eternidade, onisciência, onipotência,...).

O primeiro artigo presta uma homenagem ao economista Celso Furtado, aos dez anos de sua morte. E afirma a atualidade do seu pensamento: “os verdadeiros objetivos do desenvolvimento não serão alcançados no Brasil na ausência de uma política social deliberada”.

Na sequência, trazemos trechos da exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). Escolhemos justamente partes do capítulo sobre a dimensão social da Evangelização. De forma sintética, o papa Francisco discorre sobre os princípios humanistas que devem nortear a economia e a política.

Que nesta Semana da Pátria a nossa leitura e reflexão renovem em nós o compromisso democrático e cidadão.



A economia política, histórica e brasileira de Celso Furtado

(Instituto Humanitas / Unisinos (IHU), Notícias Diárias, 27 de agosto de 2014)

Oscar Pilagallo, jornalista e autor de “História da Imprensa Paulista” e “A Aventura do Dinheiro”, em artigo publicado pelo jornal Valor, 26/08/2014, comenta a reedição dez anos após a morte de Celso Furtado, do livro deste, "Obra Autobiográfica", num único volume.

Eis o artigo.

Reformar ou revolucionar? No início dos revolucionários anos 60, o reformista Celso Furtado (1920-2004) foi levado a refletir sobre a questão.

“É evidente que ‘reformar’ a escravidão é uma indecência", escreveu o economista em sua “Obra Autobiográfica”. “Mas foi eficaz, pelos resultados que produziu, reformar as sociedades europeias que se industrializaram a partir da metade do século XIX”.

Furtado tinha ciência dos limites de uma reforma que apenas melhorasse aspectos do capitalismo, mas temia o perigo da alternativa mais radical, a revolução. “Se o reformismo é de curto alcance, o que dizer dos riscos a que se expõe uma sociedade que se embrenha pela via revolucionária?”, perguntou o autor, que tinha em mente a ameaça de a necessária ruptura institucional conduzir ao “desfiladeiro que desemboca na tirania”.

Quem levou o intelectual a meditar sobre a bifurcação ideológica foi o filósofo francês Jean-Paul Sartre que, em fins de 1960, fez uma conferência no Recife, onde Furtado instalava a recém-criada Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).

Como consequência da precariedade da organização do evento, que não providenciara intérprete, Furtado acabou se oferecendo para a função. Sem conhecer o tradutor, Sartre criticou a nova abordagem brasileira para a crise secular do Nordeste, dizendo que a iniciativa, por ignorar o essencial, era mais uma “plaisanterie” do que “verdadeira política”.

Na saída, Furtado deu carona a Sartre. Dirigindo sua caminhonete a caminho de Boa Viagem, o superintendente da Sudene se apresentou ao existencialista como o responsável por aquilo que ele qualificara de "piada". Para lhe poupar o constrangimento, o economista disse saber que era modesto o alcance do que fazia, mas que, mesmo assim, enfrentava grandes dificuldades criadas por latifundiários.

A crítica de Sartre fora feita de uma perspectiva revolucionária. Como acabara de dizer à plateia pernambucana, só o marxismo dava conta dos problemas do mundo. Furtado, porém, notou especialmente a ressalva do francês, que "obtemperou que o marxismo havia deixado de lado o homem".

Após se despedir do filósofo, Furtado caminhou pela praia, matutando sobre suas palavras. “O pensamento de Sartre somente estaria completo se começássemos pelo fim de sua exposição”, escreveu. “Em primeiro lugar está o homem, que não é apenas um produto das relações sociais e que aspira [...] a assumir sua criatividade. Essa premissa limita consideravelmente o alcance dos processos revolucionários”.

O relato do encontro com Sartre  -  cujas circunstâncias fariam os dois rirem em Paris, anos mais tarde, quando Furtado lá esteve exilado  -  é exemplar do enfoque do livro de memórias de um dos economistas brasileiros mais importantes da segunda metade do século XX. Furtado começou a escrevê-lo a partir de notas sobre o debate em torno do subdesenvolvimento. A obra quase evoluiu para uma história das ideias, mas o “desvio ambicioso” foi corrigido a tempo, dando lugar a um testemunho pessoal, que “ganha relevância quando inserido no contexto histórico, em particular se o cronista é personagem do drama”.

O livro se concentra nos anos 50 e 60, quando Furtado foi protagonista da cena política brasileira. Além de ter sido a força intelectual por trás da criação da Sudene, Furtado já escrevera um clássico da interpretação do país, “Formação Econômica do Brasil”. Além disso, assessorou o presidente Juscelino Kubitschek, influenciando-o, com suas posições nacionalistas, a romper com o Fundo Monetário Internacional em 1959. Foi também o primeiro ministro do Planejamento de João Goulart, para quem elaborou o Plano Trienal, que teve papel importante na vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963.

Agora reeditada, a “Obra Autobiográfica” ganha uma versão mais enxuta e fiel ao propósito original do autor. Com a eliminação dos contos da juventude, em que Furtado registra sua fugaz experiência em 1945, na Itália, como membro da FEB (Força Expedicionária Brasileira), e dos textos escritos para publicações da Unesco e do Banco Mundial, os três livros da edição dos anos 90 foram concentrados em um único volume.

A “Obra Autobiográfica” faz contraponto às memórias de Roberto Campos (1917-2001), “A Lanterna na Popa”, lançado em 1994. Os dois economistas representaram polos ideológicos opostos. Enquanto Furtado se formou no estruturalismo da CEPAL(Comissão Econômica para a América Latina), Campos abraçou o liberalismo que vigorou a partir de 1964. De acordo com a clivagem da época, a primeira corrente defendia uma saída desenvolvimentista para o subcontinente, enquanto a segunda apostava na estabilidade monetária.

No início dos anos 50, os dois tiveram uma trajetória comum. Campos chegou a convidar o colega para trabalhar com ele na criação do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e eles tiveram uma relação “harmoniosa”, segundo Furtado. A proximidade durou pouco. Quando Campos foi afastado do comando do banco, passou uma temporada nos Estados Unidos, de onde voltou convertido ao liberalismo. Enquanto isso, Furtado se manteve firme no terreno cepalino.

Apesar de rezarem por cartilhas excludentes entre si, Furtado e Campos às vezes se encontravam do mesmo lado em debates polêmicos. Sobre o Plano Trienal de Furtado, por exemplo, que tentou ao mesmo tempo acelerar o crescimento e conter a inflação, Campos disse ter sido “bastante ortodoxo”, apesar da “retórica antimonetarista de Celso”. E concluiu: “Costumava eu dizer-lhe que nada mais parecido com um monetarista do que um estruturalista no poder”. Com tiradas como essa, Furtado deve ter tido bons motivos para descrevê-lo como alguém que “sabia usar o picaresco com graça”.

O golpe de 64 lhes inverteu as posições no cenário político. Incluído na primeira lista de cassados, o até então governista Furtado se deslocou para Brasília, onde, para passar o tempo, enquanto aguardava para sair do país rumo ao exílio, lia “A Peste”, de Albert Camus. “Tirava os olhos do livro e via a cidade invadida por roedores enormes, a deslocar-se com grande rapidez, despejando no ar gases pestilentos”. O ex oposicionista Campos, por sua vez, bem relacionado com os novos governantes, assumia a pasta do Planejamento, que fora de Furtado.

Embora as memórias de Furtado se concentrem mais no homem público, a atividade intelectual também merece sua atenção. O autor comenta seus livros mais conhecidos. Sobre “Análise do Modelo Brasileiro”, que despertou grande interesse no início dos anos 70, ele conta que resultou de uma viagem ao Brasil para checar in loco o que ouvia no exílio sobre os êxitos do “milagre econômico”. Demonstrou que tal dinamismo “refletia a ação conjugada do Estado e das empresas transnacionais, e que a ação desses dois vetores se estava exercendo no sentido de concentrar a renda”.

À explicação, que se tornaria clássica, ele acrescenta que a perda posterior do dinamismo não interrompeu o processo de concentração, impondo a conclusão de que “os verdadeiros objetivos do desenvolvimento não serão alcançados no Brasil na ausência de uma política social deliberada”.

No aniversário de dez anos de sua morte, Celso Furtado continua atual.


A Alegria do Evangelho

(exortação apostólica Evangelii Gaudium, do papa Francisco,
sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, de novembro de 2013)


Capítulo IV: A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO

(nos 176; 186-192; 202-208)

176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. “Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar”.[140] Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.

[...]

II. A inclusão social dos pobres

186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.

Unidos a Deus, ouvimos um clamor

187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: “Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar [...]. E agora, vai; Eu te envio...” (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: “Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador” (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projeto, porque esse pobre “clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado” (Dt 15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre a nossa relação com Deus: “Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração” (Eclo 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?” (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: “Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo” (Tg 5, 4).

188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns: “A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças”.[153] Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.

189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.

190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque “a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos”.[154] Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples fato de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que “os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros”.[155] Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos crescer numa solidariedade que “permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino”,[156] tal como “cada ser humano é chamado a se desenvolver”.[157]

191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais  -  sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde  -  lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”.[158]

192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso “sustento” para todos, mas “prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos”.[159] Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.

[...]

Economia e distribuição das entradas

202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social,[173] não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto lhe permite servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.

204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento econômico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.

205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum.[174] Temos de nos convencer que a caridade “é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos”.[175] Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e econômica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.

206. A economia  -  como indica o próprio termo  -  deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo ato econômico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute no mundo inteiro; por isso, nenhum governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, e por essa razão a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns.

207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.

208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.

Notas ao texto da exortação apostólica Evangelii Gaudium

[140] Paulo VI, Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (08 de dezembro de 1975), 17: AAS 68 (1976), 17.
[...]
[153] Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução. Libertatis Nuntius (06 de agosto de 1984), XI, 1: AAS 76 (1984), 903.
[154] Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
[155] Paulo VI, Carta apostólica Octogesima Adveniens (14 de maio de 1971), 23: AAS 63 (1971), 418.
[156] P aulo VI, Carta enciclíca. Populorum Progressio (26 de março de 1967), 65: AAS 59 (1967), 289.
[157] Ibid., 15: o. c., 265.
[158] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Documento Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome (abril de 2002), Introdução, 2.
[159] João XXIII, Carta encíclica Mater et Magistra (15 de maio de 1961), 3: AAS 53 (1961), 402.
[...]
[173] Isto implica “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial”: Bento XVI, Discurso ao Corpo Diplomático (08 de janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73.
[174] Cf. Comissão Social dos Bispos de França, Declaração Réhabiliter la politique (17 de fevereiro de 1999); Pio XI, Mensagem, 18 de dezembro de 1927.
[175] Bento XVI, Carta encíclica Caritas in Veritate (29 de junho de 2009), 2: AAS 101 (2009), 642.

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