Para seguir nosso convite à reflexão, publicamos dois textos. O primeiro é um trecho da análise de conjuntura intitulada “Conjuntura da Semana". ‘O Capital no século XXI’: o desmonte das teses liberais e da economia neoclássica”. Tal análise, uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas pelo IHU, é elaborada em parceria entre o IHU e o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT), de Curitiba, e por Cesar Sanson (professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN), com a contribuição de André Langer (professor na Faculdade Vicentina, FAVI, de Curitiba / PR).
O trecho que reproduzimos dessa análise de conjuntura (e vale a pena consultar a versão completa) faz uma aproximação entre o pensamento desse autor e a reflexão que vem sendo desenvolvida pelo papa Francisco. Coerente com a já enraizada Doutrina Social da Igreja, o pontífice reafirma o quanto anunciar o Evangelho passa por construir relações justas na sociedade. Sem dúvida o Papa se baseia em pressupostos diferentes, pois seu ponto de partida é a fé em Jesus Cristo e seu foco é o anúncio que este faz do Reino de Deus. É interessante, porém, perceber como os estudos de um renomado teórico respaldam a posição eclesial.
O segundo texto é uma notícia sobre a PEC do Trabalho Escravo aprovada no Senado.
O texto altera o artigo 243 da Constituição Federal – que já previa a expropriação de terras usadas para o plantio de plantas psicotrópicas -, autorizando o Estado a desapropriar também os imóveis urbanos e rurais onde for constatada a exploração de trabalho análogo à escravidão.
Ambos os artigos foram publicados nas Notícias Diárias do IHU, nos dias 12 e 28 de maio de 2014.
Neste contexto, citamos o livro “Teologia da Revelação a partir da modernidade” (São Paulo: Loyola, 1992), especialmente às páginas 434-437, onde o teólogo João Batista Libanio, desenvolve a noção de “dupla modernidade”, mostrando a outra face do capitalismo (a saber, o seu lado de desigualdade e exclusão).
Boa leitura
Papa Francisco e Piketty: A desigualdade como a raiz de todos os males
Já está mais do que comprovado: Francisco é um papa que tem posição e que toma partido pelos mais vulneráveis. Até o momento, em seus pronunciamentos, não tem se eximido de falar sobre os principais problemas mundiais: fome, guerras, desemprego, os dramas dos refugiados e imigrantes, tráfico de pessoas, etc. Além disso, não abre mão de ir à raiz desses males, atacando o atual sistema econômico e a voracidade do mercado, que ao invés da solidariedade impulsiona a indiferença. É a chamada globalização da indiferença.
Não por acaso, a gritante desigualdade mundial foi o tema de um dos tuites de Francisco. “A desigualdade é a raiz de todos os males”, tuitou. A coincidência dessa mensagem com o atual momento de efervescência em torno da obra de Piketty evidencia certa consonância entre a análise deste economista e as diversas críticas que, desde o início de seu pontificado, o Papa vem fazendo ao atual modelo de sociabilidade e vida econômica.
Como bem frisou o editorial do NCR (National Catholic Reporter), “Francisco e Piketty veem a mesma condição humana, o primeiro através dos olhos da experiência e dos evangelhos; e o segundo, através de pilhas de documentos e planilhas”. O que Francisco “conhece a partir da experiência – e que está dizendo abertamente ao mundo – é que o seu povo não está comendo, enquanto que, relativamente, uns poucos super-ricos vivem num esplendor inimaginável”.
De acordo com Robert Christian, membro da organização Democrats For Life of America, as bases da crítica de Francisco à desigualdade mundial estão em seu documento Evangelii Gaudium. Nele, “o pontífice usa uma linguagem que é bastante semelhante à empregada em seu tuíte dentro do contexto econômico [...]. Condena a mentalidade libertária que enfatiza muito a autonomia e o individualismo e pede pela criação de estruturas sociais e políticas mais justas, que abordem as causas estruturais da pobreza. Ele é explícito em sua rejeição da abordagem que se baseia demasiadamente nos livres mercados: ‘Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado’ ”.
Em um paralelo, assim como as proposições de Piketty estão atordoando os que estão bem acomodados e satisfeitos com o atual sistema, o Papa, “assumindo de peito aberto as temáticas econômicas e sociais”, tem causado muito incômodo aos reacionários de plantão. Conforme analisou o jornalista Francesco Peloso, em matéria publicada no sítio Linkiesta, as críticas de Francisco “ao modelo capitalista expressadas no documento Evangelii Gaudium provocaram fortes reações dos think tanks conservadores do exterior, da direita católica norte-americana nostálgica do wojtylianismo, do Tea Party e daquela parte da imprensa que apoia a inoxidabilidade da religião neoliberal apesar da crise”.
O Papa já se manifestou criticando a promessa de que “quando o copo estivesse cheio, ele transbordaria, e os pobres seriam beneficiados com isso”. Na verdade, “o que acontece, ao invés, é que, quando está cheio, o copo magicamente se engrandece, e assim nunca sai nada para os pobres”. A preocupação do Papa com a desigualdade econômica demonstra a sua capacidade pastoral de se compadecer com a dor e o sofrimento daqueles que são os últimos na hierarquia social.
Movimentos sociais preveem disputa para regulamentar PEC do Trabalho Escravo
Nem a demora de 15 anos diminuiu o entusiasmo com que militantes reagiram à aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo no Senado. Aprovado por unanimidade, o texto altera o artigo 243 da Constituição Federal – que já previa a expropriação de terras usadas para o plantio de plantas psicotrópicas-, autorizando o Estado a desapropriar também os imóveis urbanos e rurais onde for constatada a exploração de trabalho análogo à escravidão.
A reportagem é de Alex Rodrigues e publicada pela Agência Brasil, 28-05-2014.
Para representantes de entidades ouvidas pela Agência Brasil, a disputa agora se dará em torno da regulamentação da proposta, em que, entre outras coisas, será explicitado o que é trabalho escravo. “A proposta de emenda foi aprovada por unanimidade porque a bancada ruralista tem certeza de que, na sequência, conseguirá aprovar uma regulamentação que vai tornar a PEC inócua. O jogo é esse”, disse à Agência Brasil o coordenador da campanha contra o trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Frei Xavier Plassat.
Ontem, após a aprovação da PEC, o senador Romero Jucá (PMDB-RR) afirmou que a regulamentação poderá ir à votação já na próxima semana. O senador é o relator do Projeto de Lei do Senado 432/13, que disciplina o processo de expropriação de terras, diferenciando o descumprimento da legislação trabalhista do que se entende por trabalho semelhante à escravidão. O projeto de regulamentação também prevê que a expropriação só seja autorizada depois que o proprietário da área tenha esgotado todos os recursos legais contra a sentença penal condenatória.
Presidente da organização não governamental Repórter Brasil, referência até mesmo para o Ministério do Trabalho quando se trata da coleta de informações sobre o trabalho escravo no país, o jornalista Leonardo Sakamotoclassificou a aprovação da PEC do Trabalho Escravo como uma conquista histórica dos trabalhadores brasileiros. Sakamoto lembrou que, apesar da PEC 57 ter sido apresentada em 1999, uma primeira proposta semelhante já havia sido protocolada no Congresso em 1995.
“Essa é uma discussão antiga. Com a PEC, a questão [do trabalho escravo] vai ser disciplinada. A PEC servirá como um elemento de dissuasão, fazendo com que alguns empregadores pensem um pouco mais”, disse Sakamoto, que também espera uma nova disputa, dessa vez em torno da regulamentação da proposta.
“A regulamentação é necessária, pois é preciso deixar claro quando e como a terra onde for flagrada o trabalho escravo e tudo o que houver nela será confiscado e o que será feito desses bens. Mas haverá uma grande disputa”, disse Sakamoto, garantindo que não há consenso em torno do projeto relatado por Jucá. Para o jornalista, não restam dúvidas quanto ao conceito de trabalho escravo contemporâneo – que vai além dos casos em que o trabalhador sofre violência física direta.
“O projeto ignora alguns aspectos já previstos no Código Penal, que já deixa muito claro o que é trabalho escravo. Não há, portanto, qualquer dúvida quanto ao que seja trabalho escravo. Isso é uma discussão bizantina que acaba por perpetuar a insegurança jurídica. O certo é que ainda não há consenso, de forma que acho uma leviandade cravar um prazo para que a regulamentação seja aprovada”, acrescentou o jornalista, afirmando que representantes do governo já discutem uma proposta regulamentadora alternativa que tem o apoio das organizações da sociedade civil.
Coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Luiz Antonio Machado disse que a aprovação da PEC reforça o compromisso do Brasil com a erradicação do trabalho escravo. “É mais um passo para chegarmos ao que queremos. Sobre a regulamentação, o que esperamos é que não haja retrocessos que afetem tudo o que já foi conquistado nos últimos 20 anos e que levou o país a se tornar uma referência no combate a esse mal”, disse Machado, destacando que a escravidão, hoje, não está associada apenas à restrição da liberdade de ir e vir, mas também a outros desrespeitos aos direitos básicos dos trabalhadores.
Em nota, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) informou que “em nenhuma hipótese aceitará que o conceito de 'trabalho escravo' seja alterado para beneficiar quem adota essa prática criminosa."
Entre 1995 e o final de 2013, a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, resgatou 46.478 pessoas submetidas a condições semelhantes à escravidão. No mesmo período foram inspecionados 3.741 estabelecimentos em todo o Brasil, o que resultou em mais de 44 mil atos de infração lavrados no período.