Ao contrário do que aponta o senso comum, linchamentos como o que vitimou a moradora de Guarujá (SP), a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, não podem ser vistos meramente como uma ação irracional. [Afirma a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Ariadne Natal]. A fim de instigar e convidar à reflexão, a Capelania propõe a leitura de uma reportagem sobre o último linchamento no Brasil que foi notícia na mídia nacional. Em seguida, indo ao encontro da temática do X Seminário de Direitos Humanos, realizado no mês de maio na UCPel, que tinha como tema central: Migrações e Justiça de Transição na América Latina, disponibilizamos uma entrevista especial com Duval Magalhães e Sidney da Silva, a respeito dos haitianos: os novos imigrantes do Brasil.
Linchamentos não são aleatórios e atingem mais pobres, defende pesquisadora
Ao contrário do que aponta o senso comum, linchamentos como o que vitimou a moradora de Guarujá (SP), a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, não podem ser vistos meramente como uma ação irracional. A conclusão é da pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Ariadne Natal, autora de tese sobre casos de justiçamentos sumários ocorridos na cidade de São Paulo e região metropolitana, entre 1980 e 2009.
A reportagem é de Alex Rodrigues, publicada por EcoDebate, 07-05-2014.
“Qualquer pessoa que tenha participado do linchamento da Fabiane vai dizer que tinha certeza de que a dona de casa era o mal encarnado. Que era preciso linchá-la para expiar o mal que atribuíam a ela. Ou seja, estão equivocadas ao acreditarem fazer justiça, mas não estão agindo irracionalmente”, sustentou a pesquisadora, em entrevista à Agência Brasil.
Destacando o fato de que a defesa do uso da violência como solução para os conflitos é prática recorrente na sociedade brasileira, Ariadne Natal defende que o caso da dona de casa deve servir de exemplo. “Exemplo de que a justiça não pode ser feita sumariamente. De que cabe apenas às instituições do Estado fazer justiça. E se essas instituições não estiverem fazendo isso a contento, o que a sociedade tem que fazer é aperfeiçoá-las”.
Após estudar 385 casos de linchamento que foram noticiados pela imprensa, entre 1º de janeiro de 1980 e 31 de dezembro de 2009, a pesquisadora concluiu que os participantes da ação acreditam em suas justificativas e não agem de forma aleatória, ao escolher aqueles que devem ser “justiçados”.
“Não é qualquer pessoa que pode ser desumanizada e, portanto, linchada. As potenciais vítimas de linchamento carregam consigo a marca daquele que pode, em última análise, ser eliminado”, aponta Ariadne, sugerindo que pessoas com maior poder aquisitivo suspeitas de cometer crimes semelhantes ao atribuído à dona de casa agredida, na noite do último sábado (3), gozam de uma rede de proteção mais eficiente. “Tanto que é muito raro identificarmos uma vítima de classe média entre as vítimas de linchamento. E não porque não haja, entre a classe média, quem cometa crimes”.
Ela destaca que a análise das causas de justiçamentos devem levar em conta dinâmicas macrossociais, como a falta de políticas de infraestrutura e habitacionais, que podem levar moradores de determinadas áreas a buscarem mecanismos privados para a resolução dos problemas.
Fabiane morava com o marido e dois filhos no bairro de Morrinhos, localidade que concentra famílias das classes C e D, e possuía alguma espécie de transtorno mental, conforme divulgado pela imprensa. Situação comum a outros casos analisados no estudo de Ariadne Natal. “São pessoas cujas atitudes os outros têm dificuldades para compreender”, aponta a pesquisadora.
“Lógico que nada disso é explicitado. Há diferentes justificativas para os casos de linchamento ao longo do tempo”. Na década de 1980, por exemplo, as motivações dos participantes estavam mais relacionadas a crimes contra a propriedade. Já na década de 1990, houve mais casos ligados a crimes contra a vida e os costumes, como o estupro.
Além disso, a partir da década de 1990, a polícia, quando acionada, passou a atender mais rapidamente esse tipo de ocorrência, reprimindo-a. “Por isso o número de casos de linchamentos que resultaram em morte eram maiores na década de 1980”. Quando a pesquisadora defendeu sua tese, em 2013, ainda não havia informações precisas sobre a primeira década deste século. Mesmo assim, Ariadne afirma que o perfil das vítimas de linchamentos mudou pouco ao longo do tempo. Embora o número de mulheres alvos dessas ações tenha aumentado, a partir dos anos 2000, os homens jovens continuam sendo as vítimas mais recorrentes. E quase a totalidade dos casos ocorre em regiões periféricas.
“O que está relacionado ao acesso que os moradores dessas áreas têm às instituições de Estado. Não só em termo de presença, mas, principalmente, quanto à qualidade dos serviços prestados por essas instituições. A tese da ineficiência do Estado é, portanto, um dos componentes que ajudam a explicar esses crimes. Mas há também a própria dinâmica das relações sociais nesses locais, onde as pessoas se conhecem e as informações transitam com maior facilidade”.
Outro diferencial é que, hoje, os linchamentos são frequentemente filmados e exibidos na imprensa e na internet. Foi o que aconteceu no caso de Fabiane. As cenas das agressões sofridas pela dona de casa vêm chocando o país. “O linchamento é sempre um evento público com caráter de exemplaridade. Faz parte do processo de humilhar a vítima expô-la sendo agredida. Como, hoje, há sempre alguém filmando, o que no passado ficaria restrito a um contexto local ganha uma maior dimensão. Essas imagens são fortes, mas a reação de quem as vê depende muito do filtro da percepção de cada um. Há muitos que, ao verem as imagens de um garoto algemado a um poste, sentiram-se satisfeitos e acharam pouco. A diferença no caso da Fabiane é que essas mesmas pessoas se comovem ao saber que uma pessoa inocente foi morta. Se ela de fato tivesse sequestrado uma criança, a reação seria diferente. E não deveria ser, pois estranho é o linchamento”.
A pesquisadora conclui que “Numa democracia, o que se espera é que as pessoas se mobilizem para melhorar as instituições e não para fazer justiça de forma sumária, sem dar aos suspeitos o direito à defesa. E, com isso, no afã de tentar fazer uma suposta justiça, comete-se grandes injustiças. E mesmo que a vítima tenha de fato cometido algum crime, isso não diminui o aspecto lamentável de um linchamento”.
Haitianos: os novos imigrantes do Brasil
(entrevista especial com Duval Magalhães e Sidney da Silva)
O ingresso massivo de haitianos na Amazônia demonstra que está ocorrendo um novo fenômeno no Brasil: a ascensão da imigração internacional. Para Duval Magalhães, doutor em Demogafia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas, a imigração atual é diferente daquela ocorrida no século XIX, quando imigrantes europeus vieram para suprimir a demanda por mão de obra na agricultura e na indústria. A imigração haitiana, explica, acontece em outro contexto internacional, e a participação do Brasil na missão de paz da ONU no Haiti pode ter favorecido a escolha dos estrangeiros.
Na avaliação de Sidney da Silva, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, a razão do deslocamento "tem a ver com a situação histórica de injustiças e pobreza impostas à população haitiana durante séculos". A atual situação econômica brasileira também contribui para o ingresso de imigrantes no país. Segundo ele, o Brasil apresenta-se "no imaginário deles" como um país próspero, onde é possível crescer e ganhar dinheiro. "As notícias de crescimento econômico no Brasil animam aqueles que se encontram numa situação de falta total de perspectivas", assinala em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
O fluxo migratório não irá se extinguir e, por esta razão, o Brasil precisa ter consciência e buscar soluções que considerem os direitos humanos dos imigrantes. "Está no momento de darmos a prova de que aprendemos a lição e mostrar ao mundo que, apesar da nossa ainda jovem democracia, temos a possibilidade de colocar os direitos humanos de todos acima da mesquinhez e falta de solidariedade, que sempre foi a marca registrada dos países desenvolvidos quando se trata da migração internacional", enfatiza Magalhães, na entrevista a seguir, concedida igualmente por e-mail.
Duval Magalhães Fernandes é graduado em Ciências Econômicas e mestre em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde também cursou o doutorado em Demografia. É pós-doutorado pelo Instituto Univesitario de Investigación Ortega Y Gasset. Atualmente, leciona na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e é professor visitante da Universidade Peruana Cayetano Heredia.
Sidney Antônio da Silva é antropólogo, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP e membro da Pastoral do Migrante e do Centro de Estudos Migratórios em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em quais contextos socioeconômicos haitiano e brasileiro se dá a migração de haitianos para o Brasil?
Sidney Antônio da Silva – Se, por um lado, o contexto haitiano é catastrófico do ponto de vista socioeconômico e político, sobretudo, depois do terremoto de janeiro de 2010 – cuja situação só piorou depois com a epidemia do cólera –, por outro, o Brasil apresenta-se no imaginário deles como um país grande e próspero, onde é possível ganhar dinheiro rápido, o que nem sempre corresponde à expectativas deles. É preciso considerar também que, diante da dificuldade de emigrar para outros países, cujo controle tem aumentado, o Brasil aparece entre aqueles onde tal controle não é tão rigoroso, sobretudo, na fronteira amazônica.
IHU On-Line – Qual é o perfil dos imigrantes haitianos que chegam à Amazônia? Por que eles estão migrando para o Brasil?
Sidney Antônio da Silva – Em sua maioria, eles são do sexo masculino, entre 20 e 35 anos de idade. A escolaridade é de nível médio, alguns com qualificação de nível técnico e outros com curso superior completo e incompleto. A razão da sua emigração tem a ver com a situação histórica de injustiças e pobreza impostas à população haitiana durante séculos. O terremoto de janeiro de 2010 agravou ainda mais a situação caótica já existente no país. Com a presença das forças de segurança brasileiras naquele país, a relação entre o Haiti e o Brasil se estreitou, abrindo, assim, uma possibilidade de ajuda àquele país. Em geral, a imagem que se veicula pelas redes sociais é a de que, em primeiro lugar, é fácil entrar no país, sobretudo pela fronteira norte (Tabatinga-AM), onde inicialmente eles pleiteavam um visto de refugiado, porém, o governo brasileiro passou a lhes oferecer um de cunho humanitário, já que o primeiro lhes daria mais direitos. Esta via tornou-se a principal porque a entrada via aeroporto seria mais cara e mais controlada, já que o Brasil passou a exigir visto de entrada no país. Por aquela via (fronteira com o Peru), a rota é menos complicada, já que aquele país não exige visto de entrada em seu território. Por outro lado, as notícias de crescimento econômico no Brasil animam aqueles que se encontram numa situação de falta total de perspectivas. Ao chegarem ao Brasil, eles recebem um visto humanitário que lhes dá o direito de tirar o CPF e a Carteira de Trabalho e também de terem acesso aos serviços de saúde publica. Porém, o grande problema da moradia e da alimentação no momento da chegada fica por conta da Igreja Católica, através da Pastoral do Migrante, a qual tem prestado um importante serviço de acolhida aos haitianos.
IHU On-Line – Que atividade essas pessoas vão desempenhar no Brasil? Qual é a perspectiva deles em relação à vivência no país?
Sidney Antônio da Silva – A inserção no mercado de trabalho é complicada, porque em geral eles não têm a qualificação exigida e os empregos disponíveis são aqueles relacionados à construção civil, serviços gerais no comércio, emprego doméstico, etc. Isto frustra a perspectiva inicial de conseguir um bom emprego e ganhar muito dinheiro para enviar às suas famílias que lá ficaram. Além da qualificação, a grande dificuldade para a inserção deles no mercado de trabalho é a barreira linguística, visto que todos falam o creole e a maioria o francês.
IHU On-Line – O senhor afirmou recentemente que a imigração tende a crescer e ser necessária no país porque a população brasileira irá diminuir nos próximos anos em função da queda da fecundidade. Como se dará esse processo migratório?
Duval Magalhães – Segundo dados das projeções do IBGE, espera-se que o Brasil entre em um processo de redução do número de habitantes em 2040. Em 2050 projeta-se uma população total para o país de igual valor à que será observada em 2029, caso as atuais tendências de queda da fecundidade e redução da mortalidade se mantenham. Este fato, semelhante ao ocorrido em vários países da Europa, indica que para, no futuro, se manter a oferta de mão de obra será necessário contar com os imigrantes.
Ao final de 2010, o empresário Eike Batista, em entrevista ao Programa 60 minutos da rede CBS, informava que está contratando trabalhadores americanos para as suas empresas frente à escassez de mão de obra especializada em algumas áreas no Brasil. Mais recentemente, o presidente da Petrobrás, falando aos secretários estaduais da Fazenda, levantou as necessidades da Petrobrás na contratação de mão de obra e que a empresa vem sistematicamente recorrendo à contratação de especialistas estrangeiros, pois não há disponibilidade no mercado nacional. Em resumo, a necessidade de "importação" de mão de obra já faz parte da preocupação de alguns empresários. No futuro, poderá ser uma demanda de vários setores, como aconteceu nos países do primeiro mundo.
IHU On-Line – A Amazonas foi um dos estados brasileiros a receber maior número de imigrantes regulares. Por que os imigrantes preferem esse estado?
Duval Magalhães – Em 2010, segundo dados do Ministério do Trabalho, 56021 estrangeiros receberam visto para trabalhar no Brasil. São Paulo e Rio de Janeiro são os estados que mais receberam estes estrangeiros 25.550 e 22.371, respectivamente. O estado do Amazonas ficou em quarto lugar com 1.164 solicitações de visto. No entanto, considerando a população do estado e a relação imigrantes/população, o Amazonas fica em segundo lugar, antes de Minas Gerais, o terceiro estado mais procurado. A maioria dos vistos é concedido aos estrangeiros que buscam o Amazonas. Tal fato pode ser explicado pela concentração de empresas estrangeiras na zona franca de Manaus, importante pólo industrial da Região.
IHU On-Line – Qual é o significado da migração haitiana para a Amazônia? O que diferencia a migração de haitianos de migrações que ocorreram anteriormente?
Duval Magalhães – A chegada dos haitianos no Brasil de um modo geral é a demonstração clara de que o país iniciou a sua inserção no sistema das migrações internacionais, não só como país de emigração, mas também como de imigração. Mesmo que o volume desta imigração não possa ser considerado como uma ponta de um sistema consolidado, o fato não deixa de ser importante, pois permite à sociedade refletir sobre uma nova situação (a imigração internacional), buscando-se soluções e, o mais importante, buscando-se desenhar uma política pública. No caso específico de Manaus, o impacto da chegada destes imigrantes, quer seja no mercado de trabalho, quer na economia da cidade, é reduzido porque pois alguns não permanecem na cidade, e os que ali ficam conseguem ocupar postos de trabalho que estão em oferta e não preenchidos pelos trabalhadores locais.
Em se tratando de diferenciar a migração que ocorre hoje daquela do passado, o primeiro e talvez mais importante ponto é que quase um século separa estes dois momentos. No passado, a migração, em alguns casos, foi dirigida para suprir a demanda por mão de obra na agricultura cafeeira e, posteriormente, na indústria. Esta situação se inseria num processo mais amplo que levou a grandes fluxos migratório da Europa para as Américas, principalmente os USA.
No caso específico dos haitianos, o quadro da economia mundial é outro, assim como o é o papel desempenhado pelo Brasil na esfera da política internacional, uma vez que, juntamente com outros poucos países, é considerado um dos emergentes. Talvez um aspecto marcante que diferencia a situação da imigração, hoje, daquela observada no passado, seja a participação do Brasil na missão de paz da ONU no Haiti, o que pode ter contribuído para estreitar contatos, ampliar a curiosidade e desejo de conhecer o nosso país. Assim, pode-se dizer que a situação que experimentamos na atualidade, na migração internacional, nada tem a ver com o passado e nos coloca desafios na busca de novas soluções.
Em relação à escolha do Brasil pelos estrangeiros, é importante considerar que uma vez que o país faz coro com aqueles considerados emergentes, com situação econômica privilegiada em relação aos países centrais e, muito importante, como uma economia aberta, nada mais natural que a curiosidade, o desejo de investir no país e participar da situação econômica privilegiada leve as empresas e pessoas a buscarem o Brasil.
Ao lado deste aspecto e como bem lembrou o ex-presidente Lula, em discurso na III Conferência Brasileiros pelo Mundo, enquanto os imigrantes são considerados, em vários países, como a parcela "descartável" da população no momento de qualquer dificuldade econômica e social, durante a crise o Brasil promoveu a anistia, assinou o tratado de livre trânsito do Mercosul, dando exemplo de tolerância e fraternidade para com os estrangeiros que viviam no país
Sidney Antônio da Silva – Para a Amazônia é um fato novo, já que se trata da presença de imigrantes fora do continente americano. A imigração tradicionalmente conhecida é aquela do século XIX, que se deu no contexto do boom da borracha e que, depois da crise das exportações deste produto, os mais abastados migraram para outras regiões do país, ou seguiram para outros países, como é o caso dos Estados Unidos. Já a emigração oriunda dos países limítrofes, como do Peru, da Colômbia, da Venezuela, da Bolívia entre outros, é um fenômeno mais recente, ou seja, começa a se intensificar na segunda metade do século XX. É a primeira vez que a Amazônia, depois de muitas décadas, recebe imigrantes de fora do continente nesta condição e com tanta intensidade. Já são mais de mil só em Manaus. No Brasil, já se fala em mais dois mil. Porém, os números mudam todos os dias. A questão que se coloca é: Manaus terá condição de absorver tantos imigrantes, caso eles continuem chegando aos milhares?
IHU On-Line – Como é possível entender e compreender o fenômeno da imigração no século XXI, em plena era da globalização?
Duval Magalhães – Apesar dos números não serem muito eloquentes, estima-se que o total dos imigrantes no mundo seja de 200 milhões, aproximadamente 3,5% da população mundial. Considerando o fato de que este contingente é, usualmente, composto por pessoas jovens e em idade produtiva, que, na maioria dos casos, as questões econômicas estão no centro da tomada de decisão em relação à saída do país de origem e que no, mundo globalizado, há livre circulação de mercadorias e investimentos, devemos esperar que as trocas migratórias venham a se ampliar.
Ao mesmo tempo, novas situações como a circularidade dos imigrantes que passam a viver em dois países simultaneamente e mesmo a possibilidade de novos arranjos no mercado de trabalho, onde as empresas estimulam as diversas vivências dos seus trabalhadores, não há dúvidas que o quadro migratório do século XXI será diverso do até hoje observado.
Ao lado destas perspectivas ligadas ao mundo do trabalho, há de se considerar as mudanças climáticas e catástrofes naturais, como o caso do terremoto do Haiti, criando situações que merecem a atenção da comunidade internacional. Se aqueles que fogem das consequências destes eventos, que em alguns casos são fruto de agressões ao meio ambiente, não têm o status de refugiados, urge discutir a modernização do instrumento do refúgio para que estas pessoas possam ter alguma esperança.
Sidney Antônio da Silva – Para a antropologia, o fenômeno da migração, tão antigo quanto contemporâneo, deve ser visto e analisado como um "fato social total", pois ele movimenta tanta a sociedade de origem quanto a de chegada, ou seja, põe em movimento relações sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas, etc. Nessa perspectiva, a migração é um fenômeno social positivo, pois os migrantes vêm acrescentar novas experiências e valores.
Porém, para as análises economicistas, os migrantes são vistos apenas como força de trabalho barata, a qual deve ser descartada quando sua presença não for mais necessária para a economia local. É o que se vê em geral na Europa, EUA e Japão, países afetados pela crise capitalista. Desse ponto de vista, eles não são vistos como cidadãos, mas apenas como números.
IHU On-Line – O senhor percebe, no processo migratório, imigrantes que são bem-vindos e imigrantes indesejados nos países? Por que essa diferenciação acontece?
Duval Magalhães – Diversas são as questões que levam a uma boa ou má receptividade ao imigrante. Algumas etnias carregam um certo repúdio internacional, como, por exemplo, os ciganos. Outros são bem-vindos, dependendo do momento.
Na época da euforia econômica da Europa não havia tanto controle. Precisava-se da mão de obra. No caso da Espanha, foram os imigrantes que permitiram à população daquele país atingir 45 milhões de habitantes, sentimento de orgulho para os espanhóis. Sem os imigrantes, o país teria chegado em 2010, com muita dificuldade, a 40 milhões de habitantes e não cresceria nem a metade do crescimento observado na primeira década do século XXI.
Hoje, a Espanha faz de tudo para dificultar a entrada de imigrantes, principalmente dos brasileiros. O traço xenofóbico é talvez característico do ser humano, pelo menos nas sociedades capitalistas, e em momentos de crise surge como uma espada a ser levantada, para esconder os verdadeiros culpados pela crise ou problemas sociais.
Sidney Antônio da Silva – Esta questão tem a ver com a que explicitei anteriormente. Quando a economia dos países está em ritmo de crescimento, os migrantes, ou melhor, sua força de trabalho, é bem vinda. Quando a economia vai mal, eles passam a ser responsabilizados pela crise, o que não é verdade. Há que se levar em conta também a questão de gênero, já que em alguns países as mulheres são bem vindas, uma vez que elas realizam trabalhos que, em geral, os homens não assumem, como o cuidado de crianças, idosos, limpeza da casa, etc. Outra atividade muito requisitada é a relacionada ao mercado do sexo, criando redes internacionais para o tráfico humano.
IHU On-Line – Quais são as maiores dificuldades que os haitianos encontram ao migrar para o Brasil?
Duval Magalhães – No caso dos haitianos no Brasil, várias são as situações por eles enfrentadas. No primeiro momento, após uma longa jornada que passa por vários países da América Latina e que termina na fronteira com Peru, eles têm de enfrentar a burocracia estatal para poder entrar no Brasil e obter uma documentação provisória. A falta de apoio local, o pouco ou nenhum conhecimento do nosso idioma são os primeiros grandes problemas. Os que chegam por Tabatinga, após obtenção do protocolo da solicitação do pedido de refúgio, dirigem-se a Manaus e aí novos problemas os esperam.
Com auxílio da Igreja, ficam alojados provisoriamente em casas paroquiais e partem em busca da documentação provisória (Carteira de Trabalho e CPF). Neste momento, o auxílio da comunidade (alimentação e roupas) está sempre presente. Encontrar um trabalho é outro problema, pois além da barreira do idioma, a qualificação obtida no Haiti não é reconhecida no Brasil, assim encontram-se diplomados ou universitários trabalhando em linhas de montagem ou construção civil.
Sidney Antônio da Silva – A grande dificuldade é o custo da viagem já que ela custa em média cerca de 4 mil reais. Isto significa que esta emigração é um projeto familiar, em que a família investe num dos seus membros para depois receber as remessas que este deverá enviar para os que lá ficaram. O que acontece em geral, é que os que partiram mandam buscar o restante da família, acontecendo desta forma a chamada reunificação familiar. No momento da chegada a grande dificuldade é o idioma, já que não falam o português. Outra grande dificuldade é a moradia, questão que tem sido resolvida temporariamente pelas Igrejas locais, onde salões paroquiais se transformam em grandes dormitórios. Na medida em que vão conseguindo empregos, eles alugam casas, que são ocupadas por várias pessoas, visando minorar os custos.
IHU On-Line – Como os haitianos estão se relacionando com os povos tradicionais da Amazônia?
Sidney Antônio da Silva – Se, por um lado, a questão humanitária tem mobilizado a população manauara para ajudá-los, por outro, tal presença chama a atenção, em primeiro lugar, por serem negros e por falarem outro idioma e, em segundo, por estarem competindo com os trabalhadores locais pelas vagas disponíveis no mercado de trabalho. Na verdade, esta percepção do senso comum não é nenhuma novidade nos contextos migratórios, já que o estrangeiro é visto, em geral, como um possível "invasor" e que viria alterar a ordem estabelecida.
IHU On-Line – Existe alguma política pública de assistência a esses imigrantes? Como os governos locais e federais têm atuado em relação aos haitianos?
Duval Magalhães – Apesar da mobilização de alguns setores do governo, os relatos são de que a assistência é limitada, mas ainda possível. Por exemplo, os colchonetes utilizados pelos imigrantes são fornecidos pela Secretaria de Ação Social, os cursos gratuitos de português e de informática são oferecidos por entidades governamentais em espaço da arquidiocese de Manaus. A Igreja, principalmente os scalabrinianos, tem um papel fundamental em todo o processo.
No entanto, não há uma política explícita tratando deste fluxo migratório. Ao que parece, as autoridades, em todos os níveis, ainda não se deram conta de que se trata de um processo que não irá se extinguir, mas que tem toda probabilidade de continuar e ser ampliado. Por esta razão, urge uma tomada de consciência desta realidade e uma atuação de forma clara e séria na busca de soluções que deverão considerar, em primeiro lugar, os direitos humanos dos imigrantes e criar mecanismos para garantir que este fluxo se dê de forma segura, legal e sem expor os haitianos, que já enfrentam tantos problemas no país de origem, a situações de perigo e vulnerabilidade nas mãos de traficantes (coiotes), que não têm outro objetivo que o lucro fácil e a exploração das dificuldades alheias. Se quisermos o Brasil como uma nação que seja ouvida e respeitada no cenário internacional, teremos de buscar políticas para tratar este problema e não fingir de que não estamos vendo que o Rio Grande, da fronteira do México com os EUA, está agora na fronteira do Brasil com o Peru.
Muitos de nossos compatriotas sofreram e até vieram a falecer tentando chegar a outros países. Está no momento de darmos a prova de que aprendemos a lição e mostrar ao mundo que, apesar da nossa ainda jovem democracia, temos a possibilidade de colocar os direitos humanos de todos acima da mesquinhez e da falta de solidariedade, que sempre foi a marca registrada dos países desenvolvidos quando se trata da migração internacional.
Sidney Antônio da Silva – Até o momento não há uma política governamental voltada para estes imigrantes, resumindo-se na concessão do visto humanitário. Do ponto de vista local, constata-se a ajuda de órgãos governamentais como a Secretaria Estadual de Assistência Social e Cidadania – SEAS, através da doação de colchões, da Secretaria Estadual de Educação, com o ensino do português, do Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM), com cursos profissionalizantes, etc. Contudo, vale ressaltar que, sem a ajuda da Igreja Católica, a qual tem se mobilizado para atender às necessidades mais urgentes, a situação deles poderia ser muito parecida àquela do país de origem.
IHU On-Line – Como o senhor vê a questão das populações estigmatizadas na própria Amazônia?
Sidney Antônio da Silva – Creio que o preconceito histórico em relação aos indígenas e caboclos é um fenômeno social que está mudando, na medida em que eles se engajam na luta pela sua visibilidade e por direitos. Nesse contexto, os haitianos correm o risco de enfrentarem os mesmos preconceitos por parte dos grupos dominantes locais que se consideram brancos, já que, segundo o IBGE, são uma minoria, apenas 16%. Nessa perspectiva, seria um grupo social a mais na mesma situação daqueles, porém, com um agravante: eles são negros.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Sidney Antônio da Silva – Acredito que, para além dos possíveis estranhamentos que a presença haitiana enseja, eles nos ajudam a pensar a questão da diferença cultural, num Brasil formado por diferentes matrizes culturais, a saber, a lusitana, a indígena e a africana. Nesse sentido, só o tempo dirá qual será o lugar que lhes atribuiremos num país onde a preocupação com a cor da pele é tão importante, e a cordialidade uma "tradição nacional".
(por Patricia Fachin e Márcia Junges)