Aproximamo-nos da Semana Missionária, promovida pela Arquidiocese de Pelotas de 22 a 27/09, e que terá programação também na UCPel. Nas próximas edições do nosso “Convite à reflexão” o conteúdo dos textos versará sobre os temas da missão e evangelização.
Iniciamos com trechos de dois documentos fundamentais da Igreja e que se constituem num amplo arco, da década de 1970 aos nossos dias ou, mais precisamente: da Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, de 1975 (que recolhe o espírito renovador do Concílio Vaticano II e as contribuições do Sínodo dos bispos sobre a Evangelização, realizado em 1974), à recente Evangelii Gaudium, do papa Francisco, de 2013.
Infelizmente são documentos insuficientemente conhecidos, inclusive por muitos dos membros ativos da própria Igreja.
Missão e evangelização são termos que se referem a fenômenos complexos, em torno dos quais continuam a se verificar sérios mal-entendidos. Com efeito, esses vocábulos, para inúmeras pessoas, ainda são associados a proselitismo, e soam a imposição religiosa e a desrespeito às consciências e às culturas. Donde, em primeiro lugar, faz-se necessário esclarecer o sentido desses termos. Para tal, os textos escolhidos correspondem a uma primeira e importante aproximação.
A Igreja recebeu um mandato missionário, o chamado e envio de sair de si, de romper o fechamento sobre si, e anunciar Jesus Cristo a todas as nações. No entanto, impor uma crença, desrespeitar pessoas e povos nunca é boa notícia. Como conciliar essas duas exigências (anúncio de Jesus Cristo e respeito à diversidade cultural e religiosa)? O próprio termo evangelizar nos fornece a chave: Evangelho significa boa nova, e evangelizar é anunciar essa boa notícia. Isso se dá por obras e por palavras, sendo que a ação, o testemunho de vida, guardará sempre a primazia.
A Igreja, chamada a evangelizar, sabe que necessita permanentemente ser ela mesma evangelizada, precisa se colocar cada dia de novo no caminho da conversão, para ser mais fiel ao Evangelho, corresponder melhor ao modo de ser e de agir de Jesus de Nazaré.
O verdadeiro diálogo será sempre boa notícia e, nesse sentido, será sempre evangelizador. E esse processo dinâmico, criativo, situa o contexto no qual pode legitimamente dar-se o anúncio explícito de Jesus Cristo. O papa Francisco usou a expressão “a Alegria do Evangelho”, reconhecendo que a vida de Jesus é boa notícia a que a humanidade não pode quedar privada. Porém, o Evangelho de Jesus só poderá ser de fato boa notícia se ele é transmitido do modo que caracteriza o jeito de ser e de agir do próprio Jesus.
Essa atitude evangelizadora (anunciadora da boa notícia de mais Vida para todas as pessoas, povos e culturas) dialogal; essa colaboração dialogante, junto com pessoas de diferentes credos e convicções, na construção daquilo que historicamente vai realizando o ser humano (com abertura ao Infinito), eis aí a Graça, a Bênção, mas também o constante desafio da ação missionária da Igreja...
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA EVANGELII NUNTIANDI, DO PAPA PAULO VI
(de 08 de dezembro de 1975)
[ EN, números 17 a 24 ]
II. O QUE É EVANGELIZAR?
Complexidade da ação evangelizadora
17. Na ação evangelizadora da Igreja há certamente elementos e aspectos que se devem lembrar. Alguns deles são de tal maneira importantes que se verifica a tendência para os identificar simplesmente com a evangelização. Pode-se assim definir a evangelização em termos de anúncio de Cristo àqueles que o desconhecem, de pregação, de catequese, de batismo e de outros sacramentos que hão de ser conferidos.
Nenhuma definição parcial e fragmentária, porém, chegará a dar a razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar. E impossível captá-la se não se procurar abranger com uma visão de conjunto todos os seus elementos essenciais.
Tais elementos, acentuados com insistência no decorrer do mencionado Sínodo, são ainda agora aprofundados muitas vezes, sob a influência do trabalho sinodal. E nós regozijamo-nos pelo fato de eles se situarem, no fundo, na linha daqueles que o Concílio Ecumênico Vaticano II nos proporcionou, sobretudo nas Constituições Lumen Gentium e Gaudium et Spes e no Decreto Ad Gentes.
Renovação da humanidade
18. Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: "Eis que faço novas todas as coisas". (46) No entanto não haverá humanidade nova, se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do batismo (47) e da vida segundo o Evangelho. (48) A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, (49) ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios.
Estratos da humanidade
19. Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação.
Evangelização das culturas
20. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et Spes, (50) a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus.
O Evangelho, e consequentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E, no entanto, o reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas.
A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada.
Importância primordial do testemunho da vida
21. E esta Boa Nova há de ser proclamada, antes de mais, pelo testemunho. Suponhamos um cristão ou punhado de cristãos que, no seio da comunidade humana em que vivem, manifestam a sua capacidade de compreensão e de acolhimento, a sua comunhão de vida e de destino com os demais, a sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e bom. Assim, eles irradiam, de um modo absolutamente simples e espontâneo, a sua fé em valores que estão para além dos valores correntes, e a sua esperança em qualquer coisa que se não vê e que não se seria capaz sequer de imaginar. Por força deste testemunho sem palavras, estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os veem viver, perguntas indeclináveis: Por que é que eles são assim? Por que é que eles vivem daquela maneira? O que é, ou quem é, que os inspira? Por que é que eles estão conosco?
Pois bem: um semelhante testemunho constitui já proclamação silenciosa, mas muito valiosa e eficaz da Boa Nova. Nisso há já um gesto inicial de evangelização. Daí as perguntas que talvez sejam as primeiras que se põem muitos não cristãos, quer se trate de pessoas às quais Cristo nunca tinha sido anunciado, ou de batizados não praticantes, ou de pessoas que vivem em cristandades mas segundo princípios que não são nada cristãos. Quer se trate, enfim, de pessoas em atitudes de procurar, não sem sofrimento, alguma coisa ou Alguém que elas adivinham, sem conseguir dar-lhe o verdadeiro nome. E outras perguntas surgirão, depois, mais profundas e mais de molde a ditar um compromisso, provocadas pelo testemunho aludido, que comporta presença, participação e solidariedade e que é um elemento essencial, geralmente o primeiro de todos, na evangelização. (51)
Todos os cristãos são chamados a dar este testemunho e podem ser, sob este aspecto, verdadeiros evangelizadores. E aqui pensamos de modo especial na responsabilidade que se origina para os migrantes nos países que os recebem.
Necessidade de um anúncio explícito
22. Entretanto isto permanecerá sempre insuficiente, pois ainda o mais belo testemunho virá a demonstrar-se impotente com o andar do tempo, se ele não vier a ser esclarecido, justificado, aquilo que São Pedro chamava dar "a razão da própria esperança", (52) explicitado por um anúncio claro e inelutável do Senhor Jesus. Por conseguinte, a Boa Nova proclamada pelo testemunho da vida deverá, mais tarde ou mais cedo, ser proclamada pela palavra da vida. Não haverá nunca evangelização verdadeira se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados.
A história da Igreja, a partir da pregação de Pedro na manhã do Pentecostes amalgama-se e confunde-se com a história de tal anúncio. Em cada nova fase da história humana, a Igreja, constantemente estimulada pelo desejo de evangelizar, não tem senão uma preocupação instigadora: Quem enviar a anunciar o mistério de Jesus? Com que linguagem anunciar um tal mistério? Como fazer para que ele ressoe e chegue a todos aqueles que o hão de ouvir? Este anúncio, kerigma, pregação ou catequese, ocupa um tal lugar na evangelização que, com frequência, se tornou sinônimo dela. No entanto, ele não é senão um aspecto da evangelização.
Para uma adesão vital numa comunidade eclesial
23. O anúncio, de fato, não adquire toda a sua dimensão, senão quando ele for ouvido, acolhido, assimilado e quando ele houver feito brotar naquele que assim o tiver recebido uma adesão do coração. Sim, adesão às verdades que o Senhor, por misericórdia, revelou. Mais ainda, adesão ao programa de vida, vida doravante transformada, que ele propõe; adesão, numa palavra, ao reino, o que é o mesmo que dizer, ao "mundo novo", ao novo estado de coisas, à nova maneira de ser, de viver, de estar junto com os outros, que o Evangelho inaugura. Uma tal adesão, que não pode permanecer abstrata e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada visível numa comunidade de fiéis.
Assim, aqueles cuja vida se transformou ingressam, portanto, numa comunidade que também ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de vida: é a Igreja, sacramento visível da salvação. (53) Mas, a entrada na comunidade eclesial, por sua vez, há de exprimir-se através de muitos outros sinais, que prolongam e desenvolvem o sinal da Igreja. No dinamismo da evangelização, aquele que acolhe o Evangelho como Palavra que salva, (54) normalmente, o traduz depois nestas atitudes sacramentais: adesão à Igreja, aceitação dos sacramentos que manifestam e sustentam essa adesão, pela graça que eles conferem.
Causa de um novo apostolado
24. Finalmente, aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza. Está nisso o teste de verdade, a pedra de toque da evangelização: não se pode conceber uma pessoa que tenha acolhido a Palavra e se tenha entregado ao reino sem se tornar alguém que testemunha e, por seu turno, anuncia essa Palavra.
Ao terminar estas considerações sobre o sentido da evangelização, importa formular uma última observação, que consideramos esclarecedora para as reflexões que se seguem.
A evangelização, por tudo o que dissemos é uma diligência complexa, em que há variados elementos: renovação da humanidade, testemunho, anúncio explícito, adesão do coração, entrada na comunidade, aceitação dos sinais e iniciativas de apostolado.
Estes elementos, na aparência, podem afigurar-se contrastantes. Na realidade, porém, eles são complementares e reciprocamente enriquecedores uns dos outros. É necessário encarar sempre cada um deles na sua integração com os demais. Um dos méritos do recente Sínodo foi precisamente o de nos ter repetido constantemente o convite para congraçar estes mesmos elementos, em vez de fazer com que se oponham entre si, a fim de se ter a plena compreensão da atividade evangelizadora da Igreja.
É esta visão global que nós intentamos apresentar seguidamente, examinando o conteúdo da evangelização, os meios para evangelizar e precisando a quem se destina o anúncio evangélico e a quem é que incumbe hoje esta tarefa de evangelizar.
Notas ao texto da Evangelii Nuntiandi
46) Ap 21,5; 2Cor 5,17; Gl 6,15.
47) Rm 6,4.
48) Cf. Ef 4,23-24; Cl 3,9-10.
49) Cf. Rm 1,16; 1Cor 1,18; 2,4.
50) Cf. n. 53: AAS 58: (1966), p.1075.
51) Cf. Tertuliano, Apologeticum, 39: C.C.L., I, pp. 150-153; Minúcio Félix, Octavius, 9, 31: C.S.L.P., Torino 1963, pp.11-13, 47-48.
52) 1Pd 3,15.
53) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nn.1,9,48: AAS 59 (1965), pp. 5,12-14, 53-54; Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, nn. 42,45: AAS 58 (1966), pp.1060-1061,1065-1066; Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, nn 1,5: AAS 58 (1966), pp. 947, 951-952.
54) Cf. Rm 1,16; 1Cor 1,18.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA EVANGELII GAUDIUM DO PAPA FRANCISCO SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
(24 de Novembro de 2013)
[ EG, números 1 a 18 ]
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos.
I. Alegria que se renova e comunica
2. O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». [1] Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação, que havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).
É a alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade presente» (Eclo14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei de ver-vos de novo! Então, o vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém batizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a alegria». [2] Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo». [3]
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da auto referencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
II. A doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais.» [4]. Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão». [5] Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo». [6]
Uma eterna novidade
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo é a «Boa Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Hb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente».[7] Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade». [8] Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual. Na realidade, toda a ação evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro considerá-la como uma heroica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador». [9] Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos entender a novidade desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronômica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Hb 12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Hb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
III. A nova evangelização para a transmissão da fé
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se fundamentalmente em três âmbitos.[10] Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna»[11].Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos, embora não participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com toda a sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas batizadas que, porém, não vivem as exigências do Batismo»,[12] não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé e o desejo de se comprometerem com o Evangelho.
Por fim, frisamos que a evangelização está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atração». [13]
15. João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder a tensão para o anúncio» àqueles que estão longe de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da Igreja». [14] A atividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja» [15] e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas».[16] Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos»,[17] sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária». [18] Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta desta Exortação e seus contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação. [19] Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização no mundo atual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser objeto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição dogmática Lumen Gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão atual da Igreja. De fato, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo evangelizador, que convido a assumir em qualquer atividade que se realize. E, desta forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Notas ao texto da Evangelii Gaudium
[1] Paulo VI, Exort. ap. Gaudete in Domino (9 de Maio de 1975), 22: AAS 67 (1975), 297.
[2] Ibid., 8: o. c., 292.
[3] Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 1: AAS 98 (2006), 217.
[4] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 360.
[5] Ibid., 360.
[6] Paulo VI, Exort. ap. Evangelii Nuntiandi (08 de Dezembro de 1975), 80: AAS 68 (1976), 75.
[7] Cântico espiritual, 36, 10.
[8] Adversus haereses, IV, 34, 1: PG 7, 1083: «Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens».
[9] PAULO VI, Exort. ap. Evangelii Nuntiandi (08 de Dezembro de 1975), 7: AAS 68 (1976), 9.
[10] Cf. Propositio 7.
[11] Bento XVI, Homilia durante a Missa conclusiva da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (28 de Outubro de 2012): AAS 104 (2012), 890.
[12] Ibidem.
[13] Bento XVI, Homilia na Eucaristia de inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (Santuário da Aparecida – Brasil, 13 de Maio de 2007): AAS 99 (2007), 437.
[14] Carta enc. Redemptoris missio (07 de Dezembro de 1990), 34: AAS 83 (1991), 280.
[15] Ibid., 40: o. c., 287.
[16] Ibid., 86: o. c., 333.
[17] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 548.
[18] Ibid., 370.
[19] Cf. Propositio 1.