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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
18.03.2016 | 14:44 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Nesta semana, a Capelania oferece três artigos. 

O primeiro com o título “Três anos de Francisco: o Papa narrado por seu porta-voz” apresenta uma pequena análise dos três anos de seu Pontificado, celebrado no último domingo. 

Em seguida, reproduzimos a Nota da CNBB sobre o momento atual do Brasil, publicada na última quinta-feira (10). 

Por fim, disponibilizamos o texto “O debate político se transformou numa polêmica religiosa”, do site do Observatório da Imprensa, como uma contribuição para pensar o atual momento vivenciado no país. 

A Capelania deseja uma boa reflexão. 



Três anos de Francisco: o Papa narrado por seu porta-voz

Quando ouvi o anúncio do Cardeal Tauran, do Balcão Central da Basílica de São Pedro, fiquei sem palavras. Sabia que o anúncio do nome do novo Papa teria me emocionado, mas não daquele jeito. Era um jesuíta, um coirmão, mas não o conhecia, senão indiretamente, a parte um rápido encontro nos dias precedentes, nos corredores das Congregações gerais dos cardeais, antes do Conclave. Mesmo que seu nome tenha aparecido algumas vezes entre os papáveis, nunca o considerei, porque se para um jesuíta está fora do previsto ser nomeado bispo ou cardeal, imagina Papa. Depois do anúncio, quem colocasse o nariz no meu gabinete pensando encontrar-me exultante, porque o Papa era um coirmão, ficava surpreso com minha perplexidade. Mas eu não estava nem feliz, nem triste, simplesmente, boquiaberto.

O relato é de Federico Lombardi, padre jesuíta, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, publicado por Famiglia Cristiana, 10-03-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.


O nome, e que nome!
Eu estava no meu gabinete na Santa Sé, e meus colegas me esperavam na sala de conferências para um primeiro comentário. Sentia-me emudecido... Aos poucos fui criando coragem e disse duas coisas que me pareciam claras, e que achava importante colocar em relevo, como duas grandes novidades: o nome Francisco – pela primeira vez – e o fato de que era latino-americano.

Tomar um nome que ninguém tinha escolhido ainda – e que nome! – indicava liberdade, coragem e clareza formidáveis. Pobres, cuidado da criação, paz, como teria explicado, poucos dias depois, o próprio Papa. Sua proveniência do “fim do mundo” trazia naturalmente uma perspectiva nova, um ponto de vista diferente sobre as situações e as perguntas da humanidade e da Igreja, que não teriam deixado de se fazer presentes. Parece que não me enganei.

Confesso que as outras novidades naquela tarde ou dos dias sucessivos – veste, modo de apesentar-se ao povo, deslocamento em ônibus junto com os outros, automóveis utilitários... – não me pareciam tão perturbadores: fortes, mas espontâneos. Nestas coisas era relativamente fácil reconhecer um coirmão jesuíta.

Nos dias seguintes, porém, as novidades não faltaram e também eu compreendi melhor, pouco a pouco, a personalidade do novo Papa. Por exemplo, por um certo tempo continuei a pensar que, na medida que o papa tomaria maior consciência do novo cargo e das exigências práticas, ele mesmo teria decidido de voltar a usar o apartamento papal, ou de qualquer forma, buscaria uma solução diferente da Santa Marta. Mas não foi assim.

A determinação de mudar, não só o lugar, mas também os equilíbrios consolidados do sistema organizativo da vida do Papa, das relações com os colaboradores, estava, desde o início mais firme e clara do que eu poderia ter imaginado. Não foi fácil aprender a converter-se ao seu novo estilo, à sua liberdade de expressão espontânea, às suas anotações pessoais e aos seus telefonemas...; mas, aos poucos, fomos compreendendo e apreciando seus motivos e seu grande valor. Muitos “de longe” o compreenderam mais rapidamente do que nós, “próximos”.

Santa Marta e as outras novidades
Novidade era também o estilo da sua relação pessoal  de pastor com os outros, e com o povo. A novidade da Missa matinal na Santa Marta, com um bom grupo de fiéis, sua homilia, que logo aprendemos a esperar com grande interesse cada dia, seu contato pessoal, no final da missa, com todos os presentes. A capacidade de envolver o povo no Ângelus ou nas celebrações, interpelando-o diretamente e convidando-o a responder ou a rezar junto... A liberdade dos gestos e a concretude das expressões tocavam imediatamente, mas em profundidade, o coração das pessoas.

Neste sentido, uma das primeiras experiências importantes que fiz pessoalmente foi aquela da Missa da Santa Ceia, na primeira Quinta-feira Santa, no cárcere juvenil de Casal Marmo. Segundo o uso litúrgico habitual, estava previsto que o lava-pés seria feito somente com rapazes. Permiti-me de fazer chegar ao Papa um discreto recado sobre o desconforto dos jovens e do capelão, e a resposta foi praticamente imediata. Como todos sabemos lavou também os pés de meninas e de muçulmanos, como já tinha feito em Buenos Aires...

Pessoalmente, como sacerdote, o aspecto que mais me tocou, no novo pontificado, é o fato que o Papa Francisco conseguiu em tempo brevíssimo fazer entender a muitíssima gente – seja dentro, que “fora” da Igreja – que Deus os ama, deseja e perdoa sempre, sem nunca cansar. Disse e repetiu infinitas vezes desde os primeiros dias. Todos tínhamos sofrido muito com a imagem de uma Igreja severa, do “não”, antes que do “sim”, fortificada sobre preceitos prevalentemente negativos e fora do tempo. Sabíamos perfeitamente que era uma imagem injusta, completamente diferente daquela que procurávamos dizer e testemunhar; mas o clima cultural dominante ia num sentido e nós não conseguíamos muda-lo.  

Sinodalidade: caminhar juntos
Não há dúvidas de que o papa Francisco conseguiu isto de modo bem eficaz, o que me deu grande e profunda alegria. E não se trata de algum aspecto secundário do serviço: o Jubileu da Misericórdia alarga e aprofunda a mensagem de amor, de perdão, de reconciliação: confirma-o e o faz passar através de inúmeras portas em todos os ângulos da Terra, a começar não de Roma, mas de Bangui, das periferias levada ao centro espiritual do mundo...

Papa Francisco fala de “Sinodalidade”, vive em primeira pessoa a condição de crente em caminho, e coloca a Igreja em caminho, para que saia de si para o encontro das periferias, porque somos “discípulos missionários”. Renovou profundamente os métodos e o espírito das assembleias do Sínodo dos Bispos, pôs em caminho uma “reforma” da Cúria romana, que não se sabem bem quando terminará... Mas isto não é problema, o mais importante é que se ponha em caminho, confiando-se ao Espírito do Senhor, sem sermos nós a querer prefigurar onde e quando devemos chegar.

Francisco certamente é corajoso e confiante, caminha na fé e na esperança. Para viver serena e alegremente com ele, seu pontificado deve procurar participar das suas posturas, caso contrário se sentira turbado e amedrontado, ou se sentirá bloqueado e incapaz de percorrer as vias e territórios novos nas relações pastorais, sobretudo quando se trata de temas delicados e complexos como aqueles da família ou das relações ecumênicas...

Cultura do encontro
Uma das palavras de Francisco que me soaram novas, e levei algum tempo para compreender, foi aquela da “cultura do encontro”. Compreendi, então, que para ele o encontro concreto entre as pessoas é fundamental. Encontro com Deus, encontro pessoal com Jesus Cristo acima de tudo, mas também encontro com seus colaboradores, com líderes religiosos, com responsáveis das nações, e o encontro com indivíduos quem procuram de uma palavra de conforto e de proximidade (seus telefonemas! Obviamente uma gota na miríade de pessoas que gostariam, mas, em todos os casos, uma mensagem exemplar para todos).

Fiz mais vezes, sempre na ousadia de ser compreendido, um pequeno paralelo entre o mundo do papa Bento e o do papa Francisco, quando relatavam seus encontros e colóquios com chefes de Estado. Bento XVI: a concisa, precisa e excepcionalmente lúcida indicação dos temas tratados. Francisco: as características da personalidade humana e das atitudes do interlocutor. Ambas aproximações de extraordinária profundidade. Em Francisco, o encontro com outra pessoa concreta aparece em plena e prioritária evidência.

Certamente os encontros do Papa Francisco são uma das vias mestras da presença dinâmica da Igreja, também em nível ecumênico, inter-religioso e internacional. Basta pensar aos já múltiplos encontros do Papa com o patriarca ecumênico Bartolomeu, ao recentíssimo encontro com o patriarca de Moscou Kirill, ou a nova linha de relações ecumênicas com o mundo evangélico pentecostal representado, por exemplo, pelo seu amigo pastor Traettino de Caserta, ou a participação  à anunciada celebração dos 500 anos da Reforma, em Lund, na Suécia... À celebre amizade com o rabino Abraham Skorka e o muçulmano Omar Abboud, e ao tríplice abraço diante do Muro das Lamentações: um sinal destemido e novo.

Em nível internacional, a clamorosa reaproximação entre Cuba e Estados Unidos foi, certo, ao menos em parte, propiciado pelo carisma de Francisco e do seu impulso na direção da reconciliação entre os povos. O evidente, e já mais vezes mencionado, desejo de conseguir um encontro com a China, poderia enfim tornar-se uma realidade? Certamente Francisco não faz mistério que incita nesta direção. Ele crê na força dos encontros ainda mais que nas mesas de negociação. Ele serve, assim, pessoalmente, ao diálogo e à paz.

Uma referência para todos
Em três anos de pontificado, papa Francisco viajou para todos os continentes, à exceção da Oceania (Ásia, Europa, África, América Latina e Caribe, América do Norte), respondendo às expectativas de povos muito diferentes, mas sempre desejosos e atentos aos seus gestos e palavras. Já tinha falado no Parlamento Europeu, em 2015 falou aos Movimentos Populares, como também ao Congresso Americano e às Nações Unidas em Nova Iorque e em Nairóbi. Publicou a Encíclica Laudato si’,  na qual interceptou com grande largueza de horizontes e equilíbrio as grandes perguntas da humanidade, sobre a cuidado da “casa comum”, criticando radicalmente a “cultura do descartável”, em contexto de responsabilidade e de reflexão global, atenta à ciência, à religião humana, à visão religiosa da pessoa e do mundo. Sua autoridade assumiu dimensão de fato “global”, respeitada universalmente e capaz de oferecer um verdadeiro serviço de orientação à humanidade em caminho.

Muitas coisas aconteceram em três anos. Um caminho de escuta do Espírito, mais do que na atuação de projetos e estratégias humanas. Não esqueçamos, portanto, de rezar pelo papa Francisco, como ele nos pede todos os dias.



CNBB divulga nota sobre o momento atual do Brasil
A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou na quinta-feira, 10, durante coletiva de imprensa, nota sobre o momento atual do Brasil aprovada pelo Conselho Permanente, reunido de 8 a 10 deste mês, na sede da Conferência, em Brasília. 

Na nota, a CNBB manifestou preocupações diante do momento atual vivido pelo país. "Vivemos uma profunda crise política, econômica e institucional que tem como pano de fundo a ausência de referenciais éticos e morais, pilares para a vida e organização de toda a sociedade".

Ainda no texto, a Conferência recordou a necessidade de buscar, sempre, o exercício do diálogo e do respeito. "Conclamamos a todos que zelem pela paz em suas atividades e em seus pronunciamentos. Cada pessoa é convocada a buscar soluções para as dificuldades que enfrentamos. Somos chamados ao diálogo para construir um país justo e fraterno", declara em nota.

Confira a íntegra do texto:
 
NOTA DA CNBB SOBRE O MOMENTO ATUAL DO BRASIL
“O fruto da justiça é semeado na paz, para aqueles que promovem a paz” (Tg 3,18)
Nós, bispos do Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil–CNBB, reunidos em Brasília-DF, nos dias 8 a 10 de março de 2016, manifestamos preocupações diante do grave momento pelo qual passa o país e, por isso, queremos dizer uma palavra de discernimento. Como afirma o Papa Francisco, “ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião a uma intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos” (EG, 183).

Vivemos uma profunda crise política, econômica e institucional que tem como pano de fundo a ausência de referenciais éticos e morais, pilares para a vida e organização de toda a sociedade. A busca de respostas pede discernimento, com serenidade e responsabilidade. Importante se faz reafirmar que qualquer solução que atenda à lógica do mercado e aos interesses partidários antes que às necessidades do povo, especialmente dos mais pobres, nega a ética e se desvia do caminho da justiça.

A superação da crise passa pela recusa sistemática de toda e qualquer corrupção, pelo incremento do desenvolvimento sustentável e pelo diálogo que resulte num compromisso entre os responsáveis pela administração dos poderes do Estado e a sociedade. É inadmissível alimentar a crise econômica com a atual crise política. O Congresso Nacional e os partidos políticos têm o dever ético de favorecer e fortificar a governabilidade. 

As suspeitas de corrupção devem ser rigorosamente apuradas e julgadas pelas instâncias competentes. Isso garante a transparência e retoma o clima de credibilidade nacional. Reconhecemos a importância das investigações e seus desdobramentos. Também as instituições formadoras de opinião da sociedade têm papel importante na retomada do desenvolvimento, da justiça e da paz social.

O momento atual não é de acirrar ânimos. A situação exige o exercício do diálogo à exaustão. As manifestações populares são um direito democrático que deve ser assegurado a todos pelo Estado. Devem ser pacíficas, com o respeito às pessoas e instituições. É fundamental garantir o Estado democrático de direito.

Conclamamos a todos que zelem pela paz em suas atividades e em seus pronunciamentos. Cada pessoa é convocada a buscar soluções para as dificuldades que enfrentamos. Somos chamados ao diálogo para construir um país justo e fraterno.

Inspirem-nos, nesta hora, as palavras do Apóstolo Paulo: “trabalhai no vosso aperfeiçoamento, encorajai-vos, tende o mesmo sentir e pensar, vivei em paz, e o Deus do amor e da paz estará convosco” (2 Cor 13,11). 

Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, continue intercedendo pela nossa nação!

Brasília, 10 de março de 2016.
 
 
Dom Sergio da Rocha                              Dom Murilo S. R. Krieger
         Arcebispo de Brasília-DF                     Arcebispo de S. Salvador da Bahia-BA
Presidente da CNBB                         Vice-Presidente da CNBB
 
 
 
      Dom Leonardo Ulrich Steiner
         Bispo Auxiliar de Brasília-DF
          Secretário-Geral da CNBB




O debate político se transformou numa polêmica religiosa

Por Bruno Ribeiro Nascimento em 07/03/2016 na edição 893

As ideologias são fenômenos religiosos. Mais precisamente, são fenômenos religiosos que fazem parte de uma categoria mais ampla: a idolatria. A ideologia é um tipo especifico de idolatria. Essa percepção foi desenvolvida, principalmente, por dois cientistas políticos cristãos: Bob Goudzwaard (Idols of Our Time) e David Koyzis (Visões e Ilusões Políticas). A tese é muito valiosa para compreendermos a atual situação da política brasileira – bem como o que acontece nas redes sociais.

O que seria a idolatria? A teologia judaico-cristã sempre denunciou fortemente a idolatria como um pecado gravíssimo. Isso porque a idolatria consiste em escolher um elemento da criação e o elevar ao nível da divindade, colocando acima da barreira que deveria separar o Criador da criatura. Quando esse elemento do mundo é divinizado, esperamos que ele nos traga salvação, segurança, conforto e shalom (paz), além de nos livrar do mal – porque é isso que esperamos dos deuses ou do Deus judaico-cristão.discurso do ódio

Goudzwaard e Koyzis aplicaram esse princípio na análise política: a ideologia tem seu viés religioso porque transforma uma ideia importante em um ídolo, um deus imaginário, que procura sujeitar toda realidade aquela ideia deificada, prometendo “salvação” aos seus “seguidores”. A ideologia atribui status ontológico, como mal e salvação, a elementos intrínsecos da realidade. Elas identificam os bons elementos da realidade, mas superestimam esses elementos, enquadrando toda a realidade a partir deles, combatendo tudo que se opõem ao ídolo escolhido.

É possível perceber essa leitura idólatra da política nos posts políticos, principalmente depois dos eventos da semana passada. Temos nossos messias, nossas crenças, nossos elementos de salvação e nossas fontes do mal. No Facebook, não se discorda sobre ideias políticas: se briga ferozmente porque o que está em jogo é um deus-ideia. As discordâncias políticas sobre a operação Lava Jato e o ex-presidente Lula não são simplesmente debates sobre ideias e justiça; nas redes sociais, elas se transformam em falhas morais.

Ideias prontas, simplificadas, idolatradas

Você não é simplesmente alguém que discorda de mim, mas alguém moralmente errado porque a minha ideia central é a verdadeira. Ela salva, redime. É um deus e, como todo deus, merece adoração e louvor. O componente idólatra na ideologia obscurece a visão. Ela enxerga elementos intrínsecos da realidade em si como fontes do mal. A partir daí, o debate passa a não ser sobre ideias, mas sobre moral.

Por que você não concordaria em ver a realidade redimida? Só há uma única explicação: existe uma falha moral em você. Uma vez que toda salvação consiste no resgate de algo pecaminoso, e uma vez que você não quer ser salvo, nem quer a salvação da realidade, talvez seja porque você faz parte desse mal. Você talvez não goste dos pobres viajando de avião; ou entrando na universidade pública; ou você talvez não quer trabalhar e quer receber bolsa família; ou quer defender bandidos; ou quer manter alguns privilégios; o quer acobertar as denúncias da mídia golpista e da crise inventada.

Os elementos utilizados pelas ideologias não são completamente falsos; as realidades que eles apontam não são completamente criadas. Há realmente desigualdade, opressão, parcialidade da mídia, falta de segurança e de liberdade. Há realmente elitistas, antipobres, machistas, racistas, intolerantes, vadios, aproveitadores e preconceituosos. O problema é que a idolatria é uma simplificadora excessiva da realidade. A realidade é mais complexa que uma única ideia central pronta. O que o componente religioso das idolatrias faz é colocar suas ideias como divinas, salvadoras, como chaves para a realidade redentora do amanhã.

A salvação vem através da maximização da liberdade individual e da soberania do indivíduo; ou da propriedade comum e da igualdade a qualquer preço; ou das regras morais conservadoras. Todas essas coisas, liberdade individual, igualdade, regras morais, são bons elementos da realidade. Merecem ser defendidos. Mas como eles foram divinizados, as pessoas procuram ler toda a realidade social e histórica a partir dessa única ideia central. E isso encaixa bem com o Facebook, onde o meio incita a superficialidade. Afinal, ninguém tem paciência de ler um texto mais longo no celular; ou de refletir melhor sobre um fato em frente ao computador. Não há tempo para pensar e raciocinar: é preciso postar. Ser rápido. Opinar sobre tudo. E nada melhor que ideias prontas, simplificadas, idolatradas.

O debate político se transformou em debate religioso

Os adeptos da ideologia, segundo Goudzwaard, são “possuídos por um fim”. Ao abraçarem uma ideia central nas redes sociais, as pessoas constroem um alvo e querem que todos os elementos da realidade se adaptem a esse alvo supremo. Os fins justificam os meios porque é preciso chegar ao objetivo que meu deus impõe.

Quando as ideologias enquadram toda a realidade a uma ideia central, surge um problema: a realidade é maior que qualquer ideia central. É mais complexa. Mais difícil. Com mais variantes. Ela não é binária, mas cheia de nuances. Por isso, afirmava Hannah Arendt que toda ideologia possui um viés totalitário, uma vez que, ao tentar ler a realidade a partir dessa ideia suprema, seus integrantes buscam moldar a realidade de acordo com a lógica inexorável da sua preciosa ideia central. Nas redes sociais, se os fatos não concordam com minha preciosa ideia central, azar para os fatos. Millôr Fernandes definiu bem o viés totalitário da ideologia ao falar sobre o comunismo: “O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente.”

Assim, pouco importa se faço distorções da justiça, da realidade, das ideias dos outros e até dos princípios que defendo. O importante é que, com minha ideia central implantada, o mundo de amanhã será melhor. Por isso, vale a pena fechar os olhos para corrupção dos meus candidatos ou se ele é descaradamente antiético e homofóbico. Vale a pena esquecer as denúncias – o importante é que os fatos, de alguma forma, sirvam ao propósito último da salvação da realidade. O mundo amanhã será melhor, penso, por isso, ainda que eu não seja machista, vale a pena compartilhar um post maldoso e sexista sobre a ética sexual da jornalista da IstoÉ. O mundo melhor de amanhã superará essa “falha”, esse sacrifício, esse mal necessário. Não é a justiça em si que está em jogo e que precisa ser defendida, mas minha ideia central.

Na teologia judaico-cristã, a ideologia sempre foi combatida porque ela trazia falsas esperanças. Apesar dos deuses serem falsos, eles tinham um poder sobre seus adoradores que os cegava. Paradoxalmente, mesmo não existindo, eles faziam as pessoas serem a imagem e semelhança deles. Isso trazia intolerância e opressão. No Brasil, é inegável que o debate político se transformou claramente em um debate religioso. Mas, infelizmente, esse debate não pegou os aspectos positivos e profundos da religião judaico-cristã, como sacrifício pelo outro, esquecimento de si mesmo, combate a injustiça, necessidade de reflexão racional intensa e constante, mas o que ela tem de mais nocivo, como fanatismo, cegueira, sentimentalismo irracional e intolerância. Infelizmente, com a idolatrização da política, veremos cada vez mais esses elementos nas redes sociais.

***

Bruno Ribeiro Nascimento é mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas

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