Papa
Francisco. “Amoris laetitia”: uma síntese da Exortação Apostólica
Foi
publicada na manhã de sexta-feira, dia 8 de abril de 2016, a Exortação
Apostólica pós-Sinodal do Papa Francisco sobre a família. “Amoris laetitia”, a
“Alegria do Amor”. Publicamos aqui uma síntese da Exortação Apostólica:
Capítulo primeiro: “À luz da Palavra”
No
primeiro capítulo o Papa articula a sua reflexão a partir das Sagradas
Escrituras, em particular, com uma meditação acerca do Salmo 128,
característico da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia
”aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares”
(AL 8).
Capítulo segundo: “A realidade e os desafios das famílias”
Partindo
do terreno bíblico, o Papa considera no segundo capítulo a situação atual das
famílias, mantendo ”os pés assentes na terra” (AL 6) como se pode ler na
Exortação. A humildade do realismo ajuda a não apresentar ”um ideal teológico
do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da
situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são” (AL
36).
O
matrimônio é “um caminho dinâmico de crescimento e realização”. “Somos chamados
a formar as consciências, não a pretender substituí-las”(AL37), refere o Papa
Francisco no seu texto, pois, Jesus propunha um ideal exigente, mas ”não perdia
jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a
mulher adúltera” (AL 38).
Capítulo terceiro: “O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”
O
terceiro capítulo da Exortação é dedicado a alguns elementos essenciais do
ensinamento da Igreja acerca do matrimônio e da família. Em 30 parágrafos
ilustra a vocação à família de acordo com o Evangelho, assim como ela foi
recebida pela Igreja ao longo do tempo, sobretudo quanto ao tema da
indissolubilidade, da sacramentalidade do matrimônio, da transmissão da vida e
da educação dos filhos. Fazem-se inúmeras citações da Gaudium et Spes do
Vaticano II, da Humanae Vitae de Paulo VI, da Familiaris Consortiode João Paulo
II.
Capítulo quarto: “O amor no matrimônio”
O
amor no matrimônio é o título do quarto capítulo desta Exortação e ilustra-o a
partir do “hino ao amor” de S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 13,
4-7). Este capítulo desenvolve o caráter quotidiano do amor que se opõe a todos
os idealismos: ”não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso
tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e
a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica um processo dinâmico, que
avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL 122).
Também
neste capítulo uma reflexão sobre o amor ao longo da vida e da sua
transformação. Pode-se ler no documento: “Não é possível prometer que teremos
os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum
estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos
separe, e viver sempre uma rica intimidade” (AL 163).
Capítulo quinto: “O amor que se torna fecundo”
O
capítulo quinto desta Exortação Apostólica foca-se sobre a fecundidade, do
acolher de uma nova vida, da espera própria da gravidez, do amor de mãe e de
pai. Mas também da fecundidade alargada, da adoção, do acolhimento do
contributo das famílias para a promoção de uma “cultura do encontro”, da vida
na família em sentido amplo, com a presença de tios, primos, parentes dos
parentes, amigos. A “Amoris laetitia” não toma em consideração a família
”mononuclear”, mas está bem consciente da família como rede de relações
alargadas. A própria mística do sacramento do matrimônio tem um profundo
caráter social (cf. AL 186). E no âmbito desta dimensão social, o Papa sublinha
em particular tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos, como a
relação entre irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os outros.
Capítulo sexto: “Algumas perspectivas pastorais”
No
capítulo sexto da exortação o Papa aborda algumas vias pastorais que orientam
para a edificação de famílias sólidas e fecundas de acordo com o plano de Deus.
Em particular, o Papa observa que ”os ministros ordenados carecem,
habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais
das famílias” (AL 202). Se, por um lado, é necessário melhorar a formação
psico-afetiva dos seminaristas e envolver mais a família na formação para o
ministério (cf. AL 203), por outro ”pode ser útil também a experiência da longa
tradição oriental dos sacerdotes casados” (AL 202).
Neste
sexto capítulo importantes referências à preparação para o matrimônio,
acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida matrimonial,
acompanhamento das pessoas abandonadas, separadas ou divorciadas. Ao mesmo
tempo é reiterada a plena comunhão na Eucaristia dos divorciados e em relação
aos divorciados recasados é reforçada a sua “comunhão eclesial” e o
acompanhamento das suas situações que não deve ser visto como uma debilidade da
indissolubilidade do matrimônio mas uma expressão de caridade.
Capítulo sétimo: “Reforçar a educação dos filhos”
O
capítulo sétimo é integralmente dedicado à educação dos filhos: a sua formação
ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a educação sexual,
a transmissão da fé e, mais em geral, a vida familiar como contexto educativo.
É ressaltado pelo Santo Padre que “o que interessa acima de tudo é gerar no
filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de
preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (AL
261).
Capítulo oitavo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”
O
capítulo oitavo faz um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral
diante de situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor propõe. O
Papa usa aqui três verbos muito importantes: ”acompanhar, discernir e
integrar”, os quais são fundamentais para responder a situações de fragilidade,
complexas ou irregulares. Em seguida, apresenta a necessária gradualidade na
pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes
no discernimento pastoral e, por fim, aquela que é por ele definida como a
”lógica da misericórdia pastoral”.
As
situações ditas de irregulares devem ter um discernimento pessoal e pastoral e
– segundo a Exortação – “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar
civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes
formas possíveis”. Em particular, o Santo Padre afirma numa nota de pé de
página que “em certos casos poderá existir também a ajuda dos sacramentos”,
recordando que o confessionário não deve ser uma sala de tortura e que a
Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um alimento para os débeis”.
Mais
em geral, o Papa profere uma afirmação extremamente importante para que se
compreenda a orientação e o sentido da Exortação: ”é compreensível que não se devia esperar do
Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável
a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável
discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria
reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os
casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser
sempre os mesmos” (AL 300).
O
Papa desenvolve em profundidade as exigências e características do caminho de
acompanhamento e discernimento em diálogo profundo entre fiéis e pastores. A
este propósito, faz apelo à reflexão da Igreja ”sobre os condicionamentos e as
circunstâncias atenuantes” no que respeita à imputabilidade das ações e,
apoiando-se em S. Tomás de Aquino, detém-se na relação entre «as normas e o
discernimento», afirmando: ”É verdade que as normas gerais apresentam um bem
que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem
abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso
afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum
discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria
de norma” (AL 304).
Capítulo nono: “Espiritualidade conjugal e familiar”
O
nono capítulo é dedicado à espiritualidade conjugal e familiar, ”feita de
milhares de gestos reais e concretos” (AL 315). Diz-se com clareza que ”aqueles
que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta
do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor se serve
para levá-los às alturas da união mística” (AL 316). Tudo, ”os momentos de
alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma
participação na vida plena da sua Ressurreição” (AL 317).
No parágrafo conclusivo, o Papa afirma: ”Nenhuma família é uma realidade perfeita e realizada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…). Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (AL 325).
A
mudança pastoral do papa Francisco sobre o amor, matrimônio e família
Na
exortação apostólica Amoris Laetitia "há claramente alguns passos que
avançam, algumas hesitações e compromissos, e alguns silêncios à espera do
amadurecimento do ‘discernimento’ (termo-chave para o jesuíta Bergoglio) no
interior da Igreja", constata Massimo Faggioli, professor de
História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA, publicado por
Huffington Post, 08-04-2016. A tradução é de IHU On-Line (11-04-2016).
Segundo ele, "Amoris Laetitia corresponde às esperanças de quem esperava do papa Francisco um novo modo de ver as questões novas (novas para os tempos longos da igreja) sobre o matrimônio e família, e decepciona aqueles que esperavam mudanças radicais".
'Mas
é clara a direção - assinala Faggioli - para onde Francisco pretende guiar uma
Igreja que se defronta com enormes mudanças sócio-culturais".
Eis o artigo.
Com
o título ‘Amoris Laetitia’ o papa Francisco publicou a exortação apostólica
pós-sinodal que conclui (mas em certo sentido também abre) o debate que
envolveu a igreja católica entre 2014 e 2015 sobre os temas do matrimônio e da
família.
Com
nove capítulos, 325 parágrafos, e 391 notas de rodapé é um texto muito mais
longo que a Familiaris Consortio de João Paulo II (1981), também por causa da
linguagem de tipo catequético. O texto de João Paulo II e de Francisco são
textos formalmente do mesmo tipo – exortações apostólicas pós-sinodais – mas de
natureza diferente: o Sínodo do papa Francisco, realizado em duas etapas,
outubro de 2014 e outubro de 2015, foi um debate sinodal verdadeiro, aberto, e,
às vezes, áspero, onde a oposição ao papa Francisco não hesitou em criticar o
papa de um modo que não nunca foi usado no confronto dos predecessores.
Apesar
disto, Francisco em Amoris Laetitia não hesita em indicar a direção da marcha
da Igreja da misericórdia que tem em mente: faz isto citando abundantemente os
relatórios finais dos Sínodos de 2014 e 2105 e, particularmente, os textos
aprovados pela maioria, mas rejeitados por uma consistente minoria
(particularmente os números 84, 85 e 86 do relatório final de 2015).
Amoris
Laetitia é um documento do papa Francisco, mas também da igreja de Francisco
(com citações das conferências episcopais, como nos outros documentos de Francisco).
Há
claramente alguns passos que avançam, algumas hesitações e compromissos, e
alguns silêncios à espera do amadurecimento do ‘discernimento’ (termo-chave
para o jesuíta Bergoglio) no interior da Igreja. A parte dos silêncios e dos
textos não plenamente maduros diz respeito às questões mais controversas em
nível global: igreja e homossexuais, e a mulher na igreja.
Sobre
os homossexuais, Amoris Laetitia reitera a necessidade de não excluir ninguém
da igreja (parágrafos 250-251), mas para no ‘stop’ imposto pelo Sínodo 2015
pela minoria e, substancialmente, cita o Catecismo.
Sobre a mulher, a figura materna e paterna e a questão do gender (gênero), é a parte mais fraca do texto, devido também ao fato que o Sínodo substancialmente não discutiu estes temas, cúmplice da debilidade teológica de grande parte dos bispos.
A
parte do compromisso é aquela em torno da herança de Paulo VI e João Paulo II,
especialmente sobre a contracepção, que papa Francisco deixa muito matizada
acentuando o discurso sobre a consciência e sobre a paternidade e maternidade
responsável (parágrafos 68 e 82).
Um
compromisso significativo, mas com uma clara abertura se encontra na questão
dos divorciados recasados: o documento não cita a “comunhão espiritual” (até
agora proposta pela igreja pré-Francisco aos divorciados recasados como
alternativa à eucaristia); rejeita o exclusivismo que faz com os católicos em
situações difíceis se sintam como excomungados (parágrafo 243); fala das formas
não matrimoniais de união como “ocasiões a serem acompanhadas até o matrimônio”
(parágrafo 293); fala de “gradualidade no exercício prudencial dos atos livres
em sujeitos que não estão em condições de compreender, de apreciar ou de
praticar plenamente as exigências objetivas da lei” (parágrafo 295); torna
claro que “não existem receitas” para os casos difíceis (parágrafo 298) e, numa
importante nota de rodapé na página 329 reconhece os riscos implícitos em pedir
que os divorciados recasados “vivam como irmão e irmã”.
A
parte mais genuinamente bergogliana é onde Amoris Laetitia afronta a questão da
pastoralidade no confronto com a
doutrina e a lei. Há alguns parágrafos que expressam a teologia de Francisco e
dão o tom a todo o documento. No início do texto Francisco precisa que “não
todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas com
intervenções do magistério” (parágrafo 3). Convida a considerar “a situação
atual das famílias, tendo os pés no chão” (parágrafo 6). Pede que “todos se
vejam muito interpelados pelo capítulo oitavo sobre os desafios pastorais da
vida real dos fieis (parágrafo 6).
Uma
seção muito forte é constituída pelos números 36-38, onde Francisco admite que
na linguagem da igreja o fim da procriação tem obscurecido o fim unitivo, assim
tornando o instituto do matrimônio não atraente (parágrafo 36).
Reconhece
que a igreja tem dado uma ênfase excessiva sobre as questões doutrinais,
bioéticas e morais (parágrafo 37), e aponta o excesso de reações da Igreja
contra “o mundo decadente” (parágrafo 38) e, pelo contrário, indica como modelo
o comportamento de Jesus com a adúltera.
O
significado da mudança pastoral do papa Francisco é sintetizado no parágrafo
304: “É mesquinho considerar unicamente se o agir de uma pessoa responde ou não
a uma lei ou a uma norma geral, porque isto não basta para discernir e
assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano”.
Amoris
Laetitia corresponde às esperanças de quem esperava do papa Francisco um novo
modo de ver as questões novas (novas para os tempos longos da igreja) sobre o
matrimônio e família, e decepciona aqueles que esperavam mudanças radicais. As
mudanças para os divorciados recasados se darão na prática segundo a recepção
que os bispos e os padres darão ao documento.
Mas é clara a direção para onde Francisco pretende guiar uma Igreja que
se defronta com enormes mudanças sócio-culturais.
É
um documento longo e complexo que reflete um catolicismo global onde o
matrimônio e família são realidades muito mais diversificadas que nos tempos do
Concilio de Trento, que há 450 anos codificou o matrimônio no mundo católico
ocidental. É um documento que impede que as diferentes vertentes teológicas
declarem vitória ou derrota total, e é fruto da elaboração por parte do papa de
um longo processo sinodal que viu os bispos se dividirem visivelmente em torno
de algumas questões.
A
igreja de Francisco continua o seu caminho rumo a uma ‘desideologização’ do seu
magistério, em direção de uma maior ‘inclusividade’, e em direção de uma
misericórdia que toma como modelo o Jesus com a samaritana.
Agora resta ver que tipo de recepção terá Amoris Laetitia. Nunca se viu uma exortação pós-sinodal como esta, nunca fora realizado um sínodo verdadeiro como o de 2014-2015.