Estamos a poucos dias da celebração do NATAL. Neste “Convite à Reflexão” damos continuidade aos textos natalinos publicados na semana passada.
Em seguida, disponibilizamos uma pequena série de textos poético-espirituais da Bíblia (o livro do profeta Isaías; o Evangelho de Lucas) e da Literatura (Guimarães Rosa, Eduardo Galeano, e o “O meu pé de laranja lima”, talvez o mais belo retrato lírico da infância brasileira de periferia), além de uma frase singela e densa do papa Francisco.
O Verbo se fez carne e habitou entre nós (continuação)
(homilia dominical de monseñor Óscar Arnulfo Romero, pronunciada na catedral de San Salvador, El Salvador, no 3º Domingo do Advento, 17 de dezembro de 1978)
Leituras (ciclo litúrgico B): Isaías 61, 1-2a. 10-11
1 Tessalonicenses 5, 16-24
João 1, 6-8, 19-28
A Igreja é a prolongação desse mistério da encarnação de Cristo
O segundo pensamento é que essa encarnação prodigiosa não ficou como uma lembrança de vinte séculos atrás. O belo é que essa encarnação a quis prolongar o Senhor na sua Igreja. […]
Todo o número 8 da Constituição Lumen Gentium [Vaticano II] explica esse mistério da encarnação que é Deus feito carne prolongando-se na Igreja que é também “Corpo de Cristo na História”. Foi o título, como vocês recordam, de minha segunda Carta Pastoral: “A Igreja, Corpo de Cristo na História”. Quer dizer que nós agora, gente de 1978, assumidos pelo Batismo ao corpo da Igreja, somos a carne de Cristo aqui e agora. Ninguém está excluído dessa dignidade, só quem se quer excluir e trair essa Igreja manchando-a com tantas calúnias, esquecendo-se de que “quem cospe para cima lhe cai na cara”. Todos os que estão cuspindo na Igreja nesta hora estão cuspindo em si mesmos. São eles, como nós, batizados, membros vivos que integramos o Corpo de Cristo. [...]
Não estranhemos que em todas as instâncias humanas da Igreja exista o pecado porque a carne está necessitada de conversão ao verdadeiro Deus. E se Cristo se fez carne foi para redimi-la. A Igreja, carne de Cristo na História, necessita redenção em todos os tempos. E em 1978, bispos, sacerdotes e fiéis, todos, necessitamos redenção; somos carne putrefata, somos carne frágil, somos carne de Cristo na História. Ninguém pode dizer que pode atirar a primeira pedra quando todos somos pecadores. Por isso dizíamos que se a Igreja tem a valentia de denunciar os pecados do mundo, não é porque ela se creia impoluta, mas sim porque quem denuncia está também disposto a ser denunciado, e tem a obrigação de se converter para Deus, como nos vai dizer hoje São Paulo.
A segunda leitura de hoje nos fala precisamente de uma comunidade - a Igreja é comunidade -, a de Tessalônica, como poderia ser a de San Salvador, a de qualquer paróquia nossa, de que São Paulo diz quais são os segredos para que esse espírito de Deus (que deu carne ao Filho de Deus feito homem e segue dando vida e consistência a essa Igreja, prolongação de Cristo na História) seja verdadeiramente uma comunidade que honre a Cristo.
A alegria... Convido a que, nesta semana, nestas horas em que El Salvador parece que não tem lugar para a alegria, escutem como São Paulo nos repete: “Irmãos, estejam sempre alegres. Sejam constantes na oração. Em tudo dai graças: esta é a vontade de Deus, em Cristo Jesus a respeito de vocês”. O cristão, a comunidade cristã, não deve estar desesperada. Se morre alguém na família, não devemos chorar como pessoas sem esperança. Se na história de nossa pátria se vai nublando o céu, não desesperemos.
Somos uma comunidade de esperança e como os israelitas na Babilônia, esperemos a hora da libertação: chegará! Chegará “porque Deus é fiel”, diz São Paulo. E essa alegria tem que ser como uma oração: “Aquele que chamou vocês é fiel e cumprirá suas promessas”.
Esta comunidade Igreja é a que canta na primeira leitura de hoje: “Transbordo de alegria no Senhor, e me regozijo em meu Deus porque me vestiu com um traje de gala, e me envolveu com o manto da Justiça” - reparem que comparação - “como o noivo que se enfeita com um turbante ou a noiva que se adorna com suas joias”. Coisa bela ver um homem e uma mulher jovens que se amam e vão ao altar vestidos com sua melhor roupa.
Vão se entregar ao amor. Essa é a comparação que usa Deus hoje, no Antigo Testamento, para dizer este pacto entre o Deus que nos quer salvar e o povo que necessita salvação.
E a comparação se faz ainda mais poética: “Como a terra faz brotar uma nova planta, e o jardim faz germinar suas sementes, assim o Senhor fará brotar a justiça e o louvor ante todos os povos”. Imagino que quem semeia um jardim, da terra espera que surjam as flores; mas é ele quem pôs a semente. Isso é o que faz Deus na redenção, quando se diz: "Enviou-me a evangelizar os pobres, para anunciar a boa notícia a quem sofre, para curar os corações feridos, para proclamar a anistia aos cativos e aos prisioneiros a liberdade”. Vejam. Não lhes parece que é a voz da Igreja aqui em El Salvador gritando: “anistia!”, “liberdade!” Gritando: “nunca mais a tortura!”, “não mais a dor!” É a voz de Deus que quer semear bonança, o bem, na terra. E esta terra florescerá. O Senhor o prometeu e não falhará. “Quando? Não o sabemos; esperemos, como o agricultor semeia e não é impaciente, porque na devida hora reverdejará o jardim.
“Tenho fé que tudo mudará”, diz a bonita canção dos jovens agora. Cantemo-la com toda alegria! “Tenho fé que tudo mudará”. Certamente, porque Deus veio, o Verbo se fez carne e quer viver, não no indivíduo. Isto, por favor, tenhamos muito em conta, que é causa de um conflito muito grande na Igreja de hoje: a mudança de uma piedade individualista para uma piedade comunitária. Já passou o tempo de dizer: “eu trato de me salvar, não me importam os demais”; porque se não te salvas com outros, pode ser que não te salves tu sozinho. A salvação que Cristo trouxe é em comunidade, é Igreja.
E há, na segunda leitura de hoje, uns pensamentos que - vou lhes dizer com toda confiança de pastor com seu povo - são como as normas que querem ser em minha pastoral, o que São Paulo diz aos tessalonicenses: “não apagueis o Espírito, não desprezeis o dom da profecia. Examinai tudo e ficai com o que é bom”. Que quer dizer isso: “não extingais o Espírito”? Sinto essa palavra, como bispo e pastor, com uma tremenda responsabilidade, porque sei que o Espírito de Deus, que fez o corpo de Cristo nas entranhas de Maria e segue fazendo a Igreja na História, aqui, na arquidiocese, é um Espírito que está - como diz o Gênesis - pairando sobre uma nova criação. Sinto que há algo novo na arquidiocese. Sou homem frágil, limitado, e não sei o que é que está se passando, mas sei, sim, que Deus o sabe. E meu papel como pastor é isto que me diz hoje São Paulo: “não extingais”. Se com um sentido de autoritarismo eu digo a um sacerdote: “Não faça isso!”, ou a uma comunidade: “Não vá por ali!”, e me quero constituir como se eu fosse o Espírito Santo e vou fazer a Igreja a meu gosto, estaria extinguindo o Espírito.
Mas também me diz São Paulo: “provai a tudo, examinando-o e ficando com o que é bom”. Isso peço muito ao Espírito Santo: o que se chama o dom do discernimento. Irmãos, convido-os - e quanto mais de idade somos, mais os convido - a esse sentido tão difícil do discernimento. Quanto mais velha uma pessoa é, parece que só o seu é verdadeiro e o que é próprio dos jovens parece loucura, novidades de que não haveria que fazer caso. Muito cuidado! “Não extingais o Espírito, examinando a tudo e ficando com o que é bom”. Claro que dos jovens não vamos aprender a fumar maconha, dos jovens não vamos aprender a libertinagem, do mundo não vamos aprender os vícios; mas nesse mundo de vícios e de drogas e de defeitos, o Espírito de Deus está sobrevoando. E por isso digo em minha carta pastoral: “a Igreja tem que ir com Cristo sem ter medo que digam que está comendo com publicanos e prostitutas [cf. Mc 2, 16].
A Igreja é Cristo encarnado na carne real, concreta; e essa carne que hoje pode ser carne de uma prostituta, amanhã pode ser a carne arrependida de uma santa,como foi a Madalena. E essa carne que hoje é carne de um Agostinho em devaneios mundanos e libertinos, que parecia que não poderia ser casto, amanhã pode ser a carne de Santo Agostinho, o pecador arrependido. E a juventude de hoje, e as comunidades que têm talvez até suas coisas estrambóticas: selecionemos o bom. Ajudem-me, queridos sacerdotes, queridos catequistas, queridas religiosas, a ser compreensivo e a pedir ao Espírito Santo o dom do discernimento para descobrir, nesta Igreja bela da Arquidiocese, os verdadeiros valores. Vejam, o Espírito no se repete! Diz uma frase bíblica muito significativa: “O Espírito faz novas todas as coisas” [Ap 21, 5]. Nós somos os que envelhecemos e queremos que tudo se faça segundo nosso padrão de velhos. O Espírito nunca é velho, o Espírito sempre é jovem.
Ontem, quando celebrava o Sacramento da Confirmação a um grupo de jovens, na Colônia Santa Lúcia, dizia-lhes esta frase, e que gosto me deram aqueles jovens recebendo o Espírito Santo com tanta consciência, e um deles que disse: “nós nos comprometemos com o Espírito Santo, queremos ser fiéis a Ele”. Essa é a Igreja que prolonga a encarnação de Jesus Cristo; essa Igreja que é encarnação e na qual, portanto, há muito de bom e há muito de mau.
Reparem numa frase que nos revela muito do Concílio Vaticano II [Gaudium et Spes 22]. Diz que a vocação do ser humano é única, é uma vocação divina: “por isso devemos crer que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de que, na forma de só Deus conhecida, associem-se todos os seres humanos a este mistério pascal”. é uma frase também, para mim muito reveladora quando penso que não só nos limites da Igreja católica, muito menos nos mais estreitos limites do sacerdócio e do episcopado ou da vida religiosa, só ali, estivesse o bom, e que tudo mais fosse mau. Mentira! Aqui nos acaba de dizer o Concílio que, fora da Igreja católica, sendo que todos os seres humanos são chamados a essa vocação divina, o Espírito Santo providenciará que, por caminhos que só Ele conhece, participem deste mistério de Cristo todas as pessoas, mesmo quem não seja cristão. Que vergonha quando se pensa que talvez haja pagãos, gente que não tem fé em Cristo, mas que talvez são melhores do que nós y e estão mais perto do Reino de Deus!
Recordam quando Cristo recebeu a visita de um pagão, um centurião? [cf. Mt 8, 5-10]
E quando Cristo lhe disse: “Vou curar a teu servo”. O centurião, cheio de humildade e de confiança lhe disse: “Não, Senhor! Não sou digno de que vás até lá. Dizei uma só palavra e meu servo ficará curado”. Cristo se admira - diz o Evangelho - y diz: “Em verdade não encontrei tanta fé em Israel”. Digo: Cristo dirá também desta Igreja: “fora dos limites do catolicismo talvez haja mais fé, mais santidade”. Por isso não temos que extinguir o Espírito; porque o Espírito não tem fronteiras. O Espírito não é monopólio de um movimento cristão, de uma hierarquia, nem de um sacerdócio nem de uma congregação religiosa. O Espírito é livre e busca que os seres humanos, onde quer que se encontrem, realizem sua vocação de encontrar-se com Cristo, Ele que se fez carne para salvar toda carne humana. Isso sim, queridos irmãos, e sei que à Catedral chega também gente que até perdeu a fé ou não é cristã... Sejam bem-vindos! E se esta palavra lhes está dizendo algo, convido-os: reflitam na intimidade de sua consciência porque, como Cristo, posso-lhes dizer: “O Reino de Deus não está longe de ti, o Reino de Deus está dentro de teu coração, buscai-o e o encontrarás” [Lc 17, 21].
Vida da Igreja
Neste ambiente de realidade, carne que é boa e que é má, atentemos em nossa Igreja concreta. Desde minha Igreja, dirijo o olhar ao centro desse catolicismo que é o papa, e encontro com alegria, traços que vêm a confirmar nossa linha pastoral: Escrevendo às Nações Unidas, o santo padre, ao celebrarmos os 30 anos [da Declaração] dos Direitos Humanos, invoca com tristeza: “ainda que não possamos ignorar que já houve algum progresso, nós nos vemos obrigados a observar uma aparentemente crescente divergência entre as significativas declarações das Nações Unidas e as violações, às vezes generalizadas, dos Direitos Humanos em tantas partes da sociedade e do mundo”.
É uma carta preciosa que o papa João Paulo II escreve ao secretário geral das Nações Unidas e na qual se comprova, com uma palavra séria como é a do papa, que há muitos governos e muitos Estados nos quais os direitos humanos estão sendo pisoteados e nos quais há muitos abusos de autoridade. [...]
Em Santiago do Chile houve um simpósio que se encerrou no dia 25 de novembro. Chegaram-me as conclusões e as notícias de quem participou. Tive um amável convite do cardeal de Santiago do Chile, mas preferi, por causa da situação em meu país, permanecer sempre com meu povo, o que será o testemunho que melhor se pode dar.
Mas, desde lá, têm a bondade de me notificar a participação do cardeal Silva Henríquez, do cardeal Arns de Brasil e de outras personalidades do mundo eclesiástico, diplomático, protestante, etc. E, dentre as conclusões do simpósio, declaram que “muitos governos impuseram sistemas que relativizam o valor da pessoa, e nos quais a razão de Estado é pretexto suficiente para exercitar as mais variadas formas de violência institucionalizada e tortura”. Exortam também aos crentes do mundo inteiro a “se unir num esforço comum de oração e de ação, de modo que, impulsionados pela fé, busquem valorosamente a verdade e a justiça, e realizem um renovado esforço por recriar a solidariedade dos grupos, povos e nações”. Referem-se, bastante detalhadamente, ao atropelo das liberdades, da justiça, da vida de muitos países, sobretudo em nosso continente.
Também no Chile [sob ditadura], as relações Igreja-governo estão seriamente marcadas por conflitos do governo com o povo. A Igreja pede concretamente informação sobre 650 desaparecidos. E a Igreja no Chile também é chamada de comunista. Como sempre acontece quando toca nos interesses do governo ou do capital, a Igreja acabará por ser batizada assim!
Em nossa Arquidiocese, alegremo-nos também com os fatos de nossa casa […]
No dia 11/12, 2ª-f, tive uma entrevista com gente que conheceu bem a fundo ao Pe. Neto Barrera [Ernesto Barrera, sacerdote da Arquidiocese de San Salvador, assassinado pelas forças da repressão] e eles expressavam com verdadeiro agradecimento e até com lágrimas, o carinho para um sacerdote que lhes ensinou a amar.
Diziam-me: “Antes éramos muito egoístas, só buscávamos o nosso; mas ele começou a nos dizer que nos compreendêssemos, que nos ajudássemos”. Creio que se uma árvore se conhece por seus frutos, este fruto está dizendo do labor sacerdotal do Pe. Neto. Ratifico, nesta ocasião, a posição da Carta Pastoral, que afiança seu apoio a tudo o que é justo onde quer que se encontre, assim como rechaça tudo o que é injusto e abusivo onde quer que se encontre. [...]
Fatos da semana
Também, nessa menção a coisas concretas, quero convidá-los a ler em Orientación [periódico da Arquidiocese de San Salvador], na página de Solidariedade, as declarações de Francisco Baltazar Campos Mendoza, hoje asilado n Embaixada do México. São declarações autorizadas diante de um advogado, nas quais narra as horríveis torturas de que foi objeto e como se quis dinamitá-lo com outros três torturados. Mas ele, por puro milagre, pôde pôr-se a salvo ao despertar de uma injeção misteriosa que lhe haviam aplicado enquanto os outros foram feitos em pedaços quando estourou a dinamite. Em sua declaração, menciona que nos cárceres falou com Pedro Arístides Pineda, José Victoriano Arévalo Romero, Domingo Chávez Martínez, Jorge Vitelio Martínez y Lil Milagro Ramírez, a qual lhe contou ter falado na Guarda Nacional faz muito tempo com o Dr. Carlos Madriz, quem, por sua vez, viu a Jorge Luis Zelayandía. Uma comissão que estudou a declaração de Campos Mendoza tirou estas conclusões:
“Primeiro. É uma prova a mais de que existem presos políticos nos cárceres dos corpos de segurança, apesar de que estes o neguem sistematicamente;
Segundo. Demonstra que em nosso país é ineficaz o recurso à exibição pessoal;
Terceiro. Confirma o uso ilegal de cruéis torturas durante os interrogatórios realizados pelos corpos de segurança;
Quarto. Revela o uso ilegal de drogas durante esses interrogatórios;
Quinto. Deslegitima as declarações extrajudiciais apresentadas aos tribunais pelos corpos de segurança para acusar a um réu;
Sexto. Manifesta o quanto é injusta e arbitrária a disposição do Art. 496 do Código Processual Penal que reconhece como prova suficiente para decretar detenção provisional a confissão extrajudicial realizada ante os corpos de segurança na presença de testemunhas nomeadas por estes;
Sétimo. Desmascara várias manobras dos corpos de segurança para fazer desaparecer definitivamente a alguns de seus capturados;
Oitavo. Vem a ser o clamor de um povo oprimido e torturado que convida a todos as pessoas de boa vontade a colaborar para que em El Salvador cessem as torturas, revogue-se a Lei de Defesa e Garantia da Ordem Pública, liberte aos desaparecidos e presos políticos, haja verdadeira justiça social que fundamente uma paz duradoura.”
Nesse mesmo campo, situo também a triste notícia de que os quatro sequestrados seguem sequestrados [...] Com os três familiares e empresas tive relações pessoais, em sincero meu sincero desejo de ajudar pastoralmente. E quero dizer, até onde chegue esta voz, que as duas condições políticas postas para libertar os sequestrados são a liberdade de cinco réus [...]; e a segunda condição: a publicação do manifesto da FARN (Forças Armadas da Resistência Nacional) em periódicos do país -, que essas duas condições não dependem das famílias nem das empresas. A comissão que foi constituída para interceder e ajudar nesses sequestros pediu audiência ao senhor presidente e não lhe foi concedida, e está disposta a pôr toda sua colaboração enquanto esteja a seu alcance. As famílias e empresas também estão dispostas a negociar a liberdade desses quatro senhores.
E, portanto, em nome da Igreja, quero recordar aqui o que o próprio papa disse nestes dias. Falando ao final de sua audiência semanal, o pontífice disse: “o sequestro é uma praga que provoca muito sofrimento e é indigna dos países civilizados. Em nome de Deus - disse textualmente - apelo aos responsáveis para que libertem as pessoas que mantêm cativas por um resgate e também desejo recordar-lhes que Deus é o vingador das ações da humanidade”.
Alegro-me de que esse pensamento do papa apoie o que supliquei em Orientación também: Um Natal sem presos políticos nem sequestrados: “Se essas letras chegarem ao conhecimento de quem tem em seu poder a irmãos vítimas do desaparecimento ou do sequestro, saibam que junto com minha solidariedade para com o sofrimento e a dor das vítimas e suas famílias quero manifestar também a vocês minha súplica encarecida, inspirada no amor e na justiça cristã, de que respeitem a vida e a dignidade humanas de seus cativos e não sufoquem o direito humano que eles, igual do que vocês, têm à liberdade. Recordem que a própria luta pelo bem-estar ou as reivindicações justas do povo que vocês dizem professar, perdem sua eficácia, simpatia e beleza quando se encharcam de outras injustiças e violências. Celebremos, com o esforço de todos um Natal feliz, um Natal sem desaparecidos, sem réus políticos, sem sequestrados, um Natal que congregue toda família sem dor e sem medo no lar”.
Deus se fez humano para que todas as pessoas humanas pudessem ser divinas
Vamos terminar com um pensamento que nos leva já ao altar e é que esse Deus que se fez humano e que assumiu essa carne concreta de crimes, de violências, de coisas tão desumanas, de dores tão inauditas, de esperanças, de soçobras; tudo isso é a carne, mescla de justiça e de atropelo, de inocência e de pecado; tudo isso o assumiu o Cristo; e nessa manhã, em que concretizamos aqui, em nossa comunidade e em nossa pátria, as realidades da carne que vivemos, toda essa carne foi assumida pelo Cristo. Mas, cheia de alegria, a Jerusalém que se liberta vê que há de brotar, dessa terra, a justiça e o amor.
E São Paulo nos exorta: “Que o próprio Deus da paz vos consagre totalmente e que todo vosso ser - espírito, alma e corpo - seja guardado irrepreensível até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Quero dizer também que há umas palavras que me encheram de muito ânimo e que estão bem nesse marco da encarnação que meditamos hoje. Quando os cardeais de Paris, da Inglaterra e da Bélgica, em uma carta inesperada pela grandiosidade que significa para mim esse apoio, dizem entre outras coisas: “recorda-nos [essa luta pelos direitos humanos] que cada pessoa humana é uma imagem visível do Deus invisível. Em realidade, em cada homem ou mulher nós tropeçamos com o próprio Deus e com seu chamado em favor da justiça e do amor. As violações sistemáticas dos direitos humanos são em si mesmas uma crua negação da fé cristã na encarnação. Dói-nos que o seu testemunho profético se veja enfrentado com ataques públicos à Igreja. Lemos com grande tristeza como, através da imprensa e de outros meios, lança-se uma campanha de vilipêndio que trata de desprestigiar sua liderança. Queremos nessa oportunidade assegurar-lhe nossa fraternal solidariedade”.
E não por ser a mim, mas por ser em favor desse sentimento da encarnação de Deus em nossa dignidade humana, que me alegro de que isto que estamos fazendo - ainda que seja mal visto - da parte de Deus e à luz da Palavra de Deus que hoje refletimos, vemos de que coisas é capaz o amor de Deus quando ama esta carne, que já podia merecer todo o desprezo de Deus e, apesar disso, segue-nos amando até a loucura de fazer-se criança na manjedoura de Belém e de fazer-se crucificar na cruz e de seguir dando-nos o sacrifício do altar todos os domingos e todos os dias.
Assim seja.
Textos poético-espirituais da Bíblia e da Literatura
O parto
Três dias de parto e o filho não saía:
- Tá preso. O negrinho tá preso - disse o homem. Ele vinha de um rancho perdido nos campos.
E o médico foi até lá.
Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu.
Depois, contou para Glória Galván:
- A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma ideia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entres as pernas abertas da mulher.
O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou: Não se pode fazer mais nada.
E mesmo assim, sabe-se lá por quê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e apertou seu dedo com força.
Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa.
(GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 222)
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“O povo que andava nas trevas viu uma grande Luz. Sobre aqueles que habitavam na sombra da morte uma Luz resplandeceu. Multiplicaste a sua Alegria, aumentaste o seu júbilo. Eles rejubilam diante de Ti como na alegria da colheita, como a gente se alegra na repartição do despojo. Pois o jugo que pesava sobre ele, a vara do feitor sobre os seus ombros Tu a quebraste como no dia de Madiã. Toda bota que abalava o chão, todo manto revolvido no sangue vão ser queimados, pasto das chamas.
POIS UMA CRIANÇA NASCEU PARA NÓS, UM FILHO NOS FOI DADO.” (Is 9, 1-5a)
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“Da mulher - que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo.
E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papirí à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta - que era simples encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores.
Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - ‘Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são e que deve se chamar Riobaldo...’ Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão. Alto eu disse, no me despedir: - ‘Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...’ - e saí para as luas.”
(ROSA, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas. 9ª ed.Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 353)
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Mal acabei de acordar e chamei Totoca.
- Vamos ver? Eu digo que tem.
- Eu não iria ver.
- Pois eu vou.
Abri a porta do quarto e os sapatinhos tênis estavam vazios para a minha decepção. Totoca aproximou-se limpando os olhos.
- Não falei?
Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza. Sem poder me conter exclamei:
- Como é ruim a gente ter pai pobre!...
Desviei meus olhos do tênis para uns tamancos que estavam parados à minha frente. Papai estava em pé nos olhando. Seus olhos estavam enormes de tristeza. Parecia que seus olhos tinham crescido tanto, mas crescido tanto que tomavam toda a tela do cinema Bangu. Havia uma mágoa dolorida tão forte nos seus olhos que se ele quisesse chorar não ia poder. Ficou um minuto que não acabava mais nos fitando, depois, em silêncio, passou por nós. Estávamos estatelados sem poder dizer nada. Ele apanhou o chapéu sobre a cômoda e foi de novo para a rua. Só então Totoca me tocou no braço.
- Você é ruim, Zezé. Ruim como cobra. É por isso que...
Calou-se emocionado.
Eu não vi que ele estava ali.
- Malvado. Sem coração. Você sabe que Papai está desempregado há muito tempo. Foi por isso que ontem eu não podia engolir, olhando o rosto dele. Um dia você vai ser pai e vai saber o quanto dói uma hora dessas.
Por mais, eu chorava.
- Mas eu não vi, Totoca, eu não vi... [...]
Bati com o calcanhar na minha caixa de sapato e tive uma ideia. Talvez assim Papai me perdoasse toda a maldade. [...]
- Engraxando hoje, Zezé?
- Nunca precisei como hoje.
- E o Natal como foi?
- Foi regular. [...]
Saí em desabalada carreira para a venda do Miséria e Fome, chacoalhando a caixa de engraxate.
Entrei de furacão, com medo que ele já fosse fechar. [...]
- É para Papai. [...] Passei o dia trabalhando para comprar este presente de Natal para Papai.
- Verdade, Zezé? E o que ele te deu?
- Nada, coitado. Ele está ainda desempregado, o senhor sabe.
Ele ficou emocionado e ninguém falou no bar. [...]
Corri de novo até em casa.
A noite tinha chegado também. Havia a luz acesa do lampião apenas na cozinha. Todos tinham saído, mas papai estava sentado na mesa olhando o vazio da parede. Apoiava o rosto na palma da mão e o cotovelo na mesa.
- Papai.
- O que é, meu filho?
Não havia rancor nenhum em sua voz.
- Onde você andou o dia todo?
Mostrei a caixa de engraxar.
Coloquei a caixa no chão e meti a mão no bolso tirando o pacotinho.
- Veja, Papai, comprei uma coisa linda para o senhor.
Ele sorriu, compreendendo o quanto custara aquilo. [...]
E foi me dando uma coisa. [...] E senti que estava estourando. Rebentando todo por dentro. Rebentando aquela dor tão grande que passara o dia ameaçando.
Olhei Papai. O seu rosto barbado, os seus olhos.
Só pude falar:
- Papai... Papai...
E a voz foi sendo consumida pelas lágrimas e soluços.
Ele abriu os braços e estreitou-me ternamente.
- Não chore, meu filho. Você vai ter muito que chorar pela vida, se continuar um menino assim tão emotivo...
- Eu não queria, Papai... Eu não queria dizer... aquilo.
- Eu sei. Eu sei. Não fiquei zangado porque no fundo você tinha razão.
Me embalou, um pouco mais.
Depois levantou o meu rosto e enxugou-o com o pano de prato que estava jogado perto.
- Assim é melhor.
Suspendi as minhas mãos e alisei o seu rosto. Passei os dedos de leve sobre os seus olhos tentando colocá-los no lugar, sem aquela tela grande. Tinha medo que se não o fizesse, aqueles olhos iriam me seguir a vida inteira. [...]
Depositou a mim e o resto dos meus soluços no chão. Apanhou no armário um prato.
- Glória guardou um pouco de salada de frutas para você.
Eu não conseguia engolir. Ele sentou-se, foi levando pequenas colheradas à minha boca.
- Agora passou, não passou, meu filho?
Fiz que sim com a cabeça, mas as primeiras colheres entravam na boca com gosto salgado. O resto do meu choro que custava a passar.
(VASCONCELOS, José Mauro. O meu pé de laranja lima. 70ª ed.
São Paulo: Melhoramentos, 1968; cf. p. 51-60)
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“Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura.”
(Evangelii Gaudium, exortação apostólica do papa Francisco sobre a Alegria do Evangelho, nº 286)
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Um certo MIGUILIM morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. [...]
No outro dia, o Dito estava melhorado. Só que tinha soluço, queria beber água-com-açúcar. Miguilim ficava sentado no chão, perto dele. Vovó Izidra tinha de principiar o presépio, o Dito não podia ver quando ela ia tirar os bichos do guardado na canastra - boi, leão, elefante, águia, urso, camelo, pavão - toda qualidade de bichos que nem tinha deles ali no Mutúm nem nos Gerais, e Nossa Senhora, São José, os Três Reis e os Pastores, os soldados, o trem-de-ferro, a Estrela, o Menino Jesus. Vovó Izidra vez em quando trazia uma coisa ou outra para mostrar ao Dito: os panos, que ela endurecia com grude - moía carvão e vidro, e malacacheta, polvilhava no grude. Mas Dito queria tanto poder ver quando ela estava armando o presépio, forrando os tocos e caixotes com aqueles panos - fazia as serras, formava a Gruta. Os panos pintados com anil e tinta amarela de pacari, misturados davam um verde bonito, produzido manchado, como todos os matos no rebroto. E tinha umas bolas grandes, brilhantes de muitas cores, e o arroz plantado numa lata e deixado nascer no escuro, para não ser verde e crescer todo amarelo descorado. Tinha a lagoa, de água num prato-fundo, com os patinhos e peixes, o urso-branco, uma rã de todo tamanho, o cágado, a foquinha bicuda. Quase a maior parte daquelas coisas Vovó Izidra possuía e carregava aonde ia, desde os tempos de sua mocidade. Depois de pronto, era só pôr o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe e o pai dele e o boizinho e o burro. E punha um abacaxi-maçã, que fazia o presépio todo cheirar bonito. Todos os anos, o presépio era a coisa mais enriquecida, vinha gente estranha dos Gerais, para ver, de muitos redores. [...]
(ROSA, João Guimarães, Campo Geral. Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile). 8ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 5; 72-73)
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“Havia na mesma região pastores, que viviam nos campos e montavam guarda durante a noite junto a seu rebanho. Um anjo do Senhor se apresentou diante deles, a glória do Senhor os envolveu de luz e eles ficaram tomados de grande temor. O anjo lhes disse: “NÃO TENHAIS MEDO, POIS EIS QUE VOS ANUNCIO UMA BOA NOTÍCIA, QUE SERÁ UMA GRANDE ALEGRIA PARA TODO O POVO: NASCEU-VOS HOJE, NA CIDADE DE DAVI, UM SALVADOR, QUE É O CRISTO SENHOR, E EIS O SINAL QUE VOS É DADO: ACHAREIS UM RECÉM-NASCIDO ENVOLTO EM FAIXAS E DEITADO NUMA MANJEDOURA.” (Lc 2, 8-12)