A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, que trata da Reforma da Previdência, inclui em seu texto o fim das isenções fiscais a instituições de caráter filantrópico. Advogado da Associação Pelotense de Assistência e Cultura (APAC), Dyogo Patriota explicou, em visita à Universidade Católica de Pelotas (UCPel), os prejuízos que poderão ser causados à sociedade caso a mudança ocorra da maneira que está formatada.
A sugestão para inclusão na PEC do item que revê o papel da filantropia partiu do deputado federal Arthur Oliveira Maia (PPS-BA), relator da proposta. O parlamentar argumenta que a isenção deve acabar devido à dificuldade de fiscalização e à utilização de valores destinados à Previdência em áreas que não são diretamente ligadas à Seguridade Social, como a Educação.
Patriota, no entanto, defende que as instituições filantrópicas são o principal braço de atuação do Poder Público em diversas políticas públicas essenciais nos dias hoje. Ao cortar o incentivo tributário, essas instituições teriam ainda mais dificuldades em atender a população, como os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo.
Confira na entrevista alguns pontos destacados pelo advogado sobre a polêmica:
UCPel - Por que o trecho da PEC 287/2016 que trata sobre a isenção fiscal a entidades filantrópicas é polêmica?
Dyogo Patriota - A polêmica nasce porque o governo ainda não provou se existe prejuízo na Previdência Social e, caso exista, qual o grau desse comprometimento. Existem tributos como PIS e Confins que não entraram nessa conta, e sem a prova desse prejuízo previdenciário não se pode aprovar a PEC. É importante promover uma discussão mais profunda sobre o que a sociedade realmente busca e quer. Diversos grupos sociais poderão ser atingidos por essa nova emenda à Constituição.
UCPel – O que faz uma entidade filantrópica?
Dyogo Patriota - A sociedade ainda não entende bem o que as filantrópicas são. Existem filantrópicas nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. Parte dos grandes programas públicos só são viáveis devido às entidades filantrópicas. Veja: 60% de todo o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil hoje são feitos pelas filantrópicas, principalmente através das Santas Casas. Boa parte do Prouni é oferecido pelas filantrópicas. É bom, nesse sentido, fazer uma comparação, porque existem outras entidades para as quais a Constituição veda a incidência de impostos. Eu posso dar o exemplo de livros e igrejas. Ou seja, não incide imposto sobre estas instituições ou sobre estes bens. No caso das entidades filantrópicas, embora elas não paguem impostos e contribuições sociais, a legislação exige que elas têm que dar em troca o aquilo que não pagaram.
UCPel – As instituições filantrópicas causam prejuízos para a Previdência?
Dyogo Patriota - O governo entende que elas causam déficit à Previdência e está buscando novos recursos que podem ser utilizados para pagar benefícios ou viabilizar investimentos. Falta um entendimento de que essas entidades hoje contribuem mais do que deixam de pagar em impostos ou tributos. Uma pesquisa do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif) comprovou, estatisticamente, que para cada R$ 1,00 que não é pago em serviço, R$ 6,00 são devolvidos. Parece-me que tirar esse benefício tributário diminui a capacidade das entidades filantrópicas de atuar em favor das pessoas carentes. Então, não sei até que ponto essa conta faz sentido. Você faz uma PEC para fazer economia de recursos, mas desconsidera que tem um grupo de instituições que atua nas políticas públicas, dando benefício extra tanto para a sociedade quanto para o poder público.
UCPel – Quantas pessoas são atendidas pelas entidades filantrópicas hoje no Brasil?
Dyogo Patriota - O SUS é quase que totalmente constituído, na parte privada, pelas filantrópicas. Aproximadamente 60% dos serviços do SUS no país é prestado por elas. Quanto ao Prouni, o número chega a um terço do programa. Então dá pra perceber o impacto que haverá no país em vários segmentos da população caso a PEC seja aprovada.
UCPel – Como sensibilizar o Congresso sobre o tema?
Dyogo Patriota - O procedimento já foi iniciado desde que o relator, deputado Artur Maia, colocou essa proposição no dia 19 de abril. Sabemos que a PEC necessita ser aprovada duas vezes na Câmara e duas no Senado. Então, nesse primeiro momento, buscamos esclarecer os deputados de cada Estado sobre os impactos disso. Percebo que as entidades filantrópicas tendem a fazer o serviço, mas não divulgam bem isso. Um exemplo é de que quando falo de instituições de ensino superior, por exemplo, a extensão é um dos grandes critérios de atuação. Existem instituições que prestam serviço de educação e têm foco na extensão, trabalhando junto com as comunidades mais carentes ou com clínicas e hospitais nas áreas da saúde. Quando são empresas que exploram a educação superior, a extensão não tem tanta importância. As entidades filantrópicas também são mais interiorizadas e, devido a isso, estão mais próximas da comunidade. O que falta para as filantrópicas é explicar melhor o seu trabalho para a sociedade e, concomitantemente, pedir o apoio dos deputados de cada Estado, sensibilizando e entregando esses dados. Já começamos a fazer isso. Pedimos audiências, entregamos memoriais e apresentamos pesquisas que foram feitas para que os deputados possam se posicionar e ver o que melhor mesmo para a sociedade. Cada cidadão pode e deve ter uma participação muito firme nesse processo.
UCPel - Na sua opinião, os deputados podem ter dificuldades de entender o papel das filantrópicas?
Dyogo Patriota - Em parte é falta de conhecimento. O que percebo é que existem deputados da base do governo que aparentemente precisam garantir a aprovação da PEC, porque essa é a visão que está em vigor. Ainda que tenham conhecimento disso, me parece que eles estão pesando apenas o plano que prevê a redução dos custos da Previdência. Mas na verdade, a PEC, a partir do momento em que toca nas filantrópicas, deixa de ser a PEC da Previdência e passa a ser a PEC da Seguridade Social. Quem tiver curiosidade de ler a Constituição com um pouco de calma, a partir dos artigos 194 e 195, perceberá que a seguridade é formada pelas políticas de Saúde, Assistência e Previdência. Até pode ser que a PEC diminua de fato o impacto na Previdência, mas pode aumentar o impacto da despesa de orçamento dos Ministérios da Educação, Saúde e Assistência Social. Eu não acredito que uma entidade filantrópica deixe de seguir o seu objetivo principal de atender os hipossuficientes porque tem isenção ou não. Mas a verdade é que a partir do momento em que esse benefício previdenciário deixar de ser vivenciado pelas entidades, os recursos que sobram não são da mesma proporção do que ocorria antes. E essa é a preocupação. O que a sociedade quer: que as filantrópicas paguem mais tributos ou que elas tenham mais atendimentos SUS e bolsas Prouni? Antes de mais nada, existe um escolha política que está por trás disso. Estamos mostrando para todos os deputados e senadores que pode existir uma economia para a Previdência, mas do jeito que está criará um gasto público ainda maior para outros setores.
UCPel - Como a comunidade pode ajudar?
Dyogo Patriota - Dois pontos são importantes: a partir do momento que o relatório da PEC foi entregue, fica disponível no site da Câmara. Quem quiser se aprofundar, pode ler o documento. O segundo ponto - o mais importante - é que a sociedade comece a compreender o que são as filantrópicas e o que é esse sistema. Eu sou de Pernambuco e estudei em uma instituição filantrópica de lá. Na época, não conseguia compreender como uma universidade era filantrópica se eu pagava pelos serviços educacionais, mas a verdade é que não existe ensino que seja gratuito em sua base. Ou seja, posso até não cobrar dos alunos, mas alguém custeia esse serviço e é o caso das universidades federais. Embora elas não cobrem dos estudantes, o orçamento público paga pelos serviços que foi prestado e muitas vezes esse serviço é mais caro do que a particular.
UCPel - Como funciona uma entidade filantrópica?
Dyogo Patriota - As filantrópicas criaram uma forma de autofinanciamento mais inteligente no sentido de serem independentes do poder público. Elas cobram por parcelas do seu serviço, mas toda a margem do lucro é devolvida da sociedade. Você constrói algo junto com o particular independentemente das políticas de governo e do Estado. Sabe que conforme o partido que está no poder, a visão de mundo se altera. A tendência das filantrópicas é servir de forma mais harmônica no tempo. Várias entidades beneficentes fora dos programas públicos ainda prestam serviços com bolsas próprias e que não são cobertas pelo Poder Público. Se as filantrópicas são o principal braço do poder público em políticas que são essenciais hoje, qual é o sentido de você cortar esse incentivo tributário sem abrir para a sociedade quais serão as consequências disso?
UCPel - Com a provação da PEC, como fica o cenário?
Dyogo Patriota - Se for aprovada, haverá uma batalha que deverá se dirigir ao Supremo Tribunal Federal. Dentro da Teoria Constitucional, existem cláusulas que são conhecidas com cláusulas pétreas. O Supremo diz que não pode haver projeto de emenda constitucional ou emenda constitucional contra cláusula pétrea. Você não pode ter uma emenda para mexer na parte rígida da Constituição. Por exemplo, não e possível ter um projeto de emenda constitucional para dizer que o poder público não tem que prestar serviços essenciais para uma sociedade como Educação e Saúde. Ainda que tenha uma PEC nesse sentido, se ela tramitar, será com vício. Quem vai dar a palavra final sobre essa questão - se ela passar - será o Supremo. Apostamos muito que debatendo com cada deputado, senador e sociedade, eles vão se conscientizar que a essa PEC não faz sentido. É importante que as pessoas comecem a pensar o que é uma entidade filantrópica e qual o impacto que essa instituição tem em sua cidade. A UCPel, por exemplo, tem grande impacto na comunidade através do SUS, do Prouni e de projetos de Extensão. Faz sentido que essa instituição pague tributos e tenha uma margem menor para reverter em serviços para a comunidade? A educação tem um impacto muito maior no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), na distribuição de renda e qualidade de vida do que o pagamento do tributo puro e simples.