Quem nunca teve dificuldade em compreender uma receita médica? Dosagem, horário, muitas vezes uma dúvida e a administração errada do medicamento podem resultar na piora do paciente. A situação se torna ainda mais complicada quando o doente é o próprio filho. Essa foi a realidade vivida por uma família indígena, moradora do interior de Pelotas. A dificuldade enfrentada pelos pais para compreenderem as orientações médicas foi superada pela criatividade da equipe de profissionais do Hospital São Francisco de Paula (HUSFP/UCPel). Eles criaram uma “receita ilustrada” para garantir que Gael de 3 anos, portador de uma doença cardíaca de possível origem genética, se mantenha saudável e longe do hospital.
A ideia surgiu após médico, psicólogas e assistentes sociais do HUSFP/UCPel, além de integrantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Secretaria Municipal da Saúde (SMS), Conselho Tutelar e Ministério Público, investigarem o motivo de tantas internações – apenas no HUSFP/UCPel foram nove baixas hospitalares.
“Fizemos uma reunião com a presença da família e do cacique da aldeia em que vivem e conseguimos o diagnóstico: não era falta de adesão ao tratamento, mas erro na administração da medicação. Eles se atrapalhavam na diluição e quebra de comprimidos, além dos horários”, lembra o pneumologista pediátrico, João Carlos Bandeira Affonso Neto, que acompanha Gael.
Com a causa das internações esclarecida os profissionais da psicologia hospitalar do HUSFP/UCPel entraram em ação. As psicólogas supervisoras, junto com os alunos do curso de Psicologia e o médico da criança, resolveram apostar na cultura da família para criar uma receita acessível e capaz de ser seguida sem dúvidas.
“Para compreensão de quais adaptações eram necessárias, o serviço de psicologia hospitalar conversou com os pais para entender a realidade vivida na aldeia e as suas maiores dificuldades. O papel da psicologia hospitalar é auxiliar na travessia da experiência do adoecimento, minimizando o sofrimento que este pode causar”, relata a supervisora de psicologia hospitalar, Anelise Cesar Lopes Neves.
A equipe de profissionais do HUSFP/UCPel precisou superar as limitações da mãe de Gael com a língua portuguesa – ela se comunica apenas no idioma da etnia Kaikang, além de fazer com que se sentisse segura para dar os remédios ao filho. O pai até conseguia ler as determinações do médico, mas nem sempre estava por perto para ajudar. E assim agiram em duas frentes criando a “receita ilustrada” e substituindo medicamentos que precisavam ser diluídos por remédios manipulados, mantendo apenas um comprimido.
A receita adaptada foi baseada na original e tem o formato de uma tabela composta por fotos e figuras. Remédios são identificados por cores. A figura do sol mais ameno com nuvens significa a manhã, o sol intenso quase laranja- a tarde, o sol sumindo no horizonte é o entardecer e a lua é o símbolo da noite. Assim foram definidos os horários dos medicamentos. Já a dosagem correta exigiu um cuidado ainda maior, segundo a também psicóloga supervisora, Suélin Raatz Thiel.
“Colamos etiquetas coloridas nos frascos e conforme a cor de cada medicação, identificamos as seringas, um total de seis. Além disso, marcamos na seringa a quantidade de cada medicamento. Então na hora de dar o remédio a mãe associa a cor da etiqueta do frasco com a cor da etiqueta da seringa que já tem a marca da dosagem a ser administrada”, explica.
No dia da alta do hospital as psicólogas realizaram uma espécie de treinamento com a mãe de Gael para garantir que ela havia compreendido a “receita ilustrada”.
A família está sendo acompanhada pelos serviços de saúde do município, assim como pela Sesai e Fundação Nacional do Índio (Funai). Uma nova consulta no HUSFP/UCPel está marcada para junho, quando os resultados da “receita ilustrada” serão avaliados.
Mas os primeiros sinais de que a ideia simples, mas com uma boa dose de cuidado com o paciente, tem tudo para dar certo já foram notados na alta do hospital.
“Os pais demonstraram ficar gratos, confiantes , felizes e emocionados com a compreensão de que mesmo com dificuldades eles podem cuidar do seu filho”, revelou uma das psicólogas do HUSFP/UCPel.
Redação: Alessandra Senna