Nesta semana, no espaço deste nosso Convite à Reflexão, os subsídios oferecidos apresentam a dimensão política sobre o uso alarmante de agrotóxicos no Brasil e a relação com o agronegócio, bem como os interesses econômicos que permeiam esta discussão. O Brasil é campeão mundial de uso de agrotóxico, embora não seja o campeão mundial de produção agrícola. No mercado de “defensores agrícolas” estão grandes multinacionais, entre elas “Bayer, Basf, Syngenta e Monsanto”.
O primeiro é um artigo publicado por El País, em 30-04-2015, com Karen Friedrich, que faz parte da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), onde aborda o uso de agrotóxicos no país, que atinge 70% dos alimentos.
Disponibilizamos também uma entrevista, publicada no site do Instituto Humanitas Hunisinos, com Fernando Carneiro, que aborda o Dossiê Abrasco, livro com mais de 600 páginas que reúne uma série de informações sobre os riscos de agrotóxicos à saúde humana.
Em seguida, trazemos um artigo onde Pedro Luiz Serafim, procurador regional do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco, em entrevista ao Sul 21, aborda a crescente produção de agrotóxico no Brasil.
Por fim, oferecemos um texto que divulga a Feira Virtual Bem da Terra, vinculada ao Núcleo de Economia Solidária e Incubação de Cooperativas da Universidade Católica de Pelotas (NESIC/UCPel). Organização que busca incentivar o consumo de alimentos orgânicos.
Que a leitura e reflexão dos presentes textos nos ajudem a ampliar nosso horizonte de compreensão.
O “alarmante” uso de agrotóxicos no Brasil atinge 70% dos alimentos
Imagine tomar um galão de cinco litros de veneno a cada ano. É o que os brasileiros consomem de agrotóxico anualmente, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA). "Os dados sobre o consumo dessas substâncias no Brasil são alarmantes", disse Karen Friedrich, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A reportagem é de Marina Rossi, publicada pelo jornal El País, 30-04-2015.
Desde 2008, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial desse setor cresceu 93%, no Brasil, esse crescimento foi de 190%, de acordo com dados divulgados pela Anvisa.
Segundo o Dossiê Abrasco - um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde, publicado nesta terça-feira no Rio de Janeiro, 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos. Desses, segundo aAnvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas. "Isso sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos geneticamente modificados e cheios dessas substâncias químicas", diz Friederich.
De acordo com ela, mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil hoje são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos. Segundo aOrganização Mundial da Saúde (OMS), entre os países em desenvolvimento, os agrotóxicos causam, anualmente, 70.000 intoxicações agudas e crônicas.
O uso dessas substâncias está altamente associado à incidência de doenças como o câncer e outras genéticas. Por causa da gravidade do problema, na semana passada, o Ministério Público Federal enviou um documento à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendando que seja concluída com urgência a reavaliação toxicológica de uma substância chamada glifosato e que a agência determine o banimento desse herbicida no mercado nacional.
Essa mesma substância acaba de ser associada ao surgimento de câncer, segundo um estudo publicado em março deste ano pela Organização Mundial da Saúde (OMS) juntamente com o Inca e a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC). Ao mesmo tempo, o glifosato foi o ingrediente mais vendido em 2013 segundo os dados mais recentes do Ibama.
Em resposta ao pedido do Ministério Público, a Anvisa diz que em 2008 já havia determinado a reavaliação do uso do glifosato e outras substâncias, impulsionada pelas pesquisas que as associam à incidência de doenças na população. Em nota, a Agência diz que naquele ano firmou um contrato com a Fiocruz para elaborar as notas técnicas para cada um dos ingredientes - 14, no total. A partir dessas notas, foi estabelecida uma ordem de análise dos ingredientes "de acordo com os indícios de toxicidade apontados pela Fiocruz e conforme a capacidade técnica da Agência".
Enquanto isso, essas substâncias são vendidas e usadas livremente no Brasil. O 24D, por exemplo, é um dos ingredientes do chamado 'agente laranja', que foi pulverizado pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, e que deixou sequelas em uma geração de crianças que, ainda hoje, nascem deformadas, sem braços e pernas. Essa substância tem seu uso permitido no Brasil e está sendo reavaliada pela Anvisa desde 2006. Ou seja, faz quase dez anos que ela está em análise inconclusa.
O que a Justiça pede é que os ingredientes que estejam sendo revistos tenham o seu uso e comércio suspensos até que os estudos sejam concluídos. Mas, embora comprovadamente perigosos, existe uma barreira forte que protege a suspensão do uso dessas substâncias no Brasil. "O apelo econômico no Brasil é muito grande", diz Friedrich. "Há uma pressão muito forte da bancada ruralista e da indústria do agrotóxico também". Fontes no Ministério Público disseram que, ainda que a Justiça determine a suspensão desses ingredientes, eles só saem de circulação depois que os fabricantes esgotam os estoques.
O consumo de alimentos orgânicos, que não levam nenhum tipo de agrotóxico em seu cultivo, é uma alternativa para se proteger dos agrotóxicos. Porém, ela ainda é pouco acessível à maioria da população. Em média 30% mais caros, esses alimentos não estão disponíveis em todos os lugares.
O produtor Rodrigo Valdetaro Bittencourt explica que o maior obstáculo para o cultivo desses alimentos livres de agrotóxicos é encontrar mão de obra. "Não é preciso nenhum maquinário ou acessórios caros, mas é preciso ter gente para mexer na terra", diz. Ele cultiva verduras e legumes em seu sítio em Juquitiba, na Grande São Paulo, com o irmão e a mãe. Segundo ele, vale a pena gastar um pouco mais para comprar esses alimentos, principalmente pelos ganhos em saúde. "O que você gasta a mais com os orgânicos, você vai economizar na farmácia em remédios", diz.
Para ele, porém, a popularização desses alimentos e a acessibilidade ainda levarão uns 20 anos de briga para se equiparar aos produtos produzidos hoje com agrotóxico.
Bittencourt vende seus alimentos ao lado de outras três barracas no Largo da Batata, zona oeste da cidade, às quartas-feiras. Para participar desse tipo de feira, é preciso se inscrever junto à Prefeitura e apresentar todas as documentações necessárias que comprovem a origem do produto.
Segundo Bittencourt, há uma fiscalização, que esporadicamente aparece nas feiras para se certificar que os produtos de fato são orgânicos.
No mês passado, o prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) sancionou uma lei que obriga o uso de produtos orgânicos ou de base agroecológica nas merendas das escolas municipais. A nova norma, porém, não tem prazo para ser implementada e nem determina o percentual que esses alimentos devem obedecer.
Segundo um levantamento da Anvisa, o pimentão é a hortaliça mais contaminada por agrotóxicos (segundo a Agência, 92% pimentões estudados estavam contaminados), seguido do morango (63%), pepino (57%), alface (54%), cenoura (49%), abacaxi (32%), beterraba (32%) e mamão (30%). Há diversos estudos que apontam que alguma substâncias estão presentes, inclusive, no leite materno.
No ano passado, a pesquisadora norte-americana Stephanie Seneff, do MIT, apresentou um estudo anunciando mais um dado alarmante: "Até 2025, uma a cada duas crianças nascerá autista", disse ela, que fez uma correlação entre o Roundup, o herbicida da Monsanto feito a base do glifosato, e o estímulo do surgimento de casos de autismo. O glifosato, além de ser usado como herbicida no Brasil, também é uma das substâncias oficialmente usadas pelo governo norte-americano no Plano Colômbia, que há 15 anos destina-se a combater as plantações de coca e maconha na Colômbia.
Em nota, a Anvisa afirmou que aguarda a publicação oficial do estudo realizado pela OMS, Inca e IARC para "determinar a ordem prioritária de análise dos agrotóxicos que demandarem a reavaliação".
Os alimentos mais contaminados pelos agrotóxicos
Em 2010, o mercado brasileiro de agrotóxicos movimentou 7,3 bilhões de dólares e representou 19% do mercado global. Soja, milho, algodão e cana-de-açúcar representam 80% do total de vendas nesse setor.
Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), essa é a lista da agricultura que mais consome agrotóxicos:
Soja (40%)
Milho (15%)
Cana-de-açúcar e algodão (10% cada)
Cítricos (7%)
Café, trigo e arroz (3 cada%)
Feijão (2%)
Batata (1%)
Tomate (1%)
Maçã (0,5%)
Banana (0,2%)
As demais culturas consumiram 3,3% do total de 852,8 milhões de litros de agrotóxicos pulverizados nas lavouras brasileiras em 2011.
Dossiê Abrasco: o grito contra o silêncio opressivo do agronegócio. Entrevista especial com Fernando Carneiro
“A ciência deveria servir a quem, ao mercado ou a população brasileira?”, afirma o pesquisador.
A Associação de Saúde Coletiva – Abrasco lançou no dia 28-04-2015, no Rio de Janeiro, a versão atualizada do Dossiê Abrasco, livro com mais de 600 páginas que reúne uma série de informações sobre os riscos dos agrotóxicos à saúde humana.
A nova edição conta com o capítulo A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia.
“As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Outra novidade é que fizemos uma grande parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia - ANA e com a Associação Brasileira de Agroecologia - ABA nessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes”, explica Fernando Carneiro, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
Ao analisar a atual conjuntura brasileira, o professor é duro nas críticas a retrocessos importantes como, por exemplo, a retirada da indicação dos produtos transgênicos nos rótulos. “Nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira”, critica. Além disso, alerta que o paradigma do agronegócio é suicida. “O paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza”, avalia.
O resultado de um contexto político onde existe um parlamento conservador e a chefe da pasta da Agricultura sendo uma das representantes do agronegócio no Brasil é o que Fernando chama de silêncio opressivo do Estado. “Muitos dos pesquisadores que representam a Associação Brasileira de Ciência - ABC e aSBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência está para quem, para o mercado ou para a população brasileira?”, pondera. “Isso é o que ocorre e daí a importância do debate acontecer, porque ele grita frente ao silencio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós”, complementa.
Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde –— área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e do NESP UnB. Atualmente também coordena oGT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas (OBTEIA).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as novidades do dossiê da Abrasco em relação aos relatórios anteriores?
Fernando Carneiro - As grandes novidades estão ligadas a dois pontos: à forma e ao conteúdo. Lançamos um livro que parte de toda uma concepção da ciência, principalmente de uma ciência que quer dialogar com a sociedade, como um alicerce de sua função social. Então, o livro passou por um processo de diagramação, de organização das ideias, de inovações na facilitação gráfica, onde se pode visualizar melhor. Tudo isso para ser uma publicação boa de ler, de interagir; para que as pessoas encontrem o que buscam com mais facilidade, cada capítulo, cada parte tem uma cor e um símbolo diferente, tudo com o objetivo de criar novos recursos gráficos para facilitar processos de compreensão e uso. Essa é a primeira novidade em termos da forma.
A outra novidade é que fizemos uma grande parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia – ANA e com a Associação Brasileira de Agroecologia - ABAnessa perspectiva de dialogar com outros conhecimentos e saberes. Na quarta parte, focada na crise do paradigma do agronegócio e das alternativas, nós colocamos uma questão que, por exemplo, a Abrasco não tem total expertise, que é aagroecologia. Nós somos uma associação científica do campo da saúde coletiva em articulação com outros campos do saber, como o da própria questão agrícola, questão ecológica, questão da ecologia política, etc. A quarta parte também atualiza o que aconteceu de 2012 até 2014.
Bancada ruralista
Infelizmente, apesar de ter novidades boas, as principais novidades não são boas. Houve uma piora do quadro político, houve uma maior hegemonia da bancada ruralista, que conseguiu vitórias importantes, como a alteração no código florestal, com o objetivo de maximizar lucros em detrimento da preservação ambiental, uma coisa que vai na contramão de tudo que acontece hoje no mundo. Quando o Brasilestá vivendo a crise da água, a relação com a preservação das florestas é direta e nós acabamos de aprovar uma lei que perdoa esses empreendedores do agronegócio, que, inclusive, não cumpriram a lei florestal brasileira, a qual garante que eles explorem mais áreas antes preservadas.
Essa foi uma grande perda, e o setor, que sempre teve o domínio do Ministério da Agricultura, tem a Kátia Abreu à frente, ela que é um ícone desse setor, uma pessoa que sempre trabalhou pela flexibilização do registro e maximização do uso de agrotóxicos no Brasil.
Sabemos que no Congresso aumentou a bancada ruralista e a onda conservadora. Agora, com a Kátia junto ao Executivo, temos grande preocupação por conta dos compromissos dela de garantir que tais setores sejam beneficiados. Isso se estende a propostas de desregulamentação total, tirando o papel da Anvisa, do Ministério do Meio Ambiente, concentrando na pasta da Agricultura, que é uma espécie de“Comissão Técnica Nacional do Agronegócio - CTNAgro”, aos moldes daComissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio. É um tema que ganha cada dia mais espaço no governo.
Por outro lado, houve o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia, o Plano Nacional de Redução de Agrotóxico e essas foram as luzes no fim do túnel, onde, na quarta parte do relatório, exploramos a possibilidade de que isso seja hegemônico e que não fique sem recursos e sem apoio.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a aprovação do projeto de lei que autoriza a retirada do T, de transgênicos, dos rótulos?
Fernando Carneiro – Para nós, como cientistas preocupados com a saúde da população e críticos com relação à tecnologia, não a percebendo com algo “sagrado” cujos prós e contras devem ser avaliados — sabemos que há ideologias por trás dos transgênicos —, recebemos esta notícia como uma grande derrota. Isso porque nega-se um princípio básico, que é o direito à informação. Por que se quer negar esse direito? Se não há o que temer, por que negar que as pessoas saibam o que estão comendo? Isso é uma violência que o Congresso Nacional está fazendo contra a população brasileira.
IHU On-Line - Como são abordadas as contradições entre os perigos causados pelos agrotóxicos e a política do agronegócio no Brasil neste capítulo inédito do dossiê?
Fernando Carneiro – As três primeiras partes do dossiê colocam de forma muito detalhada os principais produtos que têm sido utilizados no Brasil e os danos que eles causam. O que se coloca no quarto capítulo é uma discussão de paradigma. Ou seja, o paradigma do agronegócio não sustenta um projeto de agricultura para o futuro do Brasil. Não é sustentável nos tornarmos um grande exportador de commodities, exportando água, solo, muitas vezes exportando vidas humanas e a nossa natureza. Esse modelo precisa de insumos externos o tempo todo (se sobe o dólar já tem gente batendo na porta do governo pedindo mais subsídios), porque boa parte do que se gasta com agrotóxicos é de princípios ativos que são importados à base de moeda estrangeira, sem contar na alta do custo da produção. Estamos falando de um modelo que, apesar de todo o discurso moderno e dinâmico, vive às custas do Estado brasileiro.
Contraposição
A contraposição que é colocada no capítulo da agroecologia apresenta um outro paradigma que respeita os conhecimentos tradicionais, a preservação à vida, um projeto soberano de país em que nossas sementes estejam sob a nossa guarda, não sob a tutela de multinacionais que só pensam no lucro. Neste capítulo, caracterizamos para onde estamos indo e para onde deveríamos ir na perspectiva de uma sociedade mais justa e sustentável.
IHU On-Line - Quais são as próximas etapas da pesquisa?
Fernando Carneiro – Fizemos, no final da última semana, uma reunião com a equipe de trabalho e a perspectiva é, neste momento, organizarmos o lançamento do dossiê cujo foco é trabalhar na divulgação, debater com a sociedade e lançar em todo o país. Esse é nosso compromisso antes de nos arvorarmos em uma quinta etapa. Não há qualquer tipo de direito autoral, está tudo disponibilizado na Internet e tentamos cumprir o papel social da ciência.
Porém o que devemos fazer nas próximas etapas é trabalhar dois eixos: osagrotóxicos urbanos, desde a nossa casa até as campanhas de saúde pública, e aguerra química que foi travada desde os tempos da ditadura até a atualidade contra populações vulnerabilizadas; ou seja, o uso de agrotóxicos contra populações indígenas, sem terras ou grupos que estejam incomodando grandes empreendimentos. Há registros disso e o trabalho da Comissão da Verdade e da Reforma Sanitária está investigando casos onde isso aconteceu. Em princípio, são dois desdobramentos em que trabalharemos.
IHU On-Line - O país ainda se mantém na posição de maior consumidor de agrotóxico do mundo? Quais são as dificuldades de sair dessa posição?
Fernando Carneiro – A dificuldade é que não se tem um plano político de implantar o Plano Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Até mesmo do ponto de vista capitalista seria mais inteligente não utilizar agrotóxico, pois a redução maximizaria o lucro. Mas o que acontece é que a grande dificuldade do desenvolvimento do uso tecnológico dos transgênicos é de estar voltado para “casar” semente com agrotóxico. Há toda uma cadeia de lucro que depende desse modelo de monocultura, que faz emergir, inclusive, o uso da palavra “praga”, em que uma espécie vegetal é cultivada em um ambiente artificial, favorecendo a proliferação de uma ou outra espécie de insetos que acabam dando o nome de “praga”. Mas isso é uma característica do agronegócio e a manutenção desses grandes sistemas artificiais vai exigir sempre o uso de muito agrotóxico e “tratamentos” com agroquímicos de toda a ordem, pois não há sustentabilidade. Esse preço está no DNA do agronegócio, que talvez possa diminuir, racionalizando um pouco com técnicas que deem margem para isso, mas há um limite. É por isso que defendemos a transição agroecológica.
Não se trata de acabar, do dia para a noite, com o uso de agrotóxicos no Brasil, mas conceber um plano que envolverá investimentos da Embrapa, que, ao invés de aportar 90% no agronegócio, deveria aplicar a metade; de fortalecer pesquisas agroecológicas que garantam produtividade e qualidade dos alimentos; de problematizar a formação de engenheiros agrônomos majoritariamente voltada para que eles se tornem, na prática, preceptores de veneno, ao invés de se tornarem profissionais que olhem para a saúde dos ecossistemas, não ficando focados somente na destruição da praga. É toda uma mudança que passa pela formação universitária, pelo investimento em pesquisa, pela valorização de cadeias de produção agroecológica, que até pouco tempo atrás não podia produzir sem veneno.
Na ditadura essa aliança atingiu o nível máximo, tanto que os generais ocuparam cargos de diretoria nestas empresas. Houve, à época, um acordo tal que só se podia conseguir o crédito caso houvesse a garantia da compra do veneno. Existe muito compromisso do Estado com toda essa prática, e o Estado brasileiro é muito grande para apoiar o agronegócio, mas muito pequeno para apoiar a agroecologia. Nosso grande desafio é começar essa transição em nome de nossa sobrevivência e das futuras gerações.
IHU On-Line - Nesse contexto, como o senhor avalia o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica? Como ele tem sido uma alternativa ao uso de agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Ele é uma grande esperança e uma grande aposta dos movimentos sociais, então deveria ser priorizado politicamente pelo Estado. O dossiê dá toda a base científica e política para que isso seja adotado pelo governo como sua prioridade.
IHU On-Line - O livro está sendo lançado no mês em que a “Campanha Nacional Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida” completa quatro anos de luta. Como o senhor avalia a trajetória dessa iniciativa? Quais são os desafios a enfrentar?
Fernando Carneiro – É importante dizer que esse livro, ao longo do processo, envolveu a própria campanha, quando percebemos que havia outros conhecimentos com relação à luta contra os agrotóxicos que deveriam ser envolvidos; não se tratava tão somente do conhecimento científico. Em um determinado momento, que foi ao final da parte três —A Ecologia dos Saberes —, nós envolvemos a campanha também como autora do dossiê, o que continua nesta quarta etapa. O dossiê vai ajudar muito a potencializar as ações da campanha, porque foi construído com esse objetivo, pois pode subsidiar cartilhas para serem trabalhadas com a população. Já recebemos três convites de lançamento do dossiê das Assembleias Legislativas dos Estados da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Ceará, e isso potencializará muito a campanha.
IHU On-Line - Como poderiam ser formuladas campanhas efetivas direcionadas a consumidores e produtores sobre os riscos dos agrotóxicos?
Fernando Carneiro – O Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, que participou do lançamento do dossiê, tem um mapa de mais de 400 feiras agroecológicas, disponibilizado em um aplicativo que ajuda as pessoas a encontrarem feiras e, inclusive, cadastrar as que não estejam neste mapa. Esse é só um exemplo de estratégias da sociedade civil que têm colaborado para esta questão. É muito importante para o consumidor ter opção.
Relação direta
Se pensarmos somente nas grandes cadeias de supermercado, eles têm lidado com a questão da agricultura orgânica ou agroecológica como “Nicho de mercado”. Se vamos em uma dessas redes e compramos uma alface orgânica por R$ 5 ou R$ 6, rompemos com aquilo que defendemos na agroecologia, isto é, a alimentação saudável acessível à população brasileira. Não enxergamos estas redes como nicho de mercado; queremos acreditar que agroecologia seja algo acessível a todo brasileiro. A Abrasco recomenda que a população busque as feiras agroecológicas também, porque, se elimina o atravessador, temos uma relação direta com o produtor e isso fortalece movimento social de luta pela Reforma Agrária e por um país mais justo.
Após o lançamento do livro, na última semana de abril, houve um coquetel agroecológico com uma cooperativa de produtores camponeses, que serviram sucos naturais e também culinária a partir de elementos produzidos no dia a dia e sem agrotóxicos. Não passou Coca-Cola, não passou sucos artificiais, foram só produtos saudáveis. É por isso que devemos ser coerentes e continuar fiscalizando e, sobretudo, dar o exemplo.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos?
Fernando Carneiro – É muito incipiente. É um programa que ainda não foi oficializado pelo governo e é importante que se assuma isso formalmente. É preciso que o Estado destine recursos para este programa para que ele não seja somente uma carta de intenções, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Então é muito importante que o governo faça, pois não se trata de um programa com recursos definidos claramente. Havia uma expectativa de melhorar a vigilância da saúde com relação às populações no que diz respeito aos agrotóxicos, mas nenhum resultado disso vem sendo apresentado. O máximo que temos de informação é o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Vimos declarações da superintendência da Anvisa de que “os dados do PARA não são para se preocupar”, ou seja, a própria entidade tentando amenizar o que ela está mostrando com medo dos desdobramentos em relação ao agronegócio. O governo está com muito medo de encarar o agronegócio e fiscaliza-lo em termos de seu impacto na saúde e ambiente. Está na hora do governo criar mais coragem para defender a vida e a saúde.
IHU On-Line - Foram realizados novos estudos a respeito dos riscos do uso de agrotóxicos para a saúde? O que esses dados revelam? Quais são as principais doenças originadas da contaminação por agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Para além do que já foi exposto exaustivamente pelo dossiê, há duas grandes novidades, divulgadas muito recentemente, em abril. Uma delas é o glifosato, que a International Agency for Research on Cancer – Iarcclassificou como uma substância potencialmente cancerígena, inclusive com dados do Brasil, do Instituto Nacional do Câncer – Inca, e passou a classificá-lo como um provável carcinógeno humano. Isso é muito sério porque o glifosato é responsável pela venda de 40% dos agrotóxicos no Brasil e ele é o herbicida ligado à soja transgênica, uma das principais commodities exportada pelo Brasil. Isto é gravíssimo.
A outra questão é que na mesma reunião foi apresentado o Malathion, que é pulverizado com fumacê, em que se combate a dengue, mas pode gerar câncer segundo a IARC. Essas aplicações muitas vezes são feitas sem critério, com equipamentos descalibrados e resultam muito ineficientes. Está a epidemia de dengue que o Brasil vive novamente que reforça esses argumentos. Podemos imaginar essa aplicação em uma grande escala, com milhares de pessoas e os impactos que isso pode gerar caso, no futuro, seja comprovado que esse é um produto carcinogênico. Estamos falando de milhões de pessoas, o que torna tudo isso muito grave.
Ministério da Saúde
O próprio Ministério da Saúde tem se posicionado de uma forma muito reativa, realizando poucos diálogos com quem está querendo criticar esses modelos e que busca outras alternativas que respeitem mais os ecossistemas e a saúde da população. Há outras experiências exitosas no combate à dengue que não são focadas na solução química, mas, ao contrário, no investimento em saneamento ambiental, melhorias das condições de vida. Lembro-me quando o ministro Adib Jatene fez uma proposta de controle do Aedes, um dos maiores componentes era o programa de saneamento ambiental. O que aconteceu é que justamente foi cortado o recurso para o saneamento ambiental. No entanto, para a compra de veneno nunca faltou recurso. Não adianta enxugar gelo com relação à saúde da população brasileira.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Fernando Carneiro – Todo esse debate que estamos fazendo é totalmente contra-hegemônico na ciência brasileira. Mais de 90% dos pesquisadores ligados aos agrotóxicos e coisas do gênero estão voltados à maximização do seu uso, e pouca gente está estudando os impactos na saúde e no ambiente. Fizemos esse levantamento por meio da Plataforma Lattes do CNPq e disponibilizamos no Dossiê. Tanto que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e a Academia Brasileira de Ciência – ABC, em uma carta recente, fizeram uma defesa às tecnologias transgênicas que nós repudiamos da forma que tem sido usada na agricultura, por exemplo. A postura da ABC e SBPC, a meu ver, é anticientífica, porque coloca a tecnologia como algo sagrado e não abre margens ao contraditório. Eu pergunto: qual é o impacto na saúde do aumento do uso dessas tecnologias na agricultura brasileira? A SBPC e ABC tem tomado posicionamentos frente a imprensa e não há uma consulta ampla as Associações Científicas como aAbrasco e nem mesmo há abertura a questionamentos, nem mesmo para debater o princípio da precaução, o que é reforça o que tenho chamado de postura anticientífica.
O que está por trás disso? O que se pode adiantar, a partir das pesquisas que estão registradas no dossiê, é que há conflitos de interesses. Muitos dos pesquisadores que representam a ABC e a SBPC na CTNBio têm as pesquisas financiadas pelas empresas que se beneficiam do agronegócio, e sabemos todos que na CTNBio não há espaço para discutir conflitos de interesse, mas temos que discutir isso. A ciência deve servir a quem, ao mercado ou a população brasileira? Ou seja, o que o dossiê exibe é que “o Rei está nu” e descreve as relações entre entidades como aEmbrapa, que fazem testes de agrotóxicos, com os serviços privados que lucram com o agronegócio, ao mesmo tempo que se disponibiliza uma estrutura pública para isso. O resultado disso tudo é um totalitarismo em que o Mercado dita as normas, o Estado se ausenta e o Congresso dá carta branca. Isso é o que ocorre e daí a importância de o debate acontecer, porque ele grita frente ao silêncio opressivo dos interesses que os grandes grupos querem impor sobre nós.
Por Ricardo Machado e Leslie Chaves
“Hoje é legal contaminar alguém com agrotóxico no Brasil”, critica procurador
Em cerca de dez anos, a produção de agrotóxicos no Brasil cresceu entre 80 e 90% e o consumo aumentou aproximadamente 190%. Hoje é legal no Brasil e em outros países intoxicar ou contaminar alguém com agrotóxico, uma vez que a legislação admite um limite supostamente tolerável para o nosso organismo. A realidade é que as coisas não estão sendo ditas como deveriam. Agrotóxico é veneno e não há um uso seguro do mesmo. A avaliação do coordenador do Fórum Nacional de Combate ao uso abusivo de Agrotóxicos, Pedro Luiz Gonçalves Serafim da Silva, é uma advertência à toda sociedade e, em particular, ao Poder Judiciário e aos meios de comunicação, sobre a maneira que o tema vem sendo tratado no Brasil.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada pelo jornal Sul 21, 04-05-2015.
Em entrevista ao Sul21, o procurador regional do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco fala sobre a importância de os trabalhadores e a população em geral exercerem o seu direito à informação e exigirem transparência sobre o que está presente nos alimentos e na água que estão consumindo e nos produtos que estão manipulando em seus locais de trabalho. “De 2001 para cá, a mídia está mais aberta a esse tema, mas ainda há problemas. Os meios de comunicação não podem esconder que agrotóxico é veneno, não é defensivo agrícola nem remédio para as plantas como algumas pessoas ainda dizem. É veneno e não existe uso seguro. Deve dizer também que esse não é um problema só do campo, é da cidade, inclusive de quem trabalha na mídia”, diz Pedro Luiz Serafim.
Eis a entrevista.
Como procurador do Ministério Público do Trabalho e coordenador do Fórum Nacional de Combate ao Uso Abusivo de Agrotóxicos, qual sua visão sobre os problemas causados pelo emprego maciço destes produtos químicos no Brasil?
Há um reducionismo no debate sobre agrotóxicos que vem desde a chamadaRevolução Verde. Esse reducionismo afirma que o agrotóxico é seguro e seu impacto fica limitado ao campo. A verdade é outra. Não existe uso seguro deagrotóxico e seu impacto está longe de permanecer limitado ao campo. Os agrotóxicos hoje estão na nossa mesa. Então, esse problema diz respeito ao campo e à cidade e está presente na mesa de cada um de nós, tornando-se um tema diretamente ligado à nossa segurança alimentar. Além disso, há o problema da contaminação da água, o que só reforça a ideia de que se trata de um problema que diz respeito a vida de todo mundo hoje.
Além da questão da segurança alimentar, tem crescido também a preocupação com a segurança do trabalhador. O sistema de saúde está começando a preparar os médicos para que possam incluir no diagnóstico a abordagem de temas que, até bem pouco tempo, eram tratados sob a designação genérica de “virose”, e estabelecer o vínculo do problema de saúde com a atividade profissional que a pessoa desempenha.
Como nasceu o seu envolvimento com esse tema?
Em 2001, recebemos no Ministério Público, um relatório do Ministério do Trabalho e Emprego sobre uma situação que envolvia 104 empresas do Vale do São Francisco, 96% delas em situação irregular. A partir deste caso, nós pensamos na criação de algo que pudesse funcionar como órgão de controle social. Surgiu daí um fórum com representantes do Estado, da sociedade e do Ministério Público, no papel de fiscal da lei. Foi assim que surgiu em 2001 o Fórum Pernambucano de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, com a participação do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual. Este fórum passou a cobrar dos órgãos reguladores a fiscalização sobre o uso abusivo destas substâncias. Nós nos reuníamos uma vez por mês, recebendo denúncias e propondo alterações na legislação estadual, entre outras coisas. Essa iniciativa foi crescendo, avançou e fomentou a criação do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O fórum de Pernambuco teve um papel pioneiro então, estimulando outras iniciativas em nível nacional?
Sim. Com o PARA, em 2001, o governo federal criou inicialmente um programa piloto envolvendo quatro capitais. Esse programa se firmou, foi crescendo e acabou sendo transformado em uma política nacional. Depois do fórum de Pernambuco, foram surgindo outras iniciativas similares em outros estados. Já havia um trabalho sobre esse tema sendo realizando no Paraná. Em 2009, surgiu então o Fórum Nacional Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos, com a participação de entidades da sociedade civil, organizações dos trabalhadores como a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), dos ministérios da Saúde, do Trabalho, da Agricultura, do Meio Ambiente, com suas respectivas agências, e também dos ministérios públicos federal, estadual e do trabalho.
O fórum nacional definiu três eixos de atuação. Em primeiro lugar, promover o direito à informação sobre temas relacionados aos agrotóxicos, à saúde do trabalhador e à saúde da população de um modo geral. A saúde do trabalhador participa de todo o processo de manipulação de agrotóxicos, incluindo aí, a fabricação, o transporte, o comércio, a aplicação e o descarte das embalagens e recipientes. Essa dimensão do uso destes produtos ficou escondida durante muito tempo. Além disso, há também as questões da saúde do consumidor e do meio ambiente. O segundo eixo é fomentar a criação de outros fóruns e grupos de trabalho pelo país. Já foram criados fóruns no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro, na Bahia, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Acre e Sergipe.
O terceiro eixo, por fim, tem a ver com o tema da tutela mesmo, com ações na esfera administrativa, investigações, inspeções e ações judiciais. Esse trabalho vem crescendo. O Ministério Público Federal já ingressou com ações para reavaliação do uso aqui no Brasil de agrotóxicos banidos em outros países. No Maranhão, há uma ação na Justiça Federal para averiguar a responsabilidade das agências e órgãos do Estado que não atuaram para fiscalizar o uso de glifosato. Outro desdobramento importante dessas ações foi a incorporação do tema na agenda do Conselho Nacional do Ministério Público, que incluiu uma diretriz em seu planejamento estratégico propondo a articulação desse debate no âmbito dos ministérios públicos e com a sociedade.
Há representantes do Poder Judiciário participando desses fóruns e debates. Aqui no Rio Grande do Sul tivemos recentemente uma decisão do Tribunal de Justiça liberando o uso de agrotóxicos que tem o paraquat como produto básico e cujo está proibido na Comunidade Europeia. O Ministério Público recorreu dessa decisão. Como fica essa relação entre os MPs e o Judiciário em torno do tema “agrotóxicos”?
No Brasil e em outros países também, o Poder Judiciário é regido por alguns princípios, entre eles o da inércia de jurisdição. O juiz não toma a iniciativa da ação, ele fica esperando a chegada de alguma coisa que exige julgamento. Então, em tese, alguém pode dizer que o Judiciário não pode participar da discussão prévia de temas sobre os quais eventualmente vai julgar. Isso em tese. Os tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior do Trabalho, estão promovendo audiências públicas sobre temas importantes como direitos fundamentais, aborto, células-tronco, genoma, com o objetivo de ouvir a sociedade e subsidiar a tomada de decisões em julgamentos. É importante que o Judiciário escute a sociedade para colher informações e opiniões que podem auxiliar a sua tomada de decisões. Além disso, é bom lembrar que os agrotóxicos podem estar chegando à mesa dos juízes também.
Nós precisamos também aperfeiçoar a nossa legislação. A legislação brasileira admite limites para a presença no organismo de uma determinada substância utilizada na produção de agrotóxicos. Mas não há estudos científicos suficientes para avaliar o impacto desse limite tolerado e menos ainda para a possível sinergia entre diferentes substâncias químicas no nosso organismo. Hoje é legal no Brasil e em outros países intoxicar alguém com agrotóxico, pois se admite um limite supostamente tolerável. Em cerca de dez anos, a produção de agrotóxicos no Brasil cresceu entre 80 e 90% e o consumo aumentou aproximadamente 190%. Isso é algo para se pensar.
Aí entra o tema dos transgênicos também. Um dos elementos de propaganda do discurso em defesa do uso de transgênicos consistiu em dizer que eles diminuiriam a exigência de agrotóxicos em função de mudanças genéticas nas plantas. Mas ocorreu o inverso. Foram desenvolvidas sementes transgênicas resistentes a determinados tipos de agrotóxicos. Então, nas áreas onde essas sementes são cultivadas pode-se usar agrotóxicos para matar outras plantas sem afetar as primeiras. Além disso, essas sementes não geram novas sementes, o que exige que os agricultores comprem a cada safra novas sementes transgênicas, fechando um ciclo, onde uma mesma empresa fornece a semente e os agrotóxicos. O fato é que temos um paralelo entre o aumento do consumo de agrotóxicos e o aumento do plantio de transgênicos.
Considerando o período de existência do fórum nacional, de 2009 até hoje, na sua avaliação o problema do uso abusivo de agrotóxicos melhorou ou piorou no Brasil?
A minha avaliação é que esse problema se tornou mais evidente, ganhando mais espaço na mídia. A economia do agronegócio cresceu muito, mas também cresceram determinadas enfermidades dos trabalhadores e dos cidadãos em geral. O aumento do número de casos de determinados tipos de câncer é um exemplo disso. Merece destaque a criação da campanha nacional contra os agrotóxicos e em defesa da vida, uma verdadeira infantaria da sociedade civil que vem estimulando um debate em todo o país. Há os dois filmes de Silvio Tendler, “O Veneno está mesa” I e II. Várias redes de televisão do Brasil e de outros países fizeram reportagens sobre o tema nos últimos anos. Entidades como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e OMS (Organização Mundial da Saúde) também vem chamando a atenção dos países sobre esse problema, principalmente daqueles que têm suas economias mais ligadas à agricultura.
Por outro lado, na medida em que aumentou a visibilidade desse tema, cresceu também a reposta dos setores interessados em manter essa triste realidade, propondo, por exemplo, alterações no atual sistema regulatório que é razoável. Existe uma pressão na Câmara dos Deputados e no Senado para flexibilizar o sistema regulatório. Já temos antecedentes para servir de alerta como o caso do paraquat aqui no Rio Grande do Sul. Não se reconheceu o alerta da área da Saúde sobre os riscos desse produto, o que representa uma quebra do sistema tripartite que o Brasil observa desde a Lei 7802/89, que estabelece que nenhum produto deve ser liberado para uso no país se um de três ministérios (Saúde, Agricultura e Meio Ambiente) se posicionar contrariamente à liberação.
Além desse sistema tripartite ter sido quebrado no Rio Grande do Sul, no caso do paraquat, uma norma recente dá ao Ministério da Agricultura a prerrogativa de decidir sozinho no caso de uma emergência fitossanitária. Isso aconteceu com o benzoato de emanectina, que é extremamente neurotóxico. Em 2007, o Ministério da Saúde recomendou que sua entrada no país não fosse permitida, mas ele acabou sendo liberado. Houve uma praga com uma lagarta na Bahia e, supostamente, só esse produto poderia acabar com ela. Inicialmente ele foi liberado por meio de uma portaria do Ministério da Agricultura. Uma iniciativa do Ministério Público conseguiu barrar essa liberação, mas posteriormente foi liberado graças a uma Medida Provisória que deu essa prerrogativa especial ao Ministério da Agricultura.
Mais recentemente já mudaram o formato da Anvisa no que diz respeito aos agrotóxicos e querem criar um instituto ou um modelo tipo CTNBio, uma CTNAgro, que concentraria as decisões sobre a liberação desses produtos. Isso é muito preocupante. E é preciso assinalar ainda que muitos dos agrotóxicos comercializados hoje no Brasil têm isenção tarifária, alíquota zero ou reduzida, não só de ICMS, mas também em relação a outros impostos. Hoje, pode acontecer que um trabalhador seja contaminado por agrotóxicos em alimentos ou na manipulação no trabalho de produtos que não pagam impostos e, depois, quando ele vai comprar remédio para enfrentar esse problema ele pagará imposto pelo medicamento. Esse procedimento não é razoável, chega a ser surreal. E, às vezes, a empresa que produz o veneno é a mesma empresa que produz também o remédio, como é o caso da Bayer, para citar um exemplo. O Judiciário deveria considerar esses fatos na hora de tomar suas decisões.
Quais as prioridades do Fórum Nacional de Combate ao Uso Abusivo de Agrotóxicos para o ano de 2015?
Nós estamos sugerindo que seja fortalecida a ação local nos Estados e municípios, conclamando a sociedade. Os trabalhadores, as donas de casa, os movimentos sociais e sindicatos, todo mundo tem que participar deste debate pois ele diz respeito diretamente à saúde de todos. Só a partir dessa mobilização se terá força para enfrentar os poderosos interesses econômicos dessa indústria. A decisão sobre o consumo é uma da cidadania nesta luta. Se o pimentão ou o morango são apontados como reis do agrotóxico, cabe ao cidadão dizer “não compro esse morango nem esse pimentão”. Ele deve exercer o seu direito à informação e exigir que se diga o que há no produto que está comprando e também qual é a procedência.
Qual sua avaliação sobre o modo como os meios de comunicação vêm tratando desse tema?
Acho que, de 2001 para cá, a mídia está mais aberta a esse tema, mas não há dúvida de que ainda existem algumas interferências. A tarefa da mídia, aqui, deveria ser dizer a verdade e trazer alguns exemplos de fora sobre como essa questão vem sendo tratada na União Europeia, por exemplo, que vem adotando normas cada vez mais restritivas e rigorosas em relação ao uso de agrotóxicos. A mídia não pode esconder que agrotóxico é veneno, não é defensivo agrícola nem remédio para as plantas como algumas pessoas ainda dizem. É veneno e não existe uso seguro. Deve dizer também que esse não é um problema só do campo, é da cidade, inclusive de quem trabalha na mídia. A mídia ainda não diz tudo, mas alguns setores dela têm avançado neste tema.