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Convite à Reflexão - Aniversário de Pelotas
07.07.2016 | 16:53 | #capelania-e-identidade-crista
Convite à Reflexão - Aniversário de Pelotas
No mês de julho é celebrado o aniversário da cidade de Pelotas. Mas qual Pelotas? A da Freguesia ou a do Padroeiro?

Situada na região sul do Rio Grande do Sul, a cidade ganhou grande prestígio social e econômico através da produção do charque, uma atividade econômica realizada pela exploração da mão-de-obra escravizada de afrodescendentes no território brasileiro.

Conforme o historiador Caiuá AL-Alam, “o grande destaque adquirido pelos grupos sociais dominantes — uma aristocracia proprietária de charqueadas e escravos — leva a cidade a ser vista como a Princesa do Sul, devido sua vida cultural sofisticada e por sua intensa relação com a Europa".

A Capelania oferece para a semana uma reflexão sobre outras Pelotas que coexistem, ou que são invisibilizadas. Oferecemos uma entrevista realizada com o pesquisador e escritor Adão F. Monquelat, que apresenta outras narrativas a cerca da construção da cidade. A entrevista baseia-se em dois livros de Monquelat: "Desfazendo Mitos - Notas À História do Continente de São Pedro", de 2012, e Pelotas dos Excluídos – Subsídios Para Uma História do Cotidiano”, 2014. 

Desejamos uma boa leitura e reflexão. 

Pelotas está de aniversário nesta semana. Qual Pelotas? A da Freguesia ou a do Padroeiro? 
São duas coisas diferentes. Primeiro, eu trabalho com a ideia de que Pelotas gerou várias Pelotas, então tem uma Pelotas, vamos dizer assim, “pré-histórica” que vem até a criação da freguesia, ali começa um processo de urbanização, e tem uma outra Pelotas, dentre as várias, que é a “Pelotas dos Excluídos”.  


Adão Monquelat é pesquisador e apaixonado por livros. Poderias abordar um pouco da tua trajetória e como surge teu interesse pela história de Pelotas?
Me considerado um pesquisador e não um historiador para não estar em exercício ilegal da profissão, se não o pessoal poderia me cobrar, principalmente o pessoal da academia, como eu sou Telles (brincadeira referente às escolas de samba do município). 
Quando eu me dediquei a conhecer a história da cidade, percebi que ela tinha uma série de pontos que eu questionei. O fato de estar registrado para mim não significa que seja verdade. Pode ter uma outra forma de ver essa mesma coisa. Acho que a verdade tem três faces: a minha, a tua e a verdadeira, que pode ser a minha, a tua ou nenhuma delas inclusive, ou pode ser uma fusão das duas. Então, comecei a ler e aprendi a paleografar, sou um autodidata em paleografia. Andei nos arquivos de Montevidéu, comprei muita documentação digitalizada, pesquisei os arquivos de Minas Gerias, São Paulo e Rio. Foi um conjunto de coisas que foram se formando e isso fez com que eu começasse a repensar a história da cidade. Comecei a procurar onde estava a origem dessas lendas ou desses mitos. Sou apaixonado por desfazer mitos. Daí começo a ver o seguinte, a primeira história sobre a cidade é religiosa, do Viera Pimenta, pertencente à entidade do Santíssimo Sacramento, vinculada à Igreja Católica. Ele faz uma narrativa religiosa, ele não tem a preocupação de um cronista do seu cotidiano e ela nunca foi impressa. Então, passei a conhecer o que o Simões Lopes Neto entendeu de interessante na descrição do Vieira Pimenta. Aproximadamente em 1905 o Simões Lopes, que é nosso escritor maior sem nenhuma dúvida, mas que é um péssimo historiador, tudo o que ele disse serve para conferir e perceber que ele se enganou, mas não por má intenção, por falta de documentação, de recursos. Ele fez com grande mérito a revista do primeiro centenário, visando o centenário em 1912. 
Há um grande consenso que Pelotas nasce por causa de uma charqueada, isso não é verdade e está documentado. O Simões falava (e na época ele não sabia) que o Pinto Martins não era cearense e sim português e que ele é o terceiro de quarto irmãos. O Pinto Martins chega ao Brasil por volta de 1780 e tem a preocupação de se tornar um familiar do Santo Ofício (informante da Igreja) para denunciar certas práticas não religiosas, de origem de feitiçaria ou de ritos judaicos, e isso ajudava a ascensão econômica e social de alguém se tivesse esse certificado. O Pinto Martins, entre 1780 e 1787, fica envolvido nesse processo para saber se ele poderia ou não ser um “familiar”. Duas coisas eram importantes para que isso fosse concedido: que ele não tivesse sangue judeu nem negro e uma série de coisas. Tinha que ter um certa “pureza”. O primeiro de quatro irmãos casou-se com a cunhada de um charqueador em Aracati (CE). Depois vem o segundo e estabelece uma série de atividades como charqueiro. Já com certo status econômico, eles fazem vir os dois últimos irmãos, o “nosso” José e o Antônio, os dois que acabam em Pelotas (bem depois). Os dois últimos da via marítima, entre os trechos Mossoró, Aracati e Recife. Em Mossoró eles buscavam sal, descarregavam em Aracati, na charqueada dos irmãos, carregavam para Recife e lá eles trocavam esse charque ou vendiam por outras mercadorias porque também eram atacadistas. Isso acontece entre 1880 e 1887, sendo que em 1887 ocorreu uma tragédia na charqueada, quando um escravo enciumado pensava que sua mulher estava tendo um caso com o patrão e resolve matá-lo, o Pinto Martins interfere e leva uma facada e vem a morrer em consequência desse ferimento. Neste ano, morreram os dois irmãos mais velhos e as viúvas, não querendo permanecer com os negócios, resolvem vender tudo e fazem com que o José e o Antônio P. Martins tenham que estabelecer outro negócio. Aí possivelmente eles tenham vindo para o Rio Grande já sabendo da produção de charque aqui com o intuito de levar, pois viviam embarcados (essa é uma hipótese). Se sabe que primeiramente eles teriam que estar em Rio Grande porque era um centro onde os charqueadores pelotenses e de outras regiões levavam o material para despacharem. Ainda se tem o José Pinto Martins como fundador da cidade, mas a cidade não é fundada por uma única pessoa, é necessário vários contextos para que ela nasça. Eu digo que Pelotas é uma invenção do charque e da escravidão, não fosse isso ela seria uma cidade como outra qualquer dentro da província. 

Que Pelotas é essa invisibilizada, principalmente os negros, desde o tempo das charqueadas e que ainda hoje estão marginalizados?  
Uma dessas datas, extensão menor que uma sesmaria, pertencia a Mariana Eufrades da Silveira, que é onde estamos. A potígua era de um charqueador que vendeu ao Capitão Antônio dos Anjos. Daí nasce a freguesia, a Igreja. Nasce o primeiro aforamento. Ele comprou a área de um charqueador, á área que depois ele faz uma doação generosa para a Igreja Católica. Com isso se começa a estabelecer os fregueses da Paróquia, da Igreja e é aí que se dá a confusão. O distrito era Pelotas. Foi necessário realizar um processo pois a maioria dos foreiros não queria mais pagar o aforamento. A criação da freguesia se da em 31 de janeiro de 1812 através de um alvará assinado pelo príncipe Dom João. O 07 de julho é a data da Igreja, do padroeiro. Alguns datavam distrito ou freguesia de Pelotas; outros próximos a Igreja  datavam São Francisco de Paula. Acabou prevalecendo São Francisco de Paula. A cidade tem duas certidões de nascimento uma do civil e uma do religioso que até hoje é comemorado. 

Monquelat primeiramente abordavas a questão da desconstrução do mito. Poderias apresentar o processo da chegada dos descendentes de africanos em Pelotas?
O negro chega em Pelotas já no período colonial. Nas fazendas e estâncias, com exceção das datas, havia escravos. Tudo era produzido por mão de obra escrava. Talvez possamos pensar o seguinte: a vinda do escravo, em tempo de castigo tenha sido mais amena nesse passado. Mas a medida que a urbe começa a aumentar, é também maior o fluxo de venda do charque como produto. Tem início um outro processo de feitura e uma mão de obra maior pois a demanda começa a crescer. A produção em larga escala no Rio Grande do Sul começa com João Cardoso da Silva, soldado que estabelece uma estância nas ruínas do forte de São Gonçalo e a suas dispensas ele trás de Portugal um técnico da salga, protegido pelo governador da época. Inicia-se o processo de charqueação para outras instâncias que vão sendo estabelecidas. Foi em Arroio Grande que nasceu a produção de charque. Há um buraco na história, porque não há produção. Há um outro grupo de charqueadores que são os mais conhecidos. Mas isso é mais tarde. Com o término da revolta, porque não chamo de revolução, acontece a retomada da produção do charque. Tem um outro fator que é a cólera que chega a Pelotas e dizimou principalmente os negros por causa das condições precárias das senzalas, principalmente devido a umidade e sujeira. Nesse período morreram escravos e a parte mais empobrecida da cidade. 
Na década de 1860 Pelotas era uma cidade extremamente pacata, quebrada pelos tropeiros que chegavam. Aí começa realmente a ser construída a cidade que nós herdamos que é a Pelotas dos excluídos, porque no final dessa década surgem quatro empreendimentos: a Companhia Hidráulica Pelotense, a segunda a desobstrução da foz do São Gonçalo, terceiro a Ferro Carril de Pelotas e por último a criação da Biblioteca Pública, já na década de 70. O estabelecimento da companhia hidráulica privatiza a água na cidade e os chafarizes que embelezam hoje a cidade, na época eram motivo de espoliação, porque não era permitido retirar água se não fosse pago. Tudo era vendido. Começa um desenvolvimento e um outro problema: a chegada na navalha via porto trazida por imigrantes portugueses e se soma a outros instrumentos de violência. Começa então a gestação de várias Pelotas. Uma delas oriunda da região da Serra dos Tapes e São Lourenço, que é Pelotas do colono que e o traço é a produção do seu trabalho, da agricultura para o abastecimento da cidade. A outra é a Pelotas da barbárie, dos castigos… que é a Pelotas das Charqueadas, uma outra acontece via fronteira que é a dos tropeiros e os oriundos do mar. Há uma confluência, um conjunto de “tipos sociais” que começam a habitar, a se desenvolver, a expandir principalmente a violência. Começa a partir daí os meus personagens, que é essa gente toda a constar nas colunas policiais que são os excluídos. Existe um comércio nas tavernas e tascas porque eram uma espécie de motel. Elas eram uma espécie e iscas para os tropeiros que gastavam dinheiro também devido ao álcool e ao jogo. Depois há uma proibição das mulheres exercerem esse tipo de atividade e ocorre uma descentralização da prostituição, e com isso um aumento da violência. Principalmente uma única quadra denominada “encrencópolis, a canaã das facadas” que era a rua Vinte e Quatro de Outubro que depois foi nomeada como Tiradentes.  

Em 2014 escrevestes o livro “Pelotas dos Excluídos (subsídios para uma história do cotidiano)”, publicado pela Editora Livraria Mundial, o que abordas nesse livro? 
No livro Pelotas dos Excluídos trago presente os negros como também os pobres e migrantes da época. 
Apresento as ocorrências publicadas pela imprensa. Eu não mexo no texto, apenas acomodo a linguagem de hoje, mas não descaracterizo. Não gosto de nada pronto e não entrego nada pronto para que o leitor possa fazer as deduções. No Pelotas dos Excluídos a introdução é o meu pensamento sobre a cidade, mas depois entrego as ocorrências. 

No contexto  de exclusão da Pelotas aristocrática daquela época podemos citar o marginalizado como o imigrante, colono, os descendentes de africanos, sobretudo o pobre. A narrativa presente neste livro contribuiu com elementos para (re)pensar a história de Pelotas. Atualmente, consegues observar quem são os “excluídos” no município? Como enxergas Pelotas hoje? 
No período colonial uma elite começa a se estabelecer, uma aristocracia que através do poder econômico  descentraliza e afasta essas pessoas. O cortiço é um espaço muito importante e considerado insalubre. Conforme estes lugares são comprados, essas pessoas ficam cada vez mais distanciadas do centro e são os excluídos da história que vieram com uma expectativa e não foram tão bem sucedidos.  Em uma sociedade basicamente de charqueadas, que estavam nas mãos dos “pataqueiros da aristocracia do sebo” a possibilidade é muito menor. Outros são atraídos pela riqueza que aqui circulava. Pelotas sempre foi uma mini-corte onde o modelo era o Rio de Janeiro.
Os excluídos da Pelotas hoje estão na periferia e aparecem em grandes eventos, por exemplo, se tu andas pelo centro da cidade você encontra pouquíssimos negros em relação a proporção que eles existem, mas se acontecer um evento como o carnaval aí começas a ver uma Pelotas que não se conhece. A Pelotas da periferia… eles continuam sendo empurrados para mais distante, pois quanto menor as condições de vida eles tiverem é melhor para o núcleo urbano. Pelotas foi construída em cima de muito sangue, de muita injustiça social que permanece. 
Sempre houve muita discriminação e há uma prepotência estabelecida por uma história aristocrática e oficial. 
Houve um tempo em que se conviveu com a condição de civilização e barbárie, e a segunda era a ponto dos negros confessarem crime que não tinham cometido para terem um momento de sossego na cadeia, sob pena de serem condenados, devido ao tipo de trabalho e castigos exercidos na charqueada. 

Como pesquisador abordas que “se teve durante muito tempo uma história repetida e oficial, e uma linha de seguidores subservientes a essa narrativa aristocrática”. O que pensas sobre isso?
Penso o seguinte: a construção de algo em mais de um século não pode ser desfeita por alguém que aparentemente “chegou ontem” na história. Existe uma construção dessa história desde 1912 através do Simões Lopes que estabelece de certa maneira essas coisas que nunca foram investigadas a ponto de serem desfeitas. 
Quando faço essa crítica em relação a apologia a elite, dos casarios por exemplo, Pergunto: - Alguém tem registro daquelas casas, casebres  no entorno das fábricas que tinham em Pelotas? Me lembro de ver algumas construções onde a parede externa eram latas de óleo  abertas. Há uma preocupação em preservar a memória de apenas uma parte da sociedade e isso é muito complicado. Uma cidade conviveu, convive e conviverá com diversos seguimentos, mas para entendê-la é preciso olhar o todo, se não seremos sempre parciais   

Como pesquisador da história de Pelotas quais alternativas enxergas para superar essas desigualdades? O que tem sido feito e o que ainda pode ser pode ser realizado para contribuir com  a transformação dessa realidade? 
Esse é um momento complicado porque vivemos uma crise com alto índice de desemprego e isso é muito perigoso. O que vejo é que Pelotas continua tratando do núcleo urbano, cada vez mais urbano. Todos esses projetos de maior impacto são para favorecer a elite. Se não se priorizar investimentos “periféricos” nós vamos continuar tendo um cinturão de miséria. É preciso que se pare e comece a projetar obras realmente sociais na cidade. Pelotas precisa parar de pensar só no miolo. Ela esta grande e cada vez mais é aumentado seu cinturão de miséria. Isso é muito preocupante e gera injustiças. Há todo um apelo midiático para o consumo e se não se tem dinheiro se dá um jeito para conseguir aquilo que se quer. 

Gostarias de acrescentar mais alguma coisa?  
Eu estou trazendo a história das pensões e dos cabarés até a década de 20 em um livro que terá seu primeiro volume lançado em agosto “A Princesa do Vício e do Pecado” onde abordo a questão do jogo e da prostituição em Pelotas.   Espero ainda terminar um projeto que dei início onde primeiramente gostaria de relatar uma história de Curitiba até Pelotas, mas me dei conta que não teria tempo suficiente, então comecei a fazer alguns cortes e a partir daí nasceu o “Desbravamento do Sul e a Ocupação Castelhana” depois “Pelotas no tempos dos Chafarizes”. Nesse segundo, percebi que poderia construir uma Pelotas como eu concebo e precisar quando  essa “Pelotas gestada por outras Pelotas” começa a acontecer. As praças, por exemplo, eram um espaço de muitos acontecimentos, inclusive de elitização. Cito um acontecimento em seguida do 13 de maio de 1888, um negro bem vestido, conforme a construção do jornalista da época, senta em um dos jardins da praça (ela era toda arrendada pois tinha que dar lucro para a administração), pede uma cerveja e é corrido. Inclusive chama-se a polícia. Ele achou que era realmente livre e que tinha o direito de sentar ali como um cidadão e ter o prazer de tomar uma cerveja. Não pôde. (...)
A documentação sobre as praças cresceu muito, logo o trabalho terá dois volumes. Depois, pretendo trabalhar as “feiticeiras da princesa”  onde tratarei a questão do feitiço, ou seja, como ele era visto no século XIX. Na verdade o que era considerado feitiço era a religião de matriz africana, que a imprensa entendia como feitiço e a polícia reprimia, apreendia o material e jogava no São Gonçalo. Esse último é o livro que mais destinarei tempo porque terei que aprender muito sobre as religiões de matriz africana para não cometer atrocidades. Entendo que as feiticeiras do passado são os pai e mães de santo hoje. 

Por que se deter na história de Pelotas? Em uma história em que abordas diferentes fatos através do “Desfazendo Mitos” e “Pelotas dos Excluídos”. Por que “pegar com as mãos” essa outra história? 
Uma cidade é construída por uma comunidade e não por uma elite ou por um único grupo. Eu não sou “bem nascido” como costumam dizer. Sou filho de imigrantes italianos e portugueses. Entendo que a história de uma comunidade precisa ser contada, até para que o não “bem nascido” ou o anônimo tenham um estímulo para pensar que seus antepassados foram realmente importantes, embora eles não estejam no registro e na história oficial. Mas sem eles essa Pelotas não existiria. 

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