Já estava com o meu artigo semanal praticamente elaborado, quando hoje (quinta-feira, 16 de setembro) deparei-me com o trecho do Evangelho que a Igreja oferece para a Liturgia Eucarística da Memória hodierna dos mártires São Cornélio (viveu de 211 a 253 e foi Pontífice) e São Cipriano (viveu de 210 a 258 e foi Bispo). Deixei-me intrigar pela cena descrita no trecho do Evangelho e o resultado dessa cena intrigante é a minha reflexão que ora partilho nesse artigo. (Uso o significado de intrigante como adjetivo – “que desperta curiosidade”, “que surpreende”, “que faz querer entender...”).
A cena inicia com um fariseu que convida Jesus para uma refeição em sua casa. Jesus entra na casa do fariseu e põe-se à mesa. Já começa intrigante o convite desse fariseu a Jesus para uma refeição e ele aceitando o convite, marcando presença e colocando-se à mesa. Como é possível um convite de um fariseu a Jesus e como é possível a aceitação da parte de Jesus ao convite? Como podem sentar-se junto à mesa um fariseu e Jesus, uma vez que os fariseus não aceitavam a ele e ele tantas vezes os criticando fortemente pela sua hipocrisia?
A cena cresce intrigantemente quando certa mulher, conhecida na cidade como pecadora, sabendo que Jesus estava à mesa na casa do fariseu, porta um alabastro de perfume e entra na casa, fica por detrás de Jesus e provocando uma “cena” deveras intrigante: chora aos pés de Jesus, com as lágrimas começa a banhá-los, enxuga-os com os cabelos, cobre-os de beijos e os unge com o perfume. Como é possível uma mulher pecadora invadir uma refeição familiar, intrometendo-se na intimidade da refeição? Como explicar seus atos tão estranhos para o momento e ambiente: Entrar na casa, postar-se por detrás do convidado, chorar aos seus pés, enxugá-los com os cabelos e ungi-los com o perfume que tinha levado consigo? Tudo da mulher não estava fora do lugar e da hora?
A surpresa toma conta do fariseu, quando ele vê o espetáculo proporcionado pela mulher e com razão fica pensando: “Se este homem fosse profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é pecadora”. Como é possível esses dois extremos se encontrarem: o profeta, “o certo e puro” e a mulher, “o errado e impuro”, e isso em sua casa como anfitrião?
Jesus, com afã de explicar algo deste espetáculo, conta a parábola dos dois devedores de um credor: um foi perdoado pela dívida de quinhentas moedas de prata e outro pela dívida de cinquenta. E Jesus, então, lança a pergunta intrigante: “Qual dos dois devedores amará mais o credor?” Diante da resposta do fariseu: “Acho que é aquele ao qual perdoou mais”, Jesus deixa o seu comentário: “Tu julgaste corretamente!” Não é intrigante esse comentário de Jesus? Como é possível julgar corretamente e não agir corretamente?
Foi então que Jesus, na casa do fariseu sentado à mesa com ele, simplesmente (aparentemente mal agradecido pelo convite e responsável por permitir o espetáculo feito pela mulher) ainda “critica” o fariseu. Tudo o que a mulher fez, ele não fez: nada de água para lavar os pés, nada do beijo de saudação e nada de óleo derramado na cabeça. E conclui categoricamente: “Os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados porque ela mostrou muito amor. Aquele a quem se perdoa pouco mostra pouco amor”. Como é possível Jesus ser tão transparente e honesto a tal ponto de colocar o fariseu anfitrião em “maus lençóis”? Arranca dele a verdade do amor e do perdão e a verdade do perdão e do amor, e isso, com uma crítica a uma certa hipocrisia do próprio anfitrião: “Julgas corretamente, mas não ages corretamente”.
A cena acima é deveras intrigante. Não pretendo tirar o seu caráter intrigante. Ao contrário, deixo-a intrigar a minha vida e missão. Por que também não ousar pedir aos leitores de se deixarem envolver no “intrigante” desta cena?
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas