Entramos de cheio na pós-modernidade (momento emblemático dessa entrada é a pós-pandemia) sendo desafiados a avaliar o gigantesco projeto da modernidade extremizada: o de construir um "mundo sem Deus". Certo, essa foi e é a tentação permanente do gênero humano, desde o hadam e a hayyah bíblicos, que pretenderam ser "como deuses", isto é, se realizarem fora de Deus e contra Deus (cf. Gn 3,5). Só que, nesse ponto, a modernidade mostrou duas diferenças: primeira, o ser "como Deus" já não era para ela "tentação do proibido comer da árvore", mas, ao contrário: era um projeto entusiástico e mesmo imperativo deliberado; segunda, esse projeto ideal não tinha apenas uma dimensão individual, mas societária: é toda a civilização que buscava se organizar sem Deus.
Esse projeto se materializou, em parte, na construção, durante o século XX e início do XXI, das sociedades mais de cunho "comum laicista" de um lado, como de cunho "liberal laicista" do outro lado. Mas o que significou esse projeto, urdido pela modernidade laicista, de criar um "mundo sem Deus"? Foi um ideal totalitário, absolutamente inédito na história. Pois até então, todas as civilizações haviam sido centralmente ou, pelo menos, fundamentalmente religiosas. A que a modernidade criaria seria finalmente uma sociedade secularista, ou seja, ateia. Esse sonho, antes nunca sonhado, encontrou em Nietzsche seu maior profeta, enquanto conferiu um pathos épico extremamente poderoso e ao mesmo tempo jubiloso. Efetivamente, para aquele poeta-filósofo, “o que o mundo possuíra que até então de mais sagrado e de mais potente” fora morto. Esse assassinato único constituía “a maior ação” cometida pelos homens, o “evento mais fundamental” e ao mesmo tempo a “boa-nova mais alvissareira” de toda a história, pois teria eliminado do horizonte do mundo o maior entrave à vida e ao indivíduo, proporcionando, assim, o advento do Super-homem, o homem enfim autossuperado.
Nesse ideal radical concebido pela modernidade, o homem moderno autoconsagrado tornou-se criador de um "mundo novo". A pretensão era redimir a própria "condição humana" e construir um novo modo de existência, agora totalmente horizontal. Ora, isso só podia ser fruto do antropocentrismo onipotente da modernidade, que alguns chamaram de "metafísica da subjetividade", outros de " eu constituinte ", outros, ainda, de "vontade de potência", e os demais, de hybris, velha tentação, conhecida e condenada tanto pelos gregos como pela Sagrada Escritura Revelada. Segundo o pensador Clodovis Boff, para “esses utopistas messiânicos, a realidade não passava de matéria plástica, moldável segundo a razão demiúrgica e a liberdade palingenética dos auto designados ‘engenheiros da história’".
Eis o projeto supramente ambicioso, maquinado pela razão moderna e potencialmente efetuado. Foi um projeto realmente monstro, mas também monstruoso. A razão moderna, que pretendia libertar o homem de todas as ilusões e preconceitos, caiu paradoxalmente na máxima impostura em relação à máxima realidade: Deus. Passou a defini-lo como totalmente o contrário do que sempre foi: ilusão, e não verdade; alienação, e não libertação. Declarou o Existente por definição, como inexistente; o Ser necessário, como impossível de existir; a Verdade suprema, como suprema mentira; o Criador, como o inimigo da vida; o Amor primeiro, como ódio ao homem e à natureza. E imaginou: quanto mais Deus, menos sentido, e quanto menos Deus, mais sentido. Quando, por acaso, na história a razão foi mais irracional, insensata e demencial? Quando a violentia rationis foi mais insolente?
A fonte real de um sonho tão ardente e poderoso só podia ter sido uma força igualmente ardente poderosa: a "paixão pelo mundo". O mundo, para o mainstream moderno, com todos os seus "valores", foi considerado a dignidade máxima, tornando-se, assim, o grande ídolo em nome do qual tudo podia ser sacrificado. Em verdade, só uma paixão absoluta podia intentar a destruição de fé no Absoluto e produzir a violência maciça que o século XX e início do século XXI testemunharam. O resultado final desse projeto gigantesco e monstruoso, caso fosse levado a termo, teria sido o niilismo de massa e fine finaliter, sua autoaniquilação, resultado esse fatídico e paradoxal, felizmente hipotético. No fundo, tratou-se de uma investida sem precedentes do “Anticristo” e de seus “satélites”, freada em tempo por "Aquele que detém todas as forças” (cf. 2Ts 2,6-7).
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.