Acompanha a entrevista uma breve mas sempre densa reflexão de Paul Ricoeur (1913-2005), um dos autores que mais inspiram e instigam ao prof. Osmar. O filósofo francês da Hermenêutica permanece como um dos mais fecundos pensadores contemporâneos. A partir da sua experiência humana e cristã estabelece um profundo e salutar diálogo com as mais diversas correntes de pensamento (Estudos da Linguagem, Mitologia, Estruturalismo, Semiótica, Teologia, Bíblia, Psicanálise, etc).
Estamos dentro de uma Universidade e cremos que os textos que apresentamos hoje retratam aquela lucidez que deve caracterizar o mundo acadêmico e de que tanto este necessita. Bebamos da fonte e sigamos colaborando também nós para que essa água jorre.
Entrevista com o prof. Osmar Schaefer, do Instituto Superior de Filosofia da UCPel
(03 de dezembro de 2014)
1) Caro prof. Osmar, após esses longos anos de experiência, que fatos o senhor considera mais relevantes em sua trajetória biográfica e que, num olhar retrospectivo, mais iluminam a sua experiência existencial? Ou, em outras palavras, que valores o senhor acredita que podem nortear o “bem viver” humano?
Em primeiro lugar agradeço a oportunidade de estar aqui e ter o privilégio de estar conversando, trocando ideias e poder fazer trocas sobre a construção de uma identidade docente. A pergunta evidentemente é abrangente e difícil, porque temos dificuldade, muitas vezes, de contar a nossa própria história. Na primeira aula de antropologia, costumava propor uma questão (que nem se deve formular, mas eu o fazia): faça uma carta de autoapresentação dizendo quem você é. Olhando para minha história, eu partiria da frase de um filósofo, o espanhol José Ortega y Gasset: “eu sou eu e minha circunstância”, e se eu não cuido da minha circunstância eu não cuido de mim e não encontro a mim mesmo.
Quando se trata de autobiografia, nós contamos a história da circunstância do mundo, da vida, enfim, de todos os circundantes, do outro, da alteridade que faz a nossa história. Nesse sentido, faz parte da minha circunstância a minha família de origem, que é uma família de imigrantes europeus germânicos de segunda geração. E o que marca, um fator interessante, é a valorização da comunidade. Nós vivíamos no interior de Santa Cruz do Sul e as comunidades cristãs, tanto católica quanto luterana, elas se estruturaram numa vida bastante comunitária, tanto do ponto de vista da produção agrícola de autosubsistência quanto da educação, da religião, da discussão dos problemas do cotidiano e da organização do grupo e da sociedade.
Minha formação está ligada, desde o início, a essa valorização do espírito comunitário. Começando na família e se estendendo para uma escola comunitária de confissão cristã católica. Do outro lado da praça, também havia a escola de formação cristã luterana, igualmente comunitária. Esses são fatos decisivos, que - olhando para trás - acompanharam todo o itinerário posterior de formação em escolas comunitárias. Primeiramente, as escolas católicas; depois a formação universitária no Brasil e a formação universitária de pós-graduação fora do Brasil. Interessante ainda foram os movimentos comunitários da época pós Segunda Guerra Mundial, aqui no Brasil. Nos anos 1950 vivi minha infância e início da adolescência e, na década de 1960, a minha juventude, com os movimentos fortes daquela época, como a organização estudantil: a Juventude Estudantil Católica (JEC) e a organização universitária, a JUC [Juventude Universitária Católica]. Também dentro dessa circunstância, além da marca familiar e das escolas, há pessoas que me marcaram profundamente.
Uma pessoa que me marcou muito se chama Florentina Wagner. Ela foi minha alfabetizadora e era uma pessoa da comunidade. A gente ia para a escola de manhã, de tarde ajudava na lavoura comunitariamente; e ela era uma pessoa muito presente nesse sentido da ajuda mútua. Posteriormente, uma pessoa que marcou profundamente a minha formação é o falecido bispo Dom Ivo Lorscheiter, que foi meu formador já no ensino secundário e posteriormente na faculdade em Viamão/RS, início da Filosofia. E ele marcou muito pela sua postura de pessoa humana (amigo, preocupado com a formação; exigência, disciplina no sentido de organização) e, ao mesmo tempo, era uma pessoa que depositava confiança e fazia com que a gente aprendesse duas lições que julgo fundamentais na educação. A primeira é dedicar-se à educação com alma e coração abertos. E, de outro lado, aprender a fazer as coisas pelo prazer de vê-las bem feitas. Ele marcou muito também pelas atitudes corajosas de engajamento, tanto cristão quanto político, porque nós cursávamos a faculdade em 1964 e ele era nosso diretor e teve posicionamentos extremamente importantes que nos marcaram em termos de verdade e de justiça.
Outra pessoa que na formação me marcou bastante aqui no Brasil e me abriu a cabeça para o estudo da Filosofia foi o estimado professor Ernildo Stein, que ainda trabalha na PUCRS. Na época ele era um jovem professor de 30 anos de idade, e sempre dizia que antes dos 30 anos a gente não faz nada de bom em Filosofia. Também um padre belga, Albert Dondeyne, professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Lovaina, pelo seu grande espírito de abertura e de preocupação antropológica de fazer a Filosofia falar e vibrar a partir do ser humano, com e para o ser humano. Outro que marcou pela sua solidez e pela sua generosidade e humildade é o Jean Ladrière, também professor belga. E, de forma ainda mais definitiva, marcou (para minha formatação filosófica) um filósofo bem conhecido, que é Paul Ricoeur.
2) E em relação à sua experiência acadêmica, como docente (particularmente na UCPel) que marcos o senhor identifica como mais significativos?
Um marco que realmente julgo o mais significativo é que toda minha atividade docente esteve voltada para o ensino. O ensino dentro e fora da sala de aula. Nosso campo de pesquisa se relacionava com o ensino e, quando nós íamos para o campo da extensão, era também algo voltado para o ensino. O que eu quero dizer com isso é que o ensino não é um fim em si mesmo. Ele está voltado eminentemente para a aprendizagem. A aprendizagem não é, em primeiro lugar, uma aquisição de conteúdos, mas eminentemente é fazer com que o conteúdo fale para sujeitos humanos. Essa é a marca mais distintiva que carrego há quase cinco décadas de docência: fazer com que, no ensino, na pesquisa e na extensão, fale efetivamente o sujeito que aprende. Esta marca foi decisiva. Poderia citar inúmeras experiências... Vou selecionar algumas. Por exemplo, aqui na UCPel em 1973, eu era alguém sem experiência de docência universitária (tinha apenas alguma experiência de ensino para adultos e do antigo Ginásio). A UCPel promoveu um curso didático-pedagógico para professores. No curso se aprendia a lidar com o aluno na sala de aula, como funciona aprendizagem, desde a entrada em sala de aula. Naquela época a única tecnologia era o quadro e o giz, só essa tecnologia muito rudimentar. Vimos como elaborar planos de ensino, provas, objetivos.
Na nossa coirmã, a Universidade Federal de Pelotas, tomei parte de uma reunião semanal dos professores. Havia espaço para discutir, avaliar como nós professores estávamos trabalhando individualmente e em conjunto, visando objetivos comuns de transformação. Essa é outra experiência muito importante de um crescimento de grupo realizado por professores. Percebo, olhando retrospectivamente esse tempo de docência, que o professor é alguém que não é professor, ele se torna professor. Tem aí uma terceira marca distintiva importante que é a constante atualização: nunca ir para a sala de aula sem uma preparação próxima, prévia. Além disso, julgo bastante importante para o ensino universitário, que sejamos uma pessoa engajada em algum trabalho de comunidade, gente que olha para fora das paredes da sala de aula, para a rua, a cidade, a sociedade. Sem esse engajamento, nós nos restringimos a fazer aquilo que o grande filósofo alemão Edmund Husserl chamava de um mero ensino técnico. Ele até usou uma imagem muito forte, que é a de proceder como um burro com viseiras, que só enxerga aquela trilhazinha que as viseiras permitem. Daí vem outro marco, que julgo decisivo, e que é o fato de ir construindo junto com os colegas professores o processo de sala de aula. A universidade não é um mero trabalho de formação técnica, mas ela proporciona a ocasião de se pensar o mundo a partir daquela particularidade da disciplina em questão. Trata-se de trabalhar a disciplina, mas para inseri-la no mundo e se entender melhor o mundo, pensá-lo e transformá-lo. Isso me parece que é uma marca quase em extinção na nossa sociedade hoje, porque o professor é tão solicitado em elaborar currículo Lattes que ele perde essa noção da sua missão de fazer da sala de aula um lugar onde se gesta algo e no qual se pensa o mundo, tendo em vista a transformação constante. O que me marca muito é essa preocupação de transformação que não é um mero fazer técnico, mas é realmente o lugar onde se discutem os valores, a sociedade concreta, a partir daquela competência técnica de determinada disciplina. Isso vale para a Engenharia, para a Saúde, para a Psicologia, a Comunicação, e assim por diante. Não apenas se trata de aprender apenas a operacionalizar, mas a situar a operacionalização dentro do mundo, da sociedade.
3) O que implicou, em sua vida, ser professor em tempos de ditadura? E que lições o contexto daqueles anos de chumbo no Brasil pode oferecer para a geração de hoje?
Na realidade a sua pergunta está focada nas implicações de ser professor, mas no período da ditadura eu também fui estudante. Comecei a Universidade em 1962, e em 1964 nós tínhamos saído do Curso de Extensão Universitária e Jean-Yves Calvez, que é um grande especialista em Marx, nos deu um curso fantástico sobre Marx e o marxismo naquela época. E nós pagamos caro, porque fomos imediatamente visitados pelos agentes da ditadura e eles simplesmente confiscaram, rasgaram os diplomas em 1964. Comecei a lecionar aqui na Universidade Católica em 1973, vindo diretamente da Bélgica, e nós já trabalhávamos lá acolhendo pessoas feridas e banidas por causa da ditadura. Nós tínhamos informação de quais eram os livros proibidos de trazer ao Brasil, e a gente os trazia geralmente com a capa falsificada para ter acesso a alguma literatura que aqui no Brasil não se podia usar. Chegando aqui, fui muito bem acolhido pela Universidade e fui imediatamente prevenido pelas autoridades universitárias da UCPel que havia espiões nas sala dos professores, nos corredores da Universidade, e também espiões em todas as salas de aula, e que havia um vocabulário que absolutamente não poderia ser usado, e que nomes de pensadores importantes podiam ser sequer citados, entre outros ex-professores meus aqui do Brasil, como Ernani Maria Fiori, Paulo Freire, nem falar num Marx... Desenvolvíamos aulas de filosofia com o objetivo de ajudar a refletir, a fazer pensar, muitas vezes sem poder citar devidamente as fontes, como manda a retidão e a honestidade científica. Tínhamos grupos articulados, comunicávamo-nos por senha. Sabíamos o que podia falar em um determinado grupo, o que não podia falar com outros grupos. Na sala de aula era um exercício de purificação da linguagem, porque você tinha que inibir muitas vezes a espontaneidade, não podia usar as palavras liberdade, libertação. Revolução era simplesmente uma palavra abominável e absolutamente de alto risco. Então nos organizávamos na clandestinidade. O interessante é que os alunos liam muito, algo que hoje não se faz mais. Lia-se mais Marx, Filosofia da Libertação. Tudo se lia e se discutia.
Esse movimento depois eclodiu com bastante força a partir de 1979, quando começou a pré-abertura. Mas era um clima que não é desejável e olhando hoje se entende o valor de uma sociedade democrática. Olhando a sociedade brasileira como um todo, vemos como ela ainda paga muitos tributos dessa fase violenta da nossa História. Defendo com unhas e dentes: democracia sempre! Mesmo uma democracia cambaleante, mas sempre democracia. E nós temos muito a aprender. A democracia não é algo que se conquista de uma vez por todas e sobre a qual a gente repousa. A democracia é a construção de vínculos, de elos, onde as pessoas aprendem a tomar decisões em conjunto, fazer e trocar experiências significativas em conjunto...
4) O senhor poderia sintetizar os traços mais marcantes do itinerário do seu pensar filosófico?
Essa é uma questão praticamente impossível. Diz-se que em certa doze de mentira pode repousar a voz da verdade. Então vou chegar quase aos pés da minha verdade, mas sempre correndo o risco de que isso não é tão fácil assim. Em termos de Filosofia tenho uma formação inicial clássica de filosofia cristã, tomismo. É até muita pretensão isso, mas na minha juventude, na transição para a Universidade, no que hoje se denomina o Ensino Médio, que então era o Clássico, tive leituras interessantes que me marcaram... “Encontros”, por exemplo, é um livro maravilhoso de um autor holandês que era colega da Raïssa Maritain, esposa de Jacques Maritain. Esse livrinho se encontra em português (há um exemplar na biblioteca do seminário, na [rua] Dom Joaquim). Jacques Maritain, na época, era uma pessoa considerada muito arejada.
Aqui no Brasil a marca distintiva, que me acompanhou bastante, foi Ernani Maria Fiori, colega de Paulo Freire e que trabalhou muito com ele. Foi professor da URGS, em Viamão. Também ele foi cassado. Então são marcas da filosofia clássica e tive ocasião de estudar Aristóteles e Santo Tomás com certa profundidade. Muito cedo, em 1964, o prof. Ernildo Stein me iniciou no estudo da filosofia contemporânea, Existencialismo e Fenomenologia. Isso me marcou muito. Assim, bastante jovem, às vezes sem entender muito, comecei a estudar Heidegger. Depois tive ocasião de estudar mais pormenorizadamente a Fenomenologia, sistematicamente Husserl, Heidegger, Merleau Ponty, Sartre e, finalmente (talvez o pensador que mais me marcou e inclusive chegou a ser meu professor), o filosofo contemporâneo Paul Ricoeur. Assim se delineou a minha marca filosófica, mais especificamente, a partir da Fenomenologia e do Existencialismo. E Ricoeur então me encaminhou para o estudo da Antropologia Filosófica como uma temática fundamental da Filosofia. Então o que mais marcou, que eu percebo hoje, é essa preocupação com o ser humano, pois a Hermenêutica de Ricoeur está voltada para o ser humano. Nesse sentido penso que é interessante e fecunda a posição dele, porque já dá um passo para além da Fenomenologia. Para Ricoeur nós precisamos elaborar uma filosofia da ação. O que ele entende por filosofia da ação? É uma filosofia que não seja fundamentalmente só de conhecimento de conteúdos, que coloca uma lente e nos livra do apagão intelectual, mas é uma Filosofia que trabalha conteúdos, que ilumina, mas sempre nos mostra o sujeito a quem se destina o conteúdo; o sujeito que elabora o conteúdo; o sujeito humano que está implicado na ação. De acordo com Ricoeur, a Filosofia é ética, é política, é engajamento. Mas nós não trabalhamos somente com conteúdos, nós sempre trabalhamos conteúdos que repercutem nas pessoas, nos sujeitos. Isso seria a filosofia da ação, essa preocupação com o engajamento. Nesse sentido pode-se aplicar a Ricoeur essa expressão (que me parece que vem de Heidegger), que diz que nós não podemos deixar a última palavra às coisas. A última palavra sempre deve visar o sujeito. Parece-me que esta questão é decisiva: elaborar uma linguagem do sujeito, não a linguagem das coisas.
Também tem uma questão curiosa, que estudei muito em Ricoeur, um tema que continuo estudando, que é a questão do perdão. Isso tem a ver com os anos de chumbo da ditadura militar e com outras questões, porque a gente na vida, se não é capaz de perdoar a gente se torna amargo. Então é uma questão humana central e Ricoeur trabalha essa questão do perdão de maneira antropológica com muita profundidade. Ele diz que o perdão é difícil, mas não impossível, exatamente como o amor. E o perdão para ele tem o sentido de possibilitar que a gente possa tirar as algemas de um ser humano que teve as mãos atadas, e permitir que ele novamente volte a agir. Ricoeur usa o termo ação e diz que os atos nunca são iguais ao sujeito que age; a ação nunca é igual ao sujeito, mas este excede a própria ação. Por isso ele diz que o perdão é possível e por isso a Filosofia deveria ser sempre uma filosofia da ação que, em última instância, recupera essa dimensão do sujeito humano, do ser humano. Por isso, voltando ao início da nossa entrevista, podemos recapitular um pouco o papel da docência, que não é despejar conteúdos, mas ajudar a formar pessoas humanas capazes de agir e de ajudar a desatar e tirar algemas, para tornar as pessoas capazes novamente de agir. É um pouco nesse sentido que vejo o meu itinerário, marcado pela Fenomenologia, que entende o ser humano essencialmente como um ser relacional e a Filosofia Hermenêutica que vê a Filosofia como a filosofia da ação, na qual o protagonista é o ser humano enquanto sujeito, e não apenas como consciência ou ser cognoscente.
5) Abordando essa dimensão relacional, que lugar tem ocupado, em sua reflexão, a pessoa humana, especificamente a questão do outro, e qual a relevância desse tema em nossa sociedade hoje?
Eu sempre digo que um dos objetivos da aula de Antropologia Filosófica é ajudar a tirar os preconceitos que cada pessoa sempre traz. Não que consigamos eliminar todos eles, mas uma grande parte sim. Se fazemos isso, já atingimos uma boa parte dos objetivos da sala de aula. O preconceito é o juízo de que o outro, o diferente, é sempre o mau e, portanto, o inferior. Nesse raciocínio e nessa postura sempre nos posicionamos do lado dos bons e dos melhores. E é aí que se coloca a questão antropológica decisiva. Antes de mais nada, nós nos irmanamos como seres humanos. O estrangeiro é uma casquinha, a pigmentação da pele é uma casquinha; não é relevante. A língua que nós falamos ela é acidental, o resultado da comunidade, da circunstância. Mas existe uma língua, uma cor, um falar e um ser em comum que nos irmanam. O outro sou eu mesmo, é meu corpo, minha história, é o homem, a mulher, a criança. Este outro é “eu e minha circunstância”. Ricoeur tem um livro, “O si mesmo como outro”, no qual ele diz que a única via de acesso que nós temos ao nosso próprio eu é passar pelo outro, pelo reconhecimento do outro. Do contrário não nos damos conta de nós mesmos, da construção da nossa identidade. A questão do outro se coloca de uma maneira bastante radical, o outro como sujeito. Na aula de antropologia muitas vezes encontro dificuldade ou resistência, porque o outro é sujeito como eu sou sujeito. Isto é, ele é um mundo, um microcosmos, exatamente como eu sou um mundo ou um microcosmos. O outro (e aqui encontro muitas vezes a resistência) o outro é um fim em si mesmo, ele não é objeto, ele não é coisa, não pode ser comprado nem vendido. Ele é fim em si mesmo. Aí a pessoa diz assim: “Mas Deus dá sinal. Não! Cada um é fim em si mesmo e se Deus existe (e provavelmente ele existe), cada um é capaz de trazer Deus no seu coração, na sua alma. Nesse sentido, a Filosofia cristã até pode ajudar, porque nós podemos, devemos não só considerar, mas agir de maneira que o outro possa ser fim em si mesmo. Essa é a questão: a alteridade. Se não olharmos o outro como fim em si mesmo, nós nunca vamos chegar ao outro, porque o jeito de entrar em contato com o outro é aprender a fazer trocas significativas, trocas humanas, sentimentos, valores que não se restringem às coisas. Nós temos muitas vezes dificuldade de ver o outro, porque vemos o outro na medida em que ele é ligado a coisas, a status, a bens, e assim por diante. Se ficarmos nisso, vamos ser professores e nunca educadores. Talvez um dos segredos da educação é aprender a fazer essa distinção. Parece-me que esta questão é decisiva e é um desafio que se coloca para as Universidades que têm a pretensão de se inserir na sociedade e agir tendo em vista a transformação da sociedade, colocando-a a serviço de um mundo humano e não apenas a serviço do mercado. Nesse sentido, a Universidade não tem sua finalidade na formação técnica, que é importante, mas ela tem a missão de resgatar essa outra dimensão. Só que nós vivemos em uma sociedade do deus mercado e estamos imersos no império da técnica. Isso levanta dificuldades para enfocar o ser humano como sujeito, para propor o reconhecimento do outro. Mas a Filosofia precisa enfrentar essa questão com coragem. Esta é uma utopia que eu cultivo e pela qual continuarei lutando, agora de uma outra maneira.
6) Desejaria acrescentar algo? O senhor está deixando a UCPel e assume outra perspectiva de missão...
Eu me sinto mais ou menos (não em idade, mas em experiência) numa situação parecida à da juventude. Há um momento na juventude que a gente deixa a casa materna e paterna; e esse momento é muito gostoso porque estamos cheios de sonhos, de expectativas, aquela utopia necessária que agente cultiva. E é muito importante essa saída de casa. Eu me sinto um pouco nesse sentido, porque o jovem que sai de casa vai fazer a sua vida com novos projetos, novas realizações, mas de outro lado ele leva junto dentro de si todo lar materno e paterno. Recebi um recado de alunos e disse para eles: olha, eu levo vocês todos juntos na minha retina. É a grande herança que o jovem também leva de casa, que são todos aqueles valores. Sinto-me levando dentro de mim a Universidade Católica, principalmente o curso de Filosofia e de Psicologia, mas a Universidade como um todo, muitos alunos, muitos funcionários e professores, que fazem parte dessa herança, que sou eu e minha circunstância.
E o jovem que sai, ele volta e meia retorna à casa para fazer visita e traz novidades para a casa. Tenho essa expectativa; já fiz essa experiência na UFPel uma vez, mas eu volto quase todos os meses para a Federal, desde que eu saí, e provavelmente aqui não será diferente.
Os meus projetos, eu até brinco às vezes com o meu Amigo lá de cima, que ele não precisa ter pressa comigo para me colocar na fila muito cedo, e até pode me esquecer um tempo por aqui. Tenho muito a agradecer porque saio em um momento muito feliz, de bem com a Universidade, com a vida. Então a gente tem que agradecer muito! Porque eu aprendi muitas lições.
Tenho alguns orientandos e coorientandos de pós-graduação que me mantêm ativo na troca com os acadêmicos. Há um projeto de um grupo de estudos de Filosofia sistemática na área da Fenomenologia, de Paul Ricoeur. Tenho projeto de escrever alguma coisa e também há o exercício bonito de cultivar mais a minha família, porque nunca tive muito tempo de incomodá-los. Além disso, desejo me dedicar a afazeres concretos: jardinagem, cultura de hortaliças e pomares, que também estão ligados a minha origem.
Todos os dias peço para o meu Amigo lá de cima não ter pressa comigo para eu ter tempo de ser grato por esses dons que recebi.
A lógica de Jesus (Rm 5)
(Paul Ricoeur)
[ publicado em Seleciones de Teología, 21 (1982, n. 82), p. 130-132; e, originalmente: La logique de Jésus (Rm 5); in: Études théologiques et religieuses, 55 (1980), p. 420-425 ] (1)
Gostaria de explicitar alguns aspectos da lógica de Jesus, introduzida duas vezes por Paulo no capítulo 5 da Carta aos Romanos com a expressão de indubitável força retórica: “com mais razão!”
Exponhamos, primeiro, a lógica humana e, em concreto, aplicada ao plano penal ou de castigo, sobre o qual Paulo insere também a lógica de Cristo. A novidade e a força desta última não ficarão adequadamente ressaltadas se antes não se estabelece o peso da lógica humana que Jesus e Paulo querem quebrar e superar. Com efeito, o ideal penal humano busca igualar o mais possível a pena à falta. A lógica humana tende, pois, a ser uma lógica de igualdade e equivalência. Mas a de Deus, de Jesus e de Paulo é, ao contrário, uma lógica de superabundância (Rm 5,20).
É preciso haver compreendido, no entanto, algumas coisas antes de poder abordar diretamente o denso e rico texto de Paulo.
Algo dessa lógica divina se vislumbra na narração do dilúvio, tal como o autor bíblico reescreveu o antigo mito babilônico. O relato se estrutura como um mito de castigo (Gn 6, 5-7) no qual só a morte, outro crime, pode apagar a ofensa criminosa contra a divindade, de forma que o texto aceita e quase diviniza a lógica da equivalência. Porém, quase de transluz e sob a forma ingênua de um arrependimento e de um desdizer-se de Deus (Gn 8, 21-22), o mito do dilúvio se transforma em parábola da ressurreição humana desde o abismo das águas, e nos introduz numa outra lógica (a da superabundância), que se prolongará na voz dos Profetas e dos Salmos.
Essa lógica da abundância é exposta com maior clareza nas parábolas de Jesus. Fixemo-nos em Mt 5, 39b-42. À lei do talião (olho por olho, dente por dente), Jesus opõe sua atitude. Sublinhemos que os etnólogos nos ensinam que essa lei (que por sua barbárie, fere a sensibilidade atual) representa o primeiro freio à vingança ilimitada; o intento de igualar a pena à magnitude do crime. Mas por mais civilizado que isso seja, mantém-se dentro da velha lógica da equivalência. E é precisamente essa lógica que Jesus inverte. E o faz, surpreendentemente, dando por quatro vezes um mandato extremado. Detenhamo-nos um momento na inusitada retórica dessa passagem. Jesus não formula, como os moralistas, uma norma geral. Ele parte de uma situação particular, estranha e quase improvável, e a faz estalar no que qualificaríamos de resposta excessiva. É um caso extravagante dar uma bofetada num adulto ou até mesmo numa criança. Admitamos, no entanto, o fato. E o que resulta mais inaudito é dizer que há que oferecer a outra face, com o que isso pode significar de entrega do mais débil ao arbítrio do poderoso. O segundo mandato exige que o pobre, a quem pedem em juízo o manto, que entregue também a capa e aceite a nudez total. O terceiro exemplo se refere, provavelmente, ao caso dos trabalhos forçados e, com o risco de agravar a servidão, exige de quem está obrigado a levar um fardo que ande ainda mil passos além dos que lhe foram impostos. O último mandato, não menos extremo, exige a aceitação benevolente da extorsão, mesmo que isso implique em renunciar inclusive à própria segurança futura.
Esses mandatos pretendem nos levar à aceitação desses ideais como uma meta a alcançar. Cada um deles rechaça a reação instintiva e espontânea de devolver golpe por golpe. Penso que esses mandatos rotundamente excessivos buscam somente inverter a forma normal de viver, de pensar e de comportar-nos.
A acumulação de casos particulares e de soluções extremadas não quer ser uma norma de comportamento prudente, imediata e literalmente aplicável, mas sim uma sugestão, por meio de exemplos adequados, de um novo estilo que entra em conflito com comportamentos concretos e, sobretudo, com critérios globais da vida dos ouvintes. Em outras palavras, põe em questão a lógica de nossa ética ordinária. Mais ainda, o caráter extremado nos impede descer a casuísmos em concretas situações legais, morais, sociais ou políticas. Os casos citados não têm a claridade da lei, nem deles se depreende nada que seja exigível pela doutrina ou pela legislação. Em vez de ensinar por meio da regra, Jesus ensina através da exceção.
Não é que Jesus nos deixe sem direção. Parece-me que Jesus busca desorientar a fim de orientar. Do mesmo modo como ocorre com outros exemplos de linguagem extremada, hiperbólica ou paradoxal, como a imagem do camelo que passa pelo buraco de uma agulha, ou da trave na frente do olho, ou de certos desenlaces de algumas parábolas. No meu entender, com esses artifícios retóricos, Jesus pretende reorientar mais a imaginação do que a vontade. A vontade é a capacidade de obedecer à norma, uma vez conhecida esta. A imaginação é a capacidade de descobrir um novo caminho ao enxergar uma nova perspectiva das coisas; é o poder de alcançar uma nova pauta pela recepção do ensinamento da exceção.
A meu juízo, essas palavras extremadas de Jesus imprimem à nossa imaginação ética não uma norma ou regra concreta, mas sim o que podemos chamar de um estilo, que se pode resumir numa espécie de excesso da resposta em relação ao que se esperaria normalmente. Cada resposta dá mais do que pede a prudência ordinária. E é esse dar mais o que, a meu juízo, constitui a chispa desses mandatos extremados nos quais se joga a mesma lógica que se encontra nas parábolas, nos provérbios ou nas parábolas escatológicas de Jesus. Essa lógica de generosidade choca frontalmente com a da equivalência que está na base dos intercâmbios de nossa vida, de nosso comércio [a lógica do mercado], do direito penal; e que vimos magnificamente representada no talião cósmico do dilúvio. A lógica da generosidade aparecia, já no horizonte da promessa de Yahvé, como ressurreição da humanidade desde as águas do dilúvio. Agora ocupa o lugar central nas palavras de Jesus. E é essa mesma lógica que se acha na prosa trabalhada e paradoxal do texto de Paulo em Rm 5, 17, que comentamos.
Para compreender a lógica de Paulo cremos que é melhor chegar a suas palavras como meta final do que tomar a elas como ponto de partida. Digo, de passagem, que não aceito em absoluto a tese de Nietzsche de que Paulo inventou o cristianismo, senão como mensagem, ao menos como doutrina. Estou convencido de que Paulo disse o mesmo que Jesus, embora num registro distinto, mais abstrato e mais dogmático. Contudo, o sentido é idêntico.
Trata-se da mesma lógica da sobreabundância, que rompe a da equivalência. E para destacar isso, Paulo, por quatro vezes, como se quisesse, com a repetição, imitar a abundância do dom que celebra, repete a forma retórica: “Quanto mais...!” Paulo, porém, aplica essa lógica, que antes vimos no discurso popular da parábola, do provérbio ou da exortação, à temática do destino humano narrado em termos de perdição e justificação; de inimizade e reconciliação com Deus; de lei e graça; de morte e vida, temas centrais da teologia de Agostinho e Lutero. Do lado da lógica da equivalência estão o pecado, a lei e a morte. Do lado da lógica da superabundância, a justificação, a graça e a vida. Esse combate de gigantes nos intimida; inclusive está expresso em termos que nossa cultura tem por estranhos.
Para decifrá-los, vejamo-los à luz da linguagem mais simples dos Evangelhos. E nos daremos conta que, sob as palavras de reconciliação e justificação, está latente o sentido do admirável pequeno texto de Mateus, antes comentado. À luz do Sermão da Montanha, a Carta aos Romanos ganhará vida, e veremos que esta diz o mesmo que Jesus, só que num outro nível de linguagem. Além disso, a única novidade que formula, irá se converter, por contraste, em algo infinitamente precioso. Esse novo é: que Jesus é pessoalmente esse “quanto a mais de Deus”. No Evangelho, Jesus era principalmente quem pregava a boa notícia. Agora ele é apresentado como aquele que, pela loucura da cruz, rompe a triste equivalência do pecado e da morte: “com quanto mais razão, justificados agora por seu sangue, seremos por Ele salvos da cólera”! O combate de gigantes, que antes evocávamos (condenação/justificação; lei/graça; morte/vida) encarna-se em duas figuras. De um lado, o primeiro homem: “se pela falta de um só [...]”. Do outro, o ser humano verdadeiro: “quanto mais a graça de Deus e o dom outorgado pela graça de um só homem, Jesus Cristo, transbordaram-se sobre toda a humanidade”!
Assim, pois, a Igreja, pela boca de Paulo, dá um nome, o de Jesus, à lei da superabundância. Mas mesmo então, essa afirmação da Igreja seria uma palavra fechada e ininteligível, se não pudéssemos relacionar esse supremo “quanto mais” aos paradoxos esclarecedores do rabi Jesus.
Provavelmente perguntareis como é possível hoje viver essa lógica da superabundância. Nada mais distante do espírito evangélico do que pretender deduzir uma moral fixa dos mandatos paradoxais de Jesus. Podemos, contudo, dar sinais concretos dessa economia (2) nova. Permitam-me sugerir alguns, sem outro intuito do que suscitar uma reflexão parecida que, talvez, chegue a conclusões diferentes das minhas.
No campo penal, de onde partimos, não se nos adverte contra a tendência natural a empregar a lógica da equivalência, e somos convidados a discernir, inclusive no castigo mais justo, os elementos de cólera e de vingança? É bom que, iluminados pelo paradoxo de Jesus, duvidemos de nossas melhores obras e, de modo mais positivo, que procuremos orientar deliberadamente o castigo na direção da emenda mais do que da expiação. Porque o Evangelho está do lado da reabilitação do culpado e não da vingança social.
Ampliemos o campo de nosso olhar e julguemos se o mercado, hoje, não está orientado pela regra da troca e, portanto, da equivalência. A lei da troca não é, como a lei penal, uma forma oculta de violência, em especial quando, sob a aparência jurídica, esconde-se uma confrontação de forças? A suspeita sobre a base de nossa economia é idêntica àquela em relação ao Direito, pois em ambos os casos reina o mesmo modelo de racionalidade. No campo econômico se nos pedem também sinais positivos. As leis econômicas não são eternas. Os etnólogos nos falam de uma economia do dom mais antiga do que a do intercâmbio, e de festas em que as pessoas se excedem em generosidade e munificência. Não temos nós a obrigação, em escala nacional e, ainda mais internacional, de fazer aparecer algo dessa economia do dom num contexto moderno? Essa lógica da superabundância não pode retificar, no campo econômico, os danos e desigualdades induzidos precisamente pela lógica da equivalência?
Aqui me detenho, pois não quero substituir, com minhas respostas ou perguntas, à questão de Jesus e de Paulo, e ao contraste de suas respostas. Não o duvidemos. Pôr em prática a palavra de Jesus é buscar sinais concretos, que devemos dar hoje, da lógica de Jesus.
1 Tradução, a partir da versão em espanhol, por Rogério Mosimann da Silva.