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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
09.09.2015 | 19:32 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Uma imagem chocante, que ilustra o drama dos refugiados que tentam chegar à Europa a qualquer custo, chegou ao topo das edições online dos principais jornais do mundo e viralizou nas redes sociais na quarta-feira (02/09). A foto era de um menino que provavelmente estava entre os 12 refugiados sírios que morreram afogados após seus botes afundarem próximo à península de Bodrum -- um balneário com resorts de luxo frequentados por praticantes de mergulho -- numa tentativa de chegar à ilha de Kos, na Grécia, que tem sido o destino buscado por milhares de refugiados que tentam chegar à Europa. 

O Papa Francisco pediu neste domingo (06/09) durante a oração do Ângelus na praça de São Pedro, que toda paróquia e comunidade religiosa na Europa receba ao menos uma família imigrante e afirmou que o Vaticano receberá duas famílias. 

Motivados por essa temática, propomos outros dois artigos. O primeiro “Mundo em fuga. A saga dos refugiados e a luta para recomeçar”, publicado pela Revista IHU On-Line, Nº.429, aborda as mudanças forçadas, o direito à vida, as testemunhas invisíveis na América Latina, a guerrilha, o refúgio e o futuro de migrantes de diferentes países. 

Em seguida, disponibilizamos uma entrevista com Rosana Schwartz “Migrações:“O radicalismo não cabe mais nos dias contemporâneos”, que expõe: “(...)fenômeno global, os fluxos migratórios demonstram a ‘dificuldade de olhar para o outro (...) porque a cultura do eu com a cultura do outro sempre cria um choque, o qual gera um estranhamento’”. Para ela é necessário “entender que esse processo de migrações não acontece somente no Brasil; eles estão acontecendo no mundo inteiro. Outro ponto a ser observado é que esse fenômeno não é novo; ele sempre existiu ao longo da história”. 

Boa leitura e reflexão. 


Papa pede que cada paróquia acolha uma família de refugiados

“É preciso lhes dar alguma esperança concreta. Não se pode apenas lhes dizer: ‘Ânimo, paciência’”, diz Francisco.

A reportagem é de Pablo Ordaz, publicada por El País, 06-09-2015.

O papa Francisco fez um apelo “às paróquias, às comunidades religiosas, aos monastérios e aos santuários de toda a Europa” para que cada um deles acolha pelo menos “uma família de refugiados”. Durante a oração do Ângelus na praça de São Pedro, no Vaticano, Jorge Mario Bergoglio anunciou que as duas paróquias do próprio Vaticano oferecerão refúgio a duas famílias nos próximos dias.

Mais do que um pedido, as palavras do Papa contêm uma ordem: “Dirijo-me aos irmãos bispos da Europa, verdadeiros pastores, para que em suas dioceses atendam ao meu apelo, recordando que a Misericórdia é o segundo nome do Amor”. Bergoglio citou uma passagem do Evangelho de Mateus: “Quando fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.

Francisco alertou aos católicos que, “frente à tragédia de dezenas de milhares que fogem da guerra e da fome”, o Evangelho os chama a atender aos mais humildes e abandonados. “É preciso lhes dar uma esperança concreta”, afirmou. “Não se pode apenas lhes dizer: ‘Ânimo, paciência…!’. A esperança é combativa, com a tenacidade de quem se dirige a uma meta segura.”

Jorge Mario Bergoglio também quis mencionar, em espanhol, a atual situação de conflito entre a Venezuela e Colômbia. “Nos últimos dias, os bispos da Venezuela e da Colômbia se reuniram para examinar juntos a dolorosa situação que se criou na fronteira entre ambos os países. Vejo nesse encontro um claro sinal de esperança. Convido a todos, em particular aos amado povos venezuelano e colombiano, a orar para que, com um espírito de solidariedade e fraternidade, as atuais dificuldades possam ser superadas.”


Mundo em fuga
A saga dos refugiados e a luta para recomeçar

Por: Andriolli Costa e Ricardo Machado

Era maio de 2011, e as águas do Mediterrâneo estavam agitadas naquele dia. Uma falha no motor havia deixado o barco à deriva em meio à tempestade, fazendo as centenas de pessoas apinhadas na velha embarcação verem o sonho da nova terra cada vez mais distante. Eram refugiados; os boat people, como são conhecidos. Os relatos falam de quase 400 pessoas naquele barco, que deixaram a Líbia em busca de refúgio na ilha italiana de Lampedusa. Porta de entrada para a Europa, distante apenas cerca de 100 km da costa africana, a pequena ilha de menos de 20 km² tem sido inundada por refugiados vindos do mar nas condições mais precárias. Insolação, desidratação e mesmo intoxicação pela fumaça dos motores afligem aqueles que fazem a travessia clandestina. No entanto, estes não são os únicos perigos. O desespero evoca tradições antigas; é preciso aplacar a tempestade, afastar os demônios. Até o fim daquela viagem, 12 pessoas foram lançadas ao mar; sacrifícios humanos para acalmar o oceano.

O relato acima, colhido pela ONG Save the Children, repercutiu em toda a imprensa internacional — e era apenas uma das várias vezes em que tragédias envolvendo a ilha e os refugiados ganhariam as páginas dos jornais. A mais recente ocorreu na primeira semana de outubro deste ano, quando uma embarcação que transportava 500 pessoas naufragou pouco antes de chegar à ilha. Apenas 155 refugiados sobreviveram, e a busca pelos corpos ainda continua. A própria entrada dos barcos em território italiano tem sido questionada, e há inclusive denúncias de que a marinha do país esteja interceptando e impedindo a passagem dos refugiados, fazendo a situação da ilha ser comparada à da fronteira do México com os Estados Unidos. Vista pelos fugitivos como um paraíso prometido, Lampedusa hoje tem recebido outra alcunha: Inferno no Mediterrâneo.

Ainda assim, as viagens continuam ocorrendo. Afinal, uma vez na ilha, os refugiados passam a ter os direitos amparados pela legislação da Comunidade Europeia, e de lá são encaminhados para Roma ou outros destinos italianos. Segundo informações do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados – Acnur, desde o início do ano cerca de 30 mil pessoas chegaram à Itália em embarcações vindas do norte da África e do Oriente Médio. Fogem dos constantes conflitos armados que sempre assolaram seus países, mas que tomaram novas proporções nos últimos anos. Um povo que deixou para trás suas casas, suas famílias e suas raízes para recomeçar a vida em terra estrangeira. A busca agora não é por oportunidades de trabalho ou renda, mas sim pela paz e segurança.

A chegada desse contingente imenso voltou à atenção do mundo para a questão dos refugiados. Como devolver a estas pessoas seus direitos básicos? Como lidar com suas necessidades? Como compreender as demandas sociais que acompanham o processo de globalização? Este é o tema da discussão desta semana da IHU On-Line.
 
Mudanças forçadas
Existem aproximadamente 43,4 milhões de pessoas na condição de refugiados ou que solicitaram refúgio em todo o mundo. Metade desse contingente vem de quatro países: Afeganistão, Somália, Síria e Sudão, de acordo com o relatório Tendências Globais, produzido pela ONU em 2012. Engana-se quem pensa que o destino da maioria dessas pessoas são os países mais ricos. Ao contrário, cerca de 80% dos refugiados são recebidos em regiões em desenvolvimento, sendo que o Paquistão é o país que mais os recebe.

Vale notar que todo esse forçoso movimento migratório ocorre em um período de “paz” — haja vista que não existem guerras mundiais declaradas como no século XX. Dizer “sim ao estrangeiro” (Oui à l’étranger), como propôs o filósofo Jacques Derrida, é, sem dúvida, o desafio das primeiras décadas do século XXI e que já começa a se desvelar. Pela primeira vez, um papa não europeu assumiu o pontificado, e é igualmente simbólico como, em sua viagem inaugural fora de Roma, foi escolhida justamente a ilha de Lampedusa para receber a visita papal de Francisco. O convite ao Vaticano foi feito por carta pelo padre Stefano Nastasi, pároco de Lampedusa.

Antes da viagem, logo após assumir o pontificado, o papa já havia aceitado o convite do padre jesuíta Giovanni La Manna para conhecer o Centro Astalli, uma iniciativa da Companhia de Jesus, localizado em Roma. Longe do Mediterrâneo, mas próximo à central de poder italiana, o Centro Astalli tornou-se ponto de referência de abrigo aos refugiados. “As mortes, no mar, de gente tentando vir até nós, fugindo da guerra, pesam em nossas consciências”, lamentou La Manna pelo Twitter. Atuante e engajado, o padre vem brigando por melhores condições para os refugiados, e foi isso que o incentivou a convidar o pontífice a conhecer o Centro que dirige há dez anos. “Papa Francisco nos lembra que não somos chamados a ser apenas testemunhas ou mestres. As pessoas estão cansadas de palavras bonitas”, escreveu também no microblog.

Desde 1981, o Centro abriu suas imponentes portas verdes de madeira para acolher imigrantes e solicitantes de refúgio, fornecendo alimentação, orientação, apoio espiritual e psicológico. Para estas pessoas, o Astalli torna-se o mais próximo possível de um “lar”, e não apenas no sentido figurado. Isto porque, para a formalização do status de refugiado, a União Europeia solicita uma série de documentos, inclusive um comprovante de residência. Como a maioria dos refugiados não possui mais estes dados à disposição, a via degli Astalli 14/A tornou-se a casa comunal de mais de 500 refugiados.

Além de fornecer assistência, o Centro, na figura do padre La Manna, tem se posicionado também politicamente sobre o assunto. “Outros refugiados chegaram por mar. Não esperem por outra tragédia e estabeleçam imediatamente canais humanitários seguros para aqueles que fogem da guerra”, apelou o diretor nas redes sociais. A presença do papa na ilha trouxe junto com ele os olhos do mundo, que passaram a dar mais atenção ao que ocorria lá. A expectativa é que essa atenção resulte em ações efetivas. “Que a tragédia de Lampedusa não se torne uma triste lembrança. O sacrifício destes refugiados levará à mudança de nossa política e da União Europeia”, previu La Manna.
 
Direito à vida
Atualmente, de acordo com as convenções internacionais, nenhuma organização pode incentivar uma pessoa a deixar seu país de origem. Aqueles que, em sua terra natal, são vítimas de perseguição por razões de raça, religião, grupo social, nacionalidade ou opinião política podem solicitar refúgio apenas quando já estiverem em terra estrangeira. Esta é uma das críticas apontadas pelo padre La Manna, que teme que a insegurança da trajetória da fuga continue a gerar tragédia em cima de tragédia — e não apenas no caso de Lampedusa.

No entanto, nem todos compartilham da política humanitária defendida pelo Centro Astalli. Desde o início do ano, mais de 15 mil boat-people chegaram à Austrália aportando na Ilha Christmas, localizada no Oceano Índico e mais próximo da Indonésia do que da Austrália. O fato levou o primeiro-ministro do país, Tony Abbott, a iniciar uma campanha contra a chegada dos refugiados, direcionando os recém-chegados para o repatriamento na Indonésia.

Para a professora de Relações Internacionais da Unisinos, Gabriela Mezanotti, a mobilidade humana faz parte da lógica da globalização tanto quanto a movimentação de bens, serviços e capitais. Para ela, catástrofes como a recente em Lampedusa apenas confirmam que a questão da migração, dos refugiados e da ação humanitária ainda tem muito que se desenvolver. “De quem é o dever de proteção dos direitos humanos? A resposta ainda é vaga e nossa realidade confirma que nós ainda não levamos os direitos a sério”.

Os conflitos armados, para a professora, são marcas do século XXI. Neste contexto, “os refugiados são o produto dos piores instintos da humanidade e a manifestação da instabilidade das relações internacionais”, pontua ela. “Eles são ao mesmo tempo invisíveis e testemunhas, seguindo a perspectiva de Giorgio Agamben. Não são vistos ou ouvidos, mas estão em todos os lugares. São testemunhas ao resistir, por existir”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foram mortos cerca de 53 milhões de pessoas, entre membros das forças Aliadas, do Eixo e civis. Outros milhares de sobreviventes, sobretudo judeus, eslavos e ciganos, se espalharam, inicialmente, pela Europa e depois para outras partes do mundo em busca de abrigo. Naquele momento, nenhum deles era legalmente considerado refugiado.

O termo, em sua conotação sociopolítica, surgiu na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, em 1951, mas só entrou em vigor em 1954. Inúmeras guerras se sucederam nas décadas seguintes, o que criou regiões de conflito, levando os povos a migrações forçadas. O termo boat people, inclusive, foi utilizado pela primeira vez para se referir aos refugiados da Guerra do Vietnã, que preferiam partir para a incerteza do oceano a viver na insegurança da terra firme.

No Oriente Médio, a instabilidade social que leva às migrações forçosas que vemos hoje iniciou com conflitos internos, agravados com a intervenção estrangeira. Na segunda metade dos anos 1970, começa a Guerra Civil no Líbano e, em 1979, a Revolução Iraniana, que derrubou um regime monárquico pró-Ocidente, dando lugar a um governo voltado à tradição Islã. Nos anos 1990, os Estados Unidos invadem o Iraque durante a Guerra do Golfo, cena que se repetiu mais de uma década depois, em 2003, com a alegação de que o então presidente Saddam Hussein mantinha um arsenal de armas químicas que ameaçavam a paz mundial. Nenhuma arma foi encontrada, mas o ditador foi capturado, julgado e executado.

Recentemente, uma nova investida americana estava sendo planejada, sob a alegação de levar a “democracia” aos povos do Oriente Médio. Estados Unidos, Inglaterra e França defendiam uma intervenção militar na Síria, movidos pelos conflitos internos entre rebeldes e o exército do país, enquanto a Rússia entendia o contrário. O presidente sírio Bashar al-Assad, em acordo mediado por Estados Unidos e Rússia, comprometeu-se em entregar as armas químicas de seu exército caso não houvesse intervenção de outros países na Síria.

Enquanto os chefes de Estados se envolvem em imbróglios geopolíticos, ao menos 6,8 milhões de sírios necessitam de ajuda humanitária, segundo dados da ONU. Desse total, 3,1 milhões são crianças e 4,25 milhões são deslocados internos. Com aproximadamente 185 mil km², a Síria é menor que o território do Paraná. Até a primeira metade do mês de setembro, havia 2 milhões de refugiados sírios em países vizinhos do Norte da África.

Testemunhas invisíveis na América Latina
Eles chegam sem fazer alarde, quase que pedindo licença para entrar. São seis ao todo. De pele escura e modos contidos, o grupo entra entusiasmado pelas portas da Igreja Pompeia, em Porto Alegre/RS. Colombianos. Silenciosos e humildes, mas visivelmente felizes, exibem com satisfação os documentos recém-assinados junto à Polícia Federal brasileira. Hoje são oficialmente e legalmente considerados refugiados. E exatamente por isso terão suas identidades preservadas e seus nomes trocados nesta reportagem.

De acordo com dados do Comitê Nacional para Refugiados - Conare, o Brasil abriga mais de 4,5 mil refugiados de 77 nacionalidades diferentes — a maioria de origem colombiana. Isto, é claro, levando em conta apenas aqueles que tiveram o status reconhecido, e não aqueles que ainda são solicitantes de refúgio. A tragédia recente em Lampedusa voltou os olhos do Brasil e do mundo para a situação insustentável daqueles refugiados, mas por vezes esquecemos da própria insegurança vivida por nossos vizinhos.

Emílio, 35 anos, não tem como esquecer. O camponês traz no rosto as terríveis marcas da violência que toma conta do sul e sudeste da Colômbia. Após recusar-se a servir à Guerrilha, em um dos vários atentados que sofreu, estilhaços de granada laceraram parte do seu nariz. O homem registrou boletins de ocorrência de cada encontro com os guerrilheiros, e há três anos conseguiu um documento do governo colombiano que confirmava sua perseguição e solicitava proteção constante para ele, a mulher e os três filhos. A ajuda nunca veio.

“O governo espera que usemos o papel para parar as balas”, desdenha Ramón, 45 anos. Ele, que é marinheiro há mais de duas décadas, também foi abordado pelos guerrilheiros, mas por motivos de estratégia militar. “Queriam que levássemos pelo mar a droga da Colômbia até o México, e de lá trouxéssemos armas para o nosso país. É assim que a guerrilha se sustenta”, relata. Após a recusa inicial, o grupo matou o capitão do barco em que Ramón atuava como imediato e ofereceu a ele uma mala com 25 maços de 7 mil dólares cada. O homem nem chegou a pensar. Guardou a maleta e, quando o grupo retornou já com a rota planejada, devolveu todo o dinheiro.

“Com essa gente não se brinca, meu amigo. Ou você é um deles ou está contra eles”. O marinheiro teve um dia para escapar. Partiu de sua cidade e espalhou amigos e familiares para bem longe dali o mais rápido possível. Foi bem a tempo. “Explodiram a minha casa e destruíram minhas motos, que eu gostava tanto”, lembra ele. O arrependimento é momentâneo. “Isso se compra de novo. Segurança não se compra”.

Emílio e Ramón não se conheciam na Colômbia e também nunca haviam se visto no Equador, de onde solicitaram refúgio para o Brasil. Um vivia da terra, em sua fazenda, e o outro, do mar. Mundos e vidas totalmente diferentes, unidas hoje pela mesma tragédia.
 
A Guerrilha
Os conflitos internos na Colômbia começaram a ganhar a faceta atual a partir da segunda metade do século XX, quando a guerrilha camponesa, influenciada pela Revolução Cubana, deu origem à entidade conhecida hoje como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo, ou Farc-EP. Fundado em 1964, o grupo recebeu apoio do Partido Comunista Colombiano, iniciando quase desde o começo suas frentes de atuação militares e políticas. Desde a década de 1980, as Farc utilizam tráfico de drogas, sequestros e “impostos” (vacuna) cobrados forçosamente de moradores, empresários e comerciantes da região para financiar suas ações.

Emílio foi uma das vítimas da vacuna. Em 2009, ele e a família moravam na zona rural de Santiago de Cáli, a terceira maior cidade da Colômbia, com mais de 2 milhões de habitantes. Natural de Buenaventura, a 145 km de distância, decidiu passar as férias com os familiares. Quando retornou, veio a surpresa: seu sítio havia sido reclamado pela Guerrilha. Para continuar nele era preciso pagar uma taxa que, ele sabia, aumentaria a cada mês. “Quando eu recusei, tentaram me convocar. Disseram que eu tinha porte físico, que podia chegar a um posto de comando. Eles partiram e me deram três dias para decidir”, relembra. A ideia era recrutar igualmente seus dois filhos mais velhos: Pablo, de 16, e Esteban, de 14 anos. Emílio também não chegou a cogitar outra alternativa. Tirou as crianças da escola e partiu imediatamente junto da esposa Maria, 38, e do caçula Adrian, de apenas três anos de idade. Quem fica para trás, ou é morto ou é escravizado pelos guerrilheiros, e é levado a fazer trabalhos forçados até o fim da vida.

Desde o início do ano, entrou em vigor uma lei que tem como meta devolver entre 1,5 e 2 milhões de hectares de terras àqueles desalojados durante os conflitos internos da Colômbia. A estimativa é que sejam indenizadas mais de 4 milhões de pessoas vítimas de grupos guerrilheiros, paramilitares e  agentes da força pública desde 1985, e que as cerca de 400 mil famílias desalojadas desde 1991 sejam restituídas. Emílio não quis aguardar. “Aos mortos não pagam”, esclarece, lacônico.

“A Colômbia tem três problemas principais”, explica Ramón. “A Guerrilha, os Paramilitares e o Exército”. Para o marinheiro, a violência instituída praticada pelas forças armadas alimenta de forma permissiva os demais grupos. “Se você tem algum amigo, parente ou mesmo cliente que entra para a Guerrilha ou para a Milícia, o exército te acusa publicamente de também ser um partidário do grupo”. Isso faz com que a pessoa não apenas seja alvo de investigação, como também tenha que lidar com o assédio da força opositora. E os paramilitares de direita podem ser tão ou mais violentos quanto os próprios guerrilheiros.

Um relatório publicado este ano pela ONG Corporación Nuevo Arco Íris afirma que, desde 2008, as ações violentas realizadas a cada ano por grupos paramilitares e neoparamilitares têm ocorrido em maior número do que as realizadas pelas Farc. Outra estimativa apontada pelo documento é que tais grupos contariam com 11 mil membros em atividade, contra 8,5 mil das Forças Revolucionárias e 2,2 mil do Exército de Libertação Nacional – ELN — outro grupo guerrilheiro, de orientação guevarista. Em sua origem, os paramilitares eram grupos formados por ex-oficiais e policiais contratados e financiados por grandes empresários, fazendeiros ou políticos. Durante o governo Álvaro Uribe (2002-2010), foram realizadas diversas ações de desmobilização destes grupos. Hoje, reorganizados, formam os neoparamilitares e, tal como as Farc, lucram com o narcotráfico na região.
 
O refúgio
Durante mais de dois anos, Emílio e sua família tornaram-se nômades dentro do próprio país. Não demorava muito e os guerrilheiros logo os localizavam novamente, e ele tinha que partir mais uma vez. “Já no primeiro contato, eles tomaram nossos documentos, para dificultar nossa circulação pelo país”, afirma ele. Foi só com o tempo que Emílio tomou conhecimento da condição de refugiado e fugiu para o Equador. Uma vez em Tulcán, na fronteira com a Colômbia, solicitou junto ao país o reconhecimento da condição de refugiado. Mesmo com todos os documentos que comprovavam a perseguição, a aprovação foi recusada.

Para dificultar ainda mais a história da família, mesmo em outro país, os cinco foram localizados pelos perseguidores. “A Guerrilha tem um grande sistema de informantes. Pode ser um policial, pode ser um comerciante, pode ser o seu familiar”, relata ele. Foi só então que os colombianos procuraram a Acnur, que mediou a saída do grupo do Equador. De lá para cá, foram nove meses de espera até a vinda definitiva para o Brasil.

Abraçada com as crianças, Maria conta que estava tão desesperada que pela primeira vez contemplou o suicídio. A guerrilha já havia assassinado sua irmã, e eles sabiam do que os guerrilheiros eram capazes. Além disso, a vida no Equador não era nada fácil. “Eu quase fiquei louca. Tudo isso que nós estamos recebendo agora não tivemos nada naquele país. Os equatorianos são pessoas muito más”, lamenta.

“Lá, se você é branco, eles te tratam muito bem. Mas quem é negro não tem direito a nada”, afirma Pablo, o filho mais velho do casal. Ramón, por outro lado, não teve problemas em sua estadia no país. A profissão de marinheiro é muito requisitada, e o homem conseguiu entrar no Equador com uma proposta de emprego. Uma vez lá, dirigiu-se para uma região onde havia mais negros e solicitou refúgio. Foi aprovado.

Karin Wapechowski , coordenadora do Programa Nacional de Reassentamento Solidário da Associação Antônio Vieira - ASAV , em Porto Alegre, afirma que a impressão da família tem razão de ser. “Já colhemos relatos de mulheres que foram obrigadas a parir na rua, em frente ao hospital. Não puderam entrar justamente porque eram colombianas”. Ela, que é uma das responsáveis pela vinda de Emílio e Ramón para o Rio Grande do Sul, esclarece que é da prerrogativa de cada país aceitar ou não os refugiados sem necessidade de justificativa. “No caso da mediação pela Acnur, a agência apresenta os casos para vários países. Quando há o aceite, inicia-se uma série de entrevistas para confirmar o status de refugiados”, esclarece. Ramón, por exemplo, conta que sua solicitação de abrigo foi aceita pelo Canadá, pela Noruega e pelo Brasil. Escolheu o Brasil, tanto pelo clima quanto pelo medo do preconceito.

Aqueles que são aceitos como refugiados e passam a fazer parte do programa de reassentamento recebem uma bolsa mensal durante um ano, que varia de acordo com o número de membros da família. Só no Rio Grande do Sul, são 268 pessoas reassentadas, de acordo com Wapechowski.  Após quatro anos de estadia no país, o refugiado pode fazer uma nova solicitação e tornar-se apenas um estrangeiro residente no Brasil. “A diferença entre um migrante e um refugiado é que, com o refúgio, o país se compromete a fornecer proteção legal e física da pessoa”, esclarece. Durante o primeiro ano, a pessoa precisa se manter na cidade onde foi alocada, mas depois é livre para ir a qualquer parte do território nacional.
 
O futuro
Recém-chegado a uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, Ramón afirma se sentir completamente à vontade no Brasil. No entanto, vai apenas esperar acabar o período necessário para buscar o mar. Afinal, é dele que depende o seu ofício de mais de duas décadas e de onde é capaz de tirar seu sustento. “Como marinheiro eu recebia 3,5 mil dólares por mês e usava camisas de 100 dólares. Hoje dependo de doações para ter o que vestir”, lamenta ele. Enquanto isso, colegas que aceitaram o convite da Guerrilha estão ganhando 300, 400 mil por mês. Se ele se arrepende? “Nem um pouco. Eu pelo menos posso dormir tranquilo”.

A vaidade pessoal não é o único motivo que incentiva o marinheiro a buscar uma fonte de renda própria. “Eu vivia no mar. Ficava meses, às vezes quase um ano longe das minhas filhas. Meu vínculo com a família era o dinheiro”, relembra. Hoje, sem os recursos de antes disponíveis na conta, Ramón sente a fragilidade do laço que havia construído e o peso da responsabilidade. Sem ser capaz de cumprir o papel de provedor do lar, ele reflete sobre uma nova aproximação. “Hoje elas dependem de mim tanto afetivamente quanto economicamente”, pondera.

Emílio e a família, por outro lado, já decidiram ficar. Os garotos também gostaram da cidade, dizem que Porto Alegre parece com a Europa. A sorte, de qualquer forma, parece estar se voltando para o lado deles. Em menos de oito dias no Rio Grande do Sul, tanto Emílio quanto Ramón já possuem um emprego à vista. O próprio motorista da prefeitura da cidade onde estão alocados os indicou para um empresário amigo seu, que lhes ofereceu as vagas. “Não existe um sistema formal de incentivo à contratação de refugiados. O que existe é uma rede de solidariedade, totalmente informal e espontânea”, esclarece Karin. Tranquilidade, felicidade, vontade de seguir adiante. É tudo o que os seis colombianos esperam para o futuro.

Na sala da entrevista, o pequeno Adrian encontra e imediatamente desembrulha um pacote com um pequeno caminhão de brinquedo. “De quem é?”, pergunta a mãe, preocupada. “É de Deus, pode ficar”, responde uma das irmãs da Igreja Pompeia. Alheio às terríveis lembranças da família, o garoto brinca. Rola as rodinhas de plástico pela mesa; empilha os boizinhos multicoloridos na caçamba; faz barulho de buzina com a boca. É um dia de paz. A vida continua.
 
Serviço aos refugiados
Na Igreja Pompeia, onde o grupo de colombianos foi acolhido, funciona o Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações - Cibai. Fundado em 1953 para atender as migrações do pós-guerra — especialmente italianos —, nos últimos anos passou a atuar principalmente no apoio aos imigrantes hispano-americanos. Refugiados e solicitantes de refúgio também recebem orientação e caridade. Mais sobre o Centro está disponível aqui:http://bit.ly/cibai2013.

Também em parceria com a ASAV e a ACNUR, outra forma de apoio é a desenvolvida pelo Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados – Gaire, que faz parte do serviço de assessoria jurídica universitária da UFRGS. Atuando desde 2007, o Gaire oferece assistência jurídica, psicológica e social todas as terças-feiras, das 10h às 12h. Além da advocacia, o grupo conta com alunos de Relações Internacionais, Direito, Psicologia, Ciências Sociais e Serviço Social. O trabalho é totalmente voluntário. Para 2014, a proposta é desenvolver um curso de formação de novos grupos como o Gaire em outras universidades que já contam com serviços de assistência judiciária gratuita. Há mais sobre o grupo no link http://bit.ly/GaireUFRGS.

Para discutir a questão dos refugiados no meio acadêmico, a Unisinos possui a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, co-coordenada pelos cursos de Filosofia e Relações Internacionais, na figura dos professores Inácio Helfer e Gabriela Mezanotti. De acordo com a professora, a cátedra reúne a pesquisa e o ensino a uma prática social de proteção a estas pessoas. “Estamos trabalhando para desenvolver um centro de atenção a refugiados na Unisinos, que incluirá a participação direta de alunos de vários cursos em parceria com a ASAV”, relata Mezanotti. Para a professora, este trabalho engaja os participantes não apenas academicamente, mas também pela expectativa de agir diretamente na integração destas pessoas na sociedade brasileira. Mais informações estão disponíveis em http://bit.ly/CSVM2013.



Migrações: “O radicalismo não cabe mais nos dias contemporâneos”. Entrevista especial com Rosana Schwartz

“Temos de entender esse ir e vir das populações do mundo inteiro como sendo casos de pessoas que são dotadas de igualdades e que todos nós temos direito à vida”, diz a historiadora.

Um fenômeno global, os fluxos migratórios demonstram a “dificuldade de olhar para o outro (...) porque a cultura do eu com a cultura do outro sempre cria um choque, o qual gera um estranhamento”, diz Rosana Schwartz à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.

Ao comentar as constantes migrações que têm ocorrido no mundo todo, seja nos países da Europa ou da América Latina, a pesquisadora lembra que esse processo “não é novo”, mas para entender como e por que ele acontece em grande escala, “temos de analisar quais são os fatores que têm gerado tanto a expulsão quanto a atração de pessoas para os países x ou y”.

No caso dos haitianos que migram para o Brasil, exemplifica, “por quais razões eles saíram de seu país de origem e por que eles migram para o Brasil?”. Para ela, somente a partir da “investigação” desse tipo de questão é que se poderá “criar” um “diálogo entre a sociedade e os governos” para encontrar maneiras de evitar conflitos e garantir a vida dos imigrantes nos novos destinos.

Na avaliação dela, um dos aspectos que explica a intensificação das migrações é o fato de “não existirem condições de as pessoas ficarem e sobreviverem em seus países de origem; basta ver os problemas sociais, econômicos e políticos que o Haiti tem. Então, as pessoas tentam a sorte em outros locais. No caso da Itália, ocorre o mesmo: o país tem recebido inúmeras pessoas que não têm mais condições de viver em seus países de origem”.

Rosana salienta ainda que em momentos de crise, como é o caso da crise econômica, que afeta vários países da Europa e mesmo o Brasil, as posições em relação aos imigrantes “são mais radicais, porque as pessoas dos países que recebem esses imigrantes pensam que eles irão tirar o lugar delas nos postos de trabalho, no atendimento à saúde, etc. Então, quando abala os direitos sociais, o preconceito acaba surgindo”. Parte da resolução dos conflitos que surgem, pontua, pode ser resolvida a partir de políticas internacionais que evitem a “xenofobia e o nacionalismo exacerbado”.

Rosana Schwartz é doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM e graduada em História pela PUC/SP. Atualmente leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em artigo recente a senhora chama atenção para o preconceito velado e desvelado contra os haitianos. Como o preconceito tem se manifestado no Brasil em relação aos imigrantes?
Rosana Schwartz – O preconceito é maior nas regiões Sudeste e Sul, onde se teve uma integração maior do imigrante europeu branco no processo civilizatório. A vinda desses imigrantes para o Brasil é fruto de uma proposta do governo da época — embora fosse um absurdo —, para que houvesse um processo de branqueamento da raça brasileira no século XIX e início do século XX. Então, o imigrante veio não só para trabalhar nos postos de trabalho existentes após a abolição da escravatura, mas também por conta desse processo de branqueamento.

De modo geral temos aquela ideia de que eles vieram para o país e fizeram riqueza, porque tinham mais capacidade de trabalho, mas isso não é verdade; trata-se de mais um preconceito que existe em relação aos imigrantes. Muitos deles viveram em situações de penúria e sofreram muito com o preconceito à época: o italiano foi chamado de carcamano, outros de galegos. A elite brasileira não aceitava os imigrantes, porque eles não eram provenientes das classes abastadas da Europa, mas, sim, eram os trabalhadores empobrecidos que, por causa de guerras ou crises econômicas, migraram. Posteriormente, eles não puderam voltar para seus países de origem, porque não tinham dinheiro.

Tudo isso é importante para mostrar que o brasileiro não foi tão amistoso no seu passado, ao contrário do que parece, já que fomos construindo uma imagem de que o brasileiro está sempre confraternizando e de braços abertos para os imigrantes. Pelo contrário, nós os rejeitamos, e os colocamos à mercê, em condições de penúria e, somente depois houve uma incorporação muito lenta das culturas dos imigrantes europeus e, por fim, a aceitação.

É importante também mencionar que existia, no século XIX, a ideia de que o europeu, o homem branco, era superior. Esse discurso foi adotado no Brasil e, apesar da situação dos imigrantes, eles não deixaram de ser europeus e eram considerados superiores.

IHU On-Line - Quais as causas do preconceito?
Rosana Schwartz – As principais causas estão ligadas a essas teorias do século XIX, as quais diziam que o homem europeu e branco era superior tanto em relação à mulher quanto num sentido cívico, intelectual e no processo de civilização. São teorias extremamente complicadas, que foram trazidas para o Brasil antes do período da República, especialmente pelos positivistas, quando se acreditava que a sociedade brasileira poderia chegar ao progresso a partir de uma ordem, de um progresso e de um olhar europeu. É por conta dessa influência que até hoje continuamos olhando a história com o olhar europeu e estudamos muito mais a história de países como França, Inglaterra, Itália, do que a do nosso próprio país, porque há esse deslocamento para o eurocentrismo.

A outra causa é o próprio processo de escravidão. O Brasil teve o processo de escravidão mais longo, já que a abolição no país data de 1888, mas mesmo assim demorou muito tempo para que ela fosse efetivada de fato. Quando ocorreu a abolição, os donos de escravos receberam indenizações do Estado, porque estavam perdendo ferramentas de trabalho — um absurdo — e, durante muito tempo, esses ex-escravos viveram à margem da sociedade, porque não existia nenhum projeto de inclusão social pós-abolição e, de outro lado, existia a proibição de ex-escravos comprarem propriedades e terras. É por conta disso que muitos ex-escravos, africanos libertos e descendentes de africanos libertos, vão viver em regiões periféricas das grandes cidades.

Então, durante muito tempo eles viveram nessa posição e nenhum projeto ou programa foi feito antes da Constituição de 1988, visando à inclusão social desses grupos sociais. É por isso que se tem um olhar excludente, de desqualificação e preconceito, que o próprio Brasil não considera que tem, mas tem. Basta analisar o comportamento da polícia, os relatos cotidianos dos negros, o número reduzido de negros nas universidades, em cargos de tomada de decisão; tudo isso é decorrente desse preconceito.

IHU On-Line – Em tempos de crise econômica, por exemplo, ouve-se o discurso de que o ingresso de imigrantes em alguns países gera conflitos por conta da redução de postos de trabalho ou por conta de mais pessoas necessitarem de atendimento social, por exemplo. Nesses casos, trata-se de preconceito, preconceito velado ou é outra situação?
Rosana Schwartz – Em todo período de crise econômica, esses argumentos aparecem, como estamos vendo nos países europeus, e no Brasil. Mas se você reparar, esse tipo de argumentação não é tão frequente em relação aos imigrantes alemães, como é em relação aos haitianos, por exemplo, porque em relação aos haitianos, os comentários e preconceitos são em relação ao país de origem deles e à cor da pele. Então, a justificativa que a sociedade cria, em primeiro lugar, é essa de que os imigrantes irão ocupar os postos de trabalho numa época de crise econômica, esquecendo que durante muito tempo o brasileiro migrou para a América do Norte e para a Europa em busca de melhores posições de vida.

Nesse sentido, esse tipo de argumentação que menciona os postos de trabalho mostra como estamos sendo incoerentes com nós mesmos, porque agora que existe crise na Europa, os imigrantes da África, do Haiti, da Bolívia e da América Latina vêm para o Brasil em busca de melhores condições de vida.

IHU On-Line - Além dos haitianos, imigrantes de outras nações, como os bolivianos, angolanos, senegaleses, ganenses, portugueses e espanhóis, que vieram para o país nos últimos dez anos, também sofrem o mesmo tipo de preconceito?
Rosana Schwartz – Sim, também sofrem, mas menos. Tem um número muito grande de bolivianos no Brasil, que estão em algumas regiões como em Bom Retiro, em São Paulo, e trabalham com costura. Mas eles têm um processo de inclusão um pouco melhor, porque estão vindo para trabalhar para outros imigrantes, que já chegaram anteriormente, como os coreanos e chineses. Então, eles têm uma colocação e, mesmo que seja análoga à escravidão, as famílias se mantêm próximas, num agrupamento. O olhar em relação a eles não aparenta tanto preconceito como se percebe em relação aos africanos ou haitianos.

Em geral as pessoas têm medo de passar nas regiões onde vivem os africanos e têm um olhar de que eles são perigosos. É esse olhar que temos de desconstruir: não se pode olhar as pessoas como sendo perigosas, ou como pessoas que estão vindo para ocupar cargos que não são delas de direito, enquanto outros imigrantes, outrora, vieram para garantir o crescimento do país no século XIX e XX, para civilizarem e fazer com que o Brasil se tornasse grandioso. Veja a diferença: todos sofreram preconceito, porque a cultura do eu com a cultura do outro sempre cria um choque, o qual gera um estranhamento, mas uns foram incorporados mais facilmente por serem europeus e brancos, e outros estão sendo incorporados mais lentamente, porque estão trabalhando em regiões para as quais não se dá muita importância, como é o caso dos bolivianos. Em relação aos africanos e haitianos, há um preconceito velado, porque aparece um preconceito que o Brasil tem em relação à cor da pele.

IHU On-Line - Há diferenças nas imigrações de hoje das que já ocorreram no passado?
Rosana Schwartz – O fenômeno migratório acontece hoje por não existirem condições de as pessoas ficarem e sobreviverem em seus países de origem; basta ver os problemas sociais, econômicos e políticos que o Haiti tem. Então, as pessoas tentam a sorte em outros locais. No caso da Itália, ocorre o mesmo: o país tem recebido inúmeras pessoas que não têm mais condições de viver em seus países de origem. O que temos de evidenciar com isso? Que são seres humanos dotados de direitos, que os direitos humanos devem ser assegurados para todos, que devemos viver numa cultura de paz, que temos de ter uma cultura de tolerância e aceitar as condições dessas pessoas e promover a inclusão social, porque no passado outros imigrantes também saíram de seus países de origem em grandes levas. Temos de entender esse ir e vir das populações do mundo inteiro como sendo casos de pessoas que são dotadas de igualdades e que todos nós temos direito à vida.

Também temos de exigir que os governos criem possibilidades de soluções sobre essa questão que está acontecendo no mundo hoje, para evitar que esse movimento migratório crie xenofobia e nacionalismo exacerbado. Como se tem uma crise muito grande, e várias regiões do mundo estão recebendo grandes fluxos de pessoas que não são da sua cultura e da sua nacionalidade, isso desperta momentos de xenofobia, nacionalismo e radicalismo. Não podemos permitir isso num país como o nosso, que é um país miscigenado, multicultural, porque temos todos os tipos de etnias convivendo. Não podemos, de forma alguma, que qualquer forma negativa em relação aos imigrantes possa despontar algo radical.

IHU On-Line - Como o Estado brasileiro tem lidado com as imigrações no país?
Rosana Schwartz – Ainda não tem agido de forma boa nem com a própria movimentação dentro do seu próprio país, porque sempre ocorreram fluxos migratórios no Brasil. Em algumas regiões há ainda preconceitos com pessoas de outras regiões, como o caso do preconceito do Sul e Sudeste com o Norte e Nordeste. O país tem de tratar essas questões na educação, porque é o único meio para mudar esse preconceito, com novos livros didáticos, e discutir essas questões a partir de um entendimento dos direitos humanos. Nesse sentido, políticas públicas, parâmetros curriculares e a implementação dessa discussão na mídia são importantes para que as pessoas possam, nas universidades, escolas e canais de comunicação, desconstruir o preconceito.

O preconceito é um conceito estabelecido sem nenhuma fundamentação teórica. Então, para desconstruí-lo, temos de falar mais sobre isso. Um meio que tem sido efetivo para isso são as redes sociais para replicar e compartilhar essas questões, porque aos poucos as pessoas vão criando entendimento sobre o preconceito.

IHU On-Line - A senhora tem acompanhado a situação dos imigrantes em outras partes do mundo, como os que migram para a Europa, por exemplo, ou mesmo os conflitos que existem na América Latina, em que colombianos foram expulsos da Venezuela? Como tem avaliado esse fenômeno migratório global?
Rosana Schwartz – Tenho acompanhado porque faço parte de um grupo de pesquisa sobre migrações no mundo inteiro. O que estamos vendo é um momento de crise tanto na Europa, quanto nos EUA e mesmo no Brasil e, quando isso acontece, os radicalismos ficam mais aflorados. Nesses períodos de crise, as posições são mais radicais, porque as pessoas dos países que recebem esses imigrantes pensam que eles irão tirar o lugar delas nos postos de trabalho, no atendimento à saúde, etc. Então, quando abala os direitos sociais, o preconceito acaba surgindo. O que temos de fazer é discutir e colocar a questão em pauta.

IHU On-Line - Como resolver os conflitos que surgem por conta das migrações? Qual tem de ser o papel das diferentes nações, tanto das nações de origem dos imigrantes, quanto das dos países para os quais eles mudam?
Rosana Schwartz – Quando existem essas saídas de diversos fluxos, e por razões diversas, temos de analisar quais são os fatores que têm gerado tanto a expulsão quanto a atração de pessoas para os países x ou y. Então, não dá para se falar de uma maneira geral, mas temos de analisar região por região. Por exemplo, por quais razões os haitianos saíram de seu país de origem e por que eles migram para o Brasil? A partir dessas investigações, podemos criar diálogo entre a sociedade e os governos, porque estamos num contexto em que a comunicação é muito fácil e temos como saber o que acontece do outro lado do mundo. Então, é preciso que sejam desenvolvidas ações e políticas internacionais fortalecidas e um entendimento da sociedade civil acerca do que está acontecendo e motivando as migrações, ou seja, é preciso conhecer os fatores de expulsão e de atração para determinado país e também acompanhar o período de adaptação dos imigrantes nos países, no sentido de verificar se eles estão tendo acesso a trabalho, como estão vivendo, etc.

É uma colcha de retalho que tem de ser construída parte a parte, com muito cuidado, porque o conhecimento nesse caso não pode ser superficial. Temos de entender as questões que dão origem às migrações e promover ações de políticas públicas com relação aos imigrantes.

Existe, no Conselho Participativo em São Paulo, um grupo de imigrantes que está acompanhando as políticas públicas para imigrantes na cidade, mas muitas pessoas não têm conhecimento desse tipo de ação. Por isso, temos de dar visibilidade para que elas saibam onde podem encontrar apoio e diálogo e depois discutirem com as prefeituras, subprefeituras e governos.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Rosana Schwartz – O ponto principal é entender que esse processo de migrações não acontece somente no Brasil; eles estão acontecendo no mundo inteiro. Outro ponto a ser observado é que esse fenômeno não é novo; ele sempre existiu ao longo da história e sempre houve dificuldade de olhar para o outro. Só que o homem foi aprendendo e conquistando direitos e compreendendo o outro como um ser humano e, portanto, o radicalismo que se tinha no passado, não cabe mais nos dias contemporâneos.

Por Patrícia Fachin e Leslie Chaves
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