[ Defender a dignidade humana: um desafio para a Fé ]
Nesta semana estamos disponibilizando dois textos extraídos de documentos da Igreja latino-americana. Primeiramente, os “rostos concretos” mencionados pela Conferência Episcopal realizada em Puebla de los Ángeles, México, em janeiro de 1979. Essa passagem se tornou logo clássica, e alimentou a caminhada de Fé das comunidades eclesiais espalhadas por todo o Continente. Mas uma fé engajada, articulada com a organização para reivindicar os direitos das maiorias populares e com o serviço solidário às massas relegadas à marginalização.
Quase 30 anos depois, a Conferência de Aparecida, SP, Brasil (2007) retoma a intuição de Puebla e, buscando avançar para a realidade de hoje, refere-se a “novos rostos” de pessoas e grupos sociais empobrecidos.
Em ambos os casos, trata-se de encarnar, na História de nossos povos, a mensagem de Vida plena anunciada por Jesus Cristo. O compromisso social se manifesta, assim, como dimensão intrínseca ao Evangelho. A relação entre o horizonte da Fé e a trama efetiva de nossas sociedades vem anunciada, aliás, no próprio tema da Conferência de Puebla: “A Evangelização no presente e no futuro da América Latina”.
Esse aludido “futuro” somos nós hoje, chamados a ler com lucidez a realidade do nosso tempo e a agir com criatividade sobre ela, para que o credo expresso em Puebla se vá efetivando entre nós: “Deus está presente, vivo, em Jesus Cristo libertador, no coração da América Latina” (Puebla, Mensagem aos povos da América Latina, nº 9).
Mais do que qualquer outra instância, a própria Igreja é convocada a responder com fidelidade ao apelo do Evangelho. Caminhando junto com tanta gente, no mútuo respeito entre as diferentes culturas e convicções, é que vamos fermentando na História novas relações. O fruto que brota dessa semente é o Sorriso de mais Vida estampado em cada rosto humano em quem a dignidade é reconhecida.
Que este “Convite à reflexão” nos ajude nesse peregrinar...
III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO:
A EVANGELIZAÇÃO NO PRESENTE E NO FUTURO DA AMERICA LATINA
(Puebla, México, 1979)
[do capítulo II: VISÃO SOCIO-CULTURAL DA REALIDADE LATINO-AMERICANA]
26. O que Paulo VI apresentou na Evangelii Nuntiandi reflete lucidamente a realidade de nossos países: “É bem sabido em que termos falaram, durante o último Sínodo, numerosos bispos de todos os continentes e sobretudo os bispos do Terceiro Mundo, com um acento pastoral em que vibravam as vozes de milhões de filhos da Igreja que constituem tais povos. Povos – já o sabemos – empenhados com todas as suas energias no esforço e na luta para superar tudo o que os condena a ficarem à margem da vida: fome, enfermidades crônicas, analfabetismo, empobrecimento, injustiça nas relações internacionais, especialmente nas de comércio, situações de neocolonialismo econômico e cultural por vezes tão cruel quanto o político etc. A Igreja, repetiram os bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, entre os quais há muitos filhos seus; o dever de ajudar a nascer esta libertação, de dar testemunho da mesma, de fazer que seja total. Nada disto é estranho à evangelização” (EN 30).
Compartilhar as angústias
27. Preocupam-nos as angústias de todos os membros do povo, qualquer que seja a sua condição social: sua solidão, seus problemas familiares, a falta de sentido que não poucos vêem na vida. E mais especialmente queremos, hoje, compartilhar as angústias que nascem de sua pobreza.
28. Vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres.44 O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas.45 Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, cuja gravidade é tanto maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que tem a capacidade de mudar: “que se derrubem as barreiras da exploração... contra as quais se estraçalham seus maiores esforços de promoção” (João Paulo II, Alocução em Oaxaca, 5, AAS LXXI, p. 209).
29. Comprovamos, pois, como o mais devastador e humilhante flagelo a situação de pobreza desumana em que vivem milhões de latino-americanos e que se exprime, por exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada, em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e sem proteção.
30. Ao analisar mais a fundo a tal situação, descobrimos que esta pobreza não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas da miséria. A situação interna de nossos países encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não de autêntico humanismo mas de materialismo, produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres.46 Esta realidade exige, portanto, conversão pessoal e transformações profundas das estruturas que correspondam às legitimas aspirações do povo a uma verdadeira justiça social; tais mudanças ou não se deram ou têm sido demasiado lentas na experiência da AL.
31. Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e nos interpela):
32. feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se por causa de deficiências mentais; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família;
33. feições de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de oportunidades de capacitação e de ocupação;
34. feições de indígenas e, com freqüência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres entre os pobres;
35. feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o nosso continente, sem terra, sem situação de dependência interna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram;
36. feições de operários, com freqüência mal remunerados, que têm dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos;
37. feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos;
38. feições de marginalizados e amontoados de nossas cidades, sofrendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros setores sociais;
39. feições de anciãos cada dia mais numerosos, frequentemente postos à margem da sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem.
40. Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano, imagem e semelhança do criador e a seus direitos inalienáveis de filhos de Deus.
41. Países como os nossos, onde com frequência não se respeitam os direitos humanos fundamentais – vida, saúde, educação, moradia, trabalho... acham-se em situação de permanente violação de dignidade da pessoa humana.
44 Cf. João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 2 (AAS, LXXI, p. 199).
45 Cf. Paulo VI, Populorum Progresio, 3.
46 Cf. João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 3 (AAS, LXXI, p. 201).
DOCUMENTO DE APARECIDA
TEXTO CONCLUSIVO DA V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE
(Aparecida do Norte, SP, 2007)
Situação sociocultural
[ do capítulo II: OLHAR DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS SOBRE A REALIDADE ]
62. Conduzida por uma tendência que contagia o lucro e estimula a concorrência, a globalização segue uma dinâmica de concentração de poder e de riqueza em mãos de poucos. Concentração não só de recursos físicos e monetários, mas sobretudo de informação e dos recursos humanos, o que produz a exclusão de todos aqueles não suficientemente capacitados e informados, aumentando as desigualdades que marcam tristemente nosso continente e que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas. [...]
64. Por isso, frente a essa forma de globalização, sentimos forte chamado para promover uma globalização diferente, que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos, fazendo da América Latina e do caribe não só o Continente da esperança, mas também o Continente do amor, como propôs S.S. Bento XVI no Discurso Inaugural desta Conferência.
65. Isso nos deveria levar a contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles, estão as comunidades indígenas e afro-americanas que, em muitas ocasiões, não são tratadas com dignidade e igualdade de condições; muitas mulheres são excluídas, em razão de seu sexo, raça, ou situação sócio-econômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir em seus estudos nem de entrar no mercado de trabalho para se desenvolver e constituir uma família; muitos pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra, aqueles que procuram sobreviver na economia informal; meninos e meninas submetidos à prostituição infantil, ligada muitas vezes ao turismo sexual; também as crianças vítimas do aborto. Milhões de pessoas e famílias vivem na miséria e inclusive passam fome. Preocupam-nos também os dependentes das drogas, as pessoas com limitações físicas, os portadores e vítimas de enfermidades graves como a malária, a tuberculose e HIV-AIDS, que sofrem a solidão e se vêem excluídos da convivência familiar e social. Não esquecemos também os sequestrados e os que são vítimas da violência, do terrorismo, de conflitos armados e da insegurança na cidade. Também os anciãos que, além de se sentirem excluídos do sistema produtivo, vêem-se muitas vezes recusados por sua família como pessoas incômodas e inúteis. Sentimos as dores, enfim, da situação desumana em que vive a grande maioria dos presos, que também necessitam de nossa presença solidária e de nossa ajuda fraterna. Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis”.
Uma renovada pastoral social para a promoção humana integral
402. A globalização faz emergir, em nossos povos, novos rostos pobres. Com especial atenção e em continuidade com as Conferências Gerais anteriores, fixamos nossos olhar nos rostos dos novos excluídos: os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxico-dependentes, idosos, meninos e meninas que são vítima da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres mal tratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os trabalhadores das minas. A Igreja, com sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar essas pessoas excluídas nas respectivas esferas.
403. Nessa tarefa e com criatividade pastoral, devem-se elaborar ações concretas que tenham incidência nos Estados para a aprovação de políticas sociais e econômicas que atendam às várias necessidades da população e que conduzam para um desenvolvimento sustentável. Com ajuda de diferentes instâncias e organizações, a Igreja pode fazer permanentemente leitura cristã e aproximação pastoral à realidade de nosso continente, aproveitando o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja. Dessa maneira, terá elementos concretos para exigir dos que têm a responsabilidade de elaborar e aprovar as políticas que afetam nossos povos, que o façam a partir de uma perspectiva ética, solidária e autenticamente humanista. Nesse aspecto, os leigos e as leigas exercem papel fundamental, assumindo tarefas pertinentes na sociedade.