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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
08.10.2014 | 11:53 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Passado o primeiro turno das eleições (com as suas previsibilidades e as suas surpresas; com as paixões que despertam entusiasmo e decepção; com os desdobramentos vislumbráveis), apresentamos aqui neste nosso espaço as análises, elaboradas às vésperas do dia 05/10, por dois importantes sociólogos, sobre aspectos do quadro político de nosso país.

Em seu artigo, Luiz Alberto Gómez de Souza abre o seu voto, mas sem com isso sacrificar a objetividade de uma acurada interpretação do momento que o Brasil vive. Ivo Lesbaupin, por sua vez, adota um viés bem mais crítico em relação à presidenta e ao partido da situação.

Discorrendo mais diretamente acerca do governo Dilma, ambos os textos ampliam, no entanto, o leque. Assim, com a sua mirada, abrangem de algum modo as principais forças (políticas, como também econômicas) em jogo.

Consideramos que as duas análises se completam, vindo ao encontro de nosso propósito de oferecer subsídios que nos ajudem a pensar a nossa realidade, ainda mais no contexto de um processo eleitoral democrático e complexo.

Nesta semana do aniversário da UCPel, unimo-nos a todas as vozes que com sinceridade parabenizam a nossa instituição. Fazendo jus à sua vocação educadora, comunitária e acadêmica, a UCPel vem dando inestimável contribuição a nossa região, estado e país. Que possa seguir frutuosamente em sua missão por muitos e muitos anos!

Boa leitura! Boa reflexão!



Aos que só querem votar em Dilma num possível segundo turno

"Ouço muitos que têm reservas para votar em Dilma no primeiro turno, anunciando que o farão no segundo, se o houver, conscientes do perigo de aventuras pela frente, como indiquei no princípio. Mas quero trazer alguns dados concretos", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.

Eis o artigo.

Escrevo pensando em companheiros de caminhada em movimentos sociais e pastorais, com dificuldade ou bloqueios para votar em Dilma em 5 de outubro. Marilena Chauí, num encontro de Dilma com o mundo da cultura no Rio de Janeiro em 15 de setembro, colocou muito claramente o dilema: entre a aventura e um processo em marcha. Já vivemos tempos imprevisíveis e arriscados de aventuras. Depois de um mandato de Juscelino Kubitsheck, que vemos agora como um momento importante de construção da nação, foi eleito, por um moralismo udenista estreito, um histriônico de vassoura em punho, que não resistiu mais de seis meses no poder. Antes, os ataques raivosos de Carlos Lacerda denunciavam um “mar de lama”, levando Vargas ao suicídio, onde havia basicamente tráfico de influências da guarda pessoal do presidente. Na redemocratização, um caçador de marajás foi ele mesmo caçado – ou melhor, cassado – logo adiante.

Agora temos um candidato que está, de fato, sendo plebiscitado por seu passado como governador, em terceiro lugar em seu próprio estado, Minas Gerais. E outra candidata, pregando uma “nova política”, ou lançando uma crítica irresponsável à política em geral, descobre-se na verdade com um perfil da velha política, querendo vencer a qualquer custo, depois de leiloar seu nome por várias legendas, conquistando afinal um posto de vice para, num golpe de sorte (!), à custa da morte de seu companheiro de chapa, chegar ao almejado desejo de se candidatar outra vez à presidência. Puro voluntarismo personalista. Seu programa é vago e mutante. Bastaram dois twitters de um evangélico tonitruante, o pastor Malafaia, para mudar sua posição sobre a união gay.

Sua equipe econômica, conhecidamente neoliberal, indica-lhe a autonomia do Banco Central, entregue então ao capital especulativo financeiro, eliminando a regulação macroeconômica por parte do Estado. Recebeu acenos do presidente da Fiesp e do diretor do Banco Itaú. Sua postura ecológica foi se esfumando, com acenos ao agronegócio. Quais suas diretrizes concretas de governo, além do vago enunciado de boas intenções? Qualquer uma, ao sabor de futuras alianças de alto preço, de quem se elegeria sem apoios partidários prévios. Governaria “com os melhores”, eis uma declaração acaciana que nada diz. Um socialista histórico, L. A. Moniz Bandeira, vem denunciando sua negação dos princípios do PSB que ele ajudou a criar com João Mangabeira, enxovalhando sua história, agora uma mera legenda provisória de passagem da candidata.

Do outro lado, com Dilma, há um processo que vem de três mandatos, com resultados sociais concretos, no Bolsa Família, Luz para todos, Minha Casa minha Vida, Mais Médicos na área da saúde (atendendo cinquenta milhões de cidadãos), Prouni e Pronatec em educação, Pronaf para a agricultura familiar. A recente Política Nacional de Participação Social vai legitimando os conselhos populares, que já estão existindo, criando pontes de diálogo entre sociedade e Estado. Já antes seu partido lançara o orçamento participativo, onde uma democracia participativa se articulava com a democracia representativa saída das eleições.

Aparecem, é certo, sinais de corrupção. A novidade é que eles são desocultados com liberdade pelos órgãos do próprio governo. Os historicamente mal informados querem passar a ideia de que somente agora há corrupção, o que na verdade vem de longe. A diferença é que agora os corruptos são indiciados e membros do próprio governo estão indo para a cadeia. Fala-se de mensalão petista, querendo esquecer o mensalão mineiro anterior e a privataria tucana, - denunciada com dados insofismáveis por Amaury Júnior -, que sucateou empresas estatais importantes, como a Vale do Rio Doce. Há o risco de que o processo privatista seria retomado num mandato de Marina, alcançando a Petrobrás, uma das mais exitosas empresas brasileiras a nível mundial, vítima de ataques que parecem querer abrir caminho para sua possível privatização. Marina põe de lado o grande potencial do pré-sal, em nome de uma energia eólica de longo tempo de maturação.

Caminhou-se pouco em questões da posse da terra e na política frente aos indígenas. Os problemas do meio ambiente deveriam merecer, no futuro, maior atenção. Há rumos a rever e caminhos a avançar. Nesse sentido, temos um bom exemplo: o MST é crítico implacável da política agrícola do governo da presidenta Dilma, mas João Pedro Stédile  -  sem deixar de lado a crítica  -  está entre seus apoiadores.

Há que levar a redirecionamentos? Certamente, mas a partir de parâmetros reais e não de vagas intenções. Aliás, os dois candidatos principais da oposição não conseguem opor-se às políticas sociais em curso, apenas querendo fazer reparos aqui e ali, ou propõem ampliá-las, muitas vezes irresponsavelmente. As principais mudanças de rumo num próximo governo Dilma estão na política econômica, para impedir uma volta à ortodoxia conservadora. E evitar, na política externa, um alinhamento obediente ao poder hegemônico dos Estados Unidos.

Um processo muda ou se inflexiona de dentro e não a partir de propostas vagas e gelatinosas. Porém o possível do real nem sempre coincide com o desejável das boas intenções. O tempo histórico é longo e lento e por isso há que estar atento às grandes tendências. Assim, temos um índice de desemprego baixo, a manter e aperfeiçoar (5% na PME do IBGE em agosto de 2014,o menor nesse mês em 12 anos). Tivemos uma saída do nível da pobreza de 36 milhões de brasileiros, desde o governo Lula. As desigualdades sociais ainda são grandes, mas com lentas melhoras, o que um erro nos últimos resultados do órgão oficial do IBGE, agora corrigido, não mostrava. Imaginemos se o dado equivocado do Gini indicasse, ao contrário, um índice menor; haveria forte grita denunciando manipulação de dados.

Por tudo isto dou meu apoio firme à eleição de Dilma Rousseff já no primeiro turno, ao lado de Boaventura Sousa Santos, Eric Nepomuceno, Leonardo Boff ou Frei Betto, que trouxeram dados significativos para sua escolha. Vários dos que apoiamos, queremos revisão de alguns rumos. Um novo mandato não é apenas a continuação do anterior. Mas isso se faz dentro de um processo, a partir dos ganhos obtidos até o momento.

Para aqueles insatisfeitos, desiludidos ou contrários, quais as propostas concretas que os candidatos de oposição apresentam, que não sejam intenções voláteis? Há aqui e ali uma má vontade que tem muito de rejeição de classe, de preconceitos ocultos ou de medos diante de um movimento popular.

Ouço muitos que têm reservas para votar em Dilma no primeiro turno, anunciando que o farão no segundo, se o houver, conscientes do perigo de aventuras pela frente, como indiquei no princípio.

Mas quero trazer alguns dados concretos. Um segundo turno poderá ser difícil, se votos substanciais de Aécio se redirecionarem para Marina. Nas últimas pesquisas, há uma igualdade técnica entre as duas candidatas nesse segundo turno, dentro de uma margem de erro. Claro, os apoios se dividirão e temos também os votos dos candidatos pequenos, que em boa parte poderiam confluir para a presidenta.

Mas atenção, não caiamos no imponderável. Lembro que as pesquisas de opinião incluem, dentro do conjunto, as porcentagens dos votos em branco ou nulos e o caso dos indiferentes naquele momento. Já na apuração, só teremos computados os votos válidos. Nesse caso, os 40%  da última pesquisa para Dilma, no Vox Populi de 23 de setembro (38% no Ibope), passariam a quase 48,78%, nessa contagem definitiva. Somados a uma boa parte dos indecisos (no momento 12% no Vox Populi e 5% no Ibope) e os votos em outros candidatos menores (no momento somam 3%), nos aproximaríamos de uma maioria que poderia resolver-se já no primeiro turno.

Olhando as últimas pesquisas, Marina alcançou um teto e vem com uma curva com tendência descendente (Vox Populi: 28% em 10 de setembro e 22% em 23 do mês). Aécio patina bem abaixo. A curva de Dilma é ascendente (Vox Populi: 36% em 10 de setembro; 40%, como indicado, dia 23). Norte e nordeste têm altas porcentagens para ela, inclusive no estado de Marina. O mesmo na Minas Gerais de Aécio. Uma leve inflexão em São Paulo ou no sul, bastaria para levar Dilma a já ganhar no primeiro turno.

E tudo depende, em parte, de que os que não pensam ainda em votar nela, ou se reservam para um incerto segundo turno, reformulem sua opção já em 5 de outubro, em nome de um processo real, longe de miragens aventureiras, com resultados imprevisíveis e arriscados.

Fonte: Instituto Humanitas (IHU), Unisinos, 29 de setembro de 2014



Uma análise crítica do governo Dilma: a quem este governo atende em primeiro lugar? Entrevista especial com Ivo Lesbaupin

“O governo atual tem implementado outras políticas durante o seu mandato — algumas das quais são estruturantes — e é possível prever que, se houver um segundo mandato, elas serão mantidas, já que não houve nenhuma avaliação crítica de sua parte”, adverte o sociólogo.

Uma semana antes das eleições presidenciais que indicarão os rumos do país nos próximos quatro anos, o sociólogo Ivo Lesbaupin faz um balanço dos últimos 12 anos de gestão petista à frente da Presidência da República, e é enfático: “É preciso superar a concepção neoliberal, centrada no capital financeiro (bancos, investidores financeiros), assim como a concepção neodesenvolvimentista, que financia com recursos públicos grandes empresas privadas. Interromper o processo de privatização de serviços públicos e de nossas riquezas naturais (entre as quais o petróleo)”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Ivo Lesbaupin enfatiza que os avanços da última década foram pontuais na área social, com a redução da extrema pobreza, redução do desemprego, aumento da renda dos trabalhadores e maior acesso a bens de consumo. Contudo, a lista de críticas do sociólogo às políticas adotadas supera as benfeitorias dos governos Lula e Dilma e as compara ao que ele denomina de “uma política de direita, isto é, políticas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos, políticas prejudiciais à grande maioria do povo brasileiro e que comprometem o futuro do país”. E acrescenta: “O problema é saber por que deram continuidade a várias políticas daquele governo (FHC)”.

Lesbaupin pontua, entre suas críticas, a não auditoria da dívida pública, que é “uma exigência da Constituição de 1988”, e que garante que “40% do orçamento público continuam a ir para os ricos. (...) A dívida externa chegou, em dezembro de 2013, a 485 bilhões de dólares, e a dívida interna, a 2 trilhões e 900 bilhões de reais. Em suma, o destino de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país — que são aqueles que recebem os juros da dívida —, além dos credores externos. Enquanto isso, apenas 5% vão para a saúde e 4% para a educação”.

A “aliança do governo com o agronegócio” também desencadeou uma série de consequências, como o esquecimento da reforma agrária, políticas de incentivo aos transgênicos, que “são plantados livremente no Brasil”, o uso crescente de agrotóxicos nas lavouras brasileiras, e “um processo de abandono, descaso e destruição dos povos indígenas”, porque “o governo ressuscitou a política indigenista da ditadura, segundo a qual ‘o índio não pode atrapalhar o progresso do país’ ”.

Eleito também por conta de suas críticas às políticas privatizantes do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o governo atual “retomou com força as privatizações. (...) O governo FHC quebrou o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar dos protestos dos petroleiros. O governo Dilma realizou — contra a oposição de todos os movimentos sociais — o primeiro leilão de um campo do pré-sal (Libra), cujas reservas são imensas”, lamenta.

Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro. É doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais O desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que avaliação faz dos 12 anos do PT no governo e, particularmente, do governo Dilma? Houve avanços?

Ivo Lesbaupin – O Brasil avançou nos últimos anos. Reduziu fortemente o desemprego, promoveu transferência de renda para os setores mais pobres da população, valorizou o salário-mínimo acima da inflação.

Os dados mostram que, nos últimos dez anos, cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza e os trabalhadores passaram a ter uma renda melhor, com acesso a bens de consumo aos quais não tinham antes. Este foi um salto significativo na nossa realidade social. O Brasil foi um dos países onde houve maior redução da pobreza neste período.

Houve avanços também na área da agricultura familiar, como a expansão do crédito rural e programas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que vêm favorecendo pequenos agricultores no campo.

Além destes, poderíamos citar a revalorização do Estado, seriamente atacado durante o governo FHC; a política externa — este ponto é muito importante — se tornou mais independente, especialmente na relação com governos “progressistas”, os quais os EUA queriam isolar. O combate ao trabalho escravo se tornou sistemático.

Há que apontar a vitória do Marco Civil da Internet e do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, ocorridas este ano.

Cabe ressaltar a instalação da Comissão da Verdade pelo governo Dilma. Mesmo considerando as limitações, como o curto tempo para o trabalho — dois anos —, a iniciativa veio preencher uma lacuna de quase 30 anos. A tentativa de relegitimar a ditadura que vinha ocorrendo foi por terra, em boa parte graças ao desencadeamento deste processo.

Poderíamos citar uma série de outras boas políticas desenvolvidas por este governo. Mas isto é apenas uma pequena parte do que ele está fazendo.

Digo com tranquilidade que os governos Lula e Dilma representaram um avanço em relação ao governo FHC, especialmente na área social (redução do desemprego, renda para os setores populares, salário-mínimo valorizado). O problema, como veremos adiante, é saber por que deram continuidade a várias políticas daquele governo. [1]

IHU On-Line - Quais são as críticas que faz ao atual governo?

Ivo Lesbaupin - O governo atual tem implementado outras políticas durante o seu mandato — algumas das quais são estruturantes — e é possível prever que, se houver um segundo mandato, elas serão mantidas, já que não houve nenhuma avaliação crítica de sua parte.

 Há um processo de abandono, descaso e destruição dos povos indígenas. [2] O governo ressuscitou a política indigenista da ditadura, segundo a qual “o índio não pode atrapalhar o progresso do país” (“progresso”, leia-se: agronegócio, mineradoras, hidrelétricas).

 Não houve Auditoria da Dívida Pública, uma exigência da Constituição de 1988 (o que significa que 40% do orçamento público continua a ir para os ricos). Nesta campanha eleitoral, esta possibilidade não foi nem mencionada.

 As privatizações foram retomadas com força.

 Não houve reforma agrária nem no governo Lula nem no governo Dilma, por causa da aliança com o agronegócio.

 Os transgênicos são plantados livremente no Brasil (apesar de cientistas de todo o mundo já terem provado que são prejudiciais à saúde). [3]

 Os agrotóxicos são vendidos e usados amplamente (e é sabido que eles prejudicam lenta e inexoravelmente a saúde da população, são um “veneno na nossa mesa”). [4] O Brasil é o segundo maior “consumidor” de agrotóxicos no mundo.

 Estão sendo construídas e estão projetadas dezenas de hidrelétricas, especialmente na Amazônia, atingindo os direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos que habitam nestas localidades.

 O agronegócio tem se expandido, com apoio do governo.

 As grandes empreiteiras têm um peso determinante na decisão sobre as mais importantes obras públicas do país.

 O sistema de energia elétrica é estruturado de tal forma que permite lucros enormes a empresas privadas e o povo é quem paga a conta. [5]

 Há uma profunda desconsideração com a questão ambiental, em razão do atendimento aos interesses do agronegócio, das empreiteiras e das mineradoras.

 Os bancos continuam tendo lucros recordes, graças à política de juros altos, os juros reais mais altos do mundo. [6]

 O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) oferece recursos públicos para apoiar grandes empresas privadas. E os contribuintes não sabem quem são, quanto recebem, por que foram escolhidas (o grau de transparência é baixíssimo). E também não sabemos o que aconteceu com o “S” do BNDES.

 O governo manteve um item da legislação previdenciária introduzido por FHC que prejudica seriamente os trabalhadores: o “fator previdenciário”. Os movimentos de trabalhadores lutam desde então para derrubar este “fator”. Em doze anos, nem Lula nem Dilma cederam às pressões dos trabalhadores: preferiram ceder ao capital privado.

Todas estas são políticas de direita, isto é, políticas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos, políticas prejudiciais à grande maioria do povo brasileiro e que comprometem o futuro do país.

IHU On-Line - Quem são os grandes beneficiários das políticas atuais? A quem este governo atende em primeiro lugar?

Ivo Lesbaupin - Vejamos os três principais:
O capital financeiro (bancos e investidores financeiros). Mais de 40% do orçamento geral da União se destina ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus juros. A dívida externa chegou, em dezembro de 2013, a 485 bilhões de dólares, e a dívida interna, a 2 trilhões e 900 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida). Em suma, o destino de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país — que são aqueles que recebem os juros da dívida —, além dos credores externos. Enquanto isso, apenas 5% vão para a saúde e 4% para a educação.

Orçamento Geral da União (executado em 2013)

Total: R$ 1,783 trilhão
 
As grandes empreiteiras. Há um outro setor privilegiado pelo governo: são as grandes empreiteiras (Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez). Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas (Belo Monte é o exemplo mais notório). Mesmo quando não cumprem as condicionalidades às quais se comprometeram, continuam a receber recursos do BNDES para suas obras. Não sem razão, estão entre os principais contribuintes para as campanhas eleitorais.

O agronegócio. Para garantir a exportação de alguns produtos primários (elemento central de sua política econômica), o governo mantém uma aliança com o agronegócio, razão pela qual não houve reforma agrária no país. E não há previsão, num futuro governo de continuidade, de que vá haver. Estamos vivendo um processo de reprimarização da economia do país (desde o governo FHC, a industrialização deixou de ser prioridade), e o agronegócio é apresentado tanto pelo governo quanto pela grande mídia como o grande fator de desenvolvimento do país.

IHU On-Line – Como avalia as principais políticas contra a exclusão social?

Ivo Lesbaupin – Elas existem e tiveram efeitos significativos, como disse logo no início, e todos reconhecem o seu valor (até a oposição). Mas não ocupam o primeiro lugar no desembolso dos recursos públicos. Basta comparar o quanto vai para os juros da dívida (os ricos) e o quanto vai para as principais políticas sociais, saúde e educação (não sem razão, foram estas, além do transporte, as políticas que mais foram cobradas nas manifestações de junho de 2013).

Vejamos, porém, outros elementos também importantes.

Privatizações
O governo atual foi eleito em 2010 como a candidatura antiprivatista (oposta ao projeto neoliberal do PSDB). No entanto, a candidata eleita retomou com força as privatizações, passou a privatizar portos, aeroportos, rodovias, e manteve a práticas das PPPs (parcerias público-privadas, outro nome para a privatização). Tem havido uma dura luta nas universidades públicas para manter os hospitais universitários sob gestão e controle públicos, contra um esforço do governo em passá-los para a gestão privada.

O governo FHC quebrou o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar dos protestos dos petroleiros. O governo Dilma realizou (contra a oposição de todos os movimentos sociais) o primeiro leilão de um campo do pré-sal (Libra), cujas reservas são imensas. O petróleo é nosso? Não, parte dele será das multinacionais estrangeiras que participam do consórcio que venceu este leilão. Note-se que, para garantir o leilão, o governo utilizou os mesmos métodos dos tempos de FHC (casos da Vale e da Telebrás): tropas militares e polícia, de um lado, e um batalhão de advogados, de outro, para derrubar liminares.

Desigualdade social
Muitos têm exaltado a redução da desigualdade social desde o início do governo Lula até hoje. O índice de Gini, que mede a desigualdade, tem melhorado ano a ano (embora, recentemente, a melhora tenha sido pequena).

O índice de Gini se baseia nos dados da PNAD, que capta a massa de rendimentos do trabalho e os pagamentos de benefícios monetários da política social. No entanto, uma outra parte da renda interna (juros, lucros, dividendos) não é captada por esta pesquisa. [7] É exatamente nesta parte que estão, por exemplo, os juros da dívida, recebida pelos mais ricos. Entre a camada mais rica da sociedade (entre 1 e 2%) e os mais pobres, a distância aumentou: a renda dos pobres melhorou, indubitavelmente, assim como o salário-mínimo, mas a renda dos mais ricos aumentou muito mais. [8]

Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo FHC acentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema concentra renda. Nele, os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque o peso maior está no imposto sobre o consumo. O governo Lula introduziu pequenas melhorias neste sistema, mas sem mexer na estrutura regressiva. Os governos Lula-Dilma não fizeram reforma do sistema tributário para acabar com esta estrutura reprodutora de desigualdade.

Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma reforma tributária, para tornar o sistema progressivo (os que recebem mais, pagam mais; o peso maior fica sobre a renda, não sobre o consumo).

Uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos para os ricos: seria a realização de uma auditoria da dívida pública. Ela provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto diminuiria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos depois, quando o Equador fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há indicações bem fundadas de que boa parte desta dívida é indevida. Só uma auditoria poderia verificar e comprovar.

Esta é uma exigência da Constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT puseram em prática. Com isso, favorecem os poucos privilegiados que ganham fortunas com a manutenção do status quo. E desfavorecem a imensa maioria que sofre as consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: esta é a razão da falta de recursos suficientes para a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, para os serviços públicos em geral.

IHU On-Line - O que seria uma alternativa à política que está sendo desenvolvida no Brasil?

Ivo Lesbaupin - Já adiantei alguns aspectos desta questão nas respostas anteriores. [9]

Rever o modelo econômico. É preciso superar a concepção neoliberal, centrada no capital financeiro (bancos, investidores financeiros), assim como a concepção neodesenvolvimentista, que financia com recursos públicos grandes empresas privadas. Interromper o processo de privatização de serviços públicos e de nossas riquezas naturais (entre as quais o petróleo).

Se quisermos evitar o desastre ambiental que se anuncia, nós temos de construir uma economia baseada em nova concepção de desenvolvimento, que atenda às necessidades da população, respeitando os limites da natureza. [10] É preciso urgentemente mudar a matriz energética, para as energias renováveis, em particular a energia solar (o que deve ser uma iniciativa pública, não do capital privado). Nós poderíamos nos tornar o primeiro país do mundo em tecnologia e utilização da energia solar: depende unicamente de vontade política.

Temos de produzir aquilo de que precisamos e não depredar os bens naturais, tão fundamentais à nossa existência. Todos os alimentos de que necessitamos podem ser produzidos pela agroecologia (que é praticada em vários lugares do país, mas não é uma política nacional) e termos alimentos saudáveis, sem transgênicos, sem agrotóxicos.

Precisamos de uma política de transporte público condizente com a sustentabilidade (baseada principalmente em trilhos: trens, metrô, etc), não centrada no automóvel; que garanta meios de locomoção dignos para atender às necessidades da maioria da sociedade.

As demais políticas, vou simplesmente enumerá-las, por limitação de espaço:

 Defender e garantir os direitos dos povos indígenas;
 Realizar uma Auditoria da Dívida Pública;
 Promover uma Reforma do Sistema Político;
 Realizar uma Reforma Tributária, para que o sistema se torne progressivo;
 Estabelecer uma Taxa sobre Transações Financeiras;
 Realizar a Reforma Agrária;
 Promover a Reforma Urbana;
 Democratizar os meios de comunicação;
 Democratizar o poder judiciário;
 Interromper os megaprojetos (hidrelétricas, transposição do rio São Francisco);
 Implementar o controle social da gestão pública (inclusive da política econômica).

IHU On-Line - Deseja acrescentar alguma coisa?

Ivo Lesbaupin - Eu faria um último comentário: é legítimo que, na disputa eleitoral, se critiquem outros candidatos por representarem setores, defenderem políticas de direita ou fazerem alianças à direita. Evidentemente, é preciso provar e não apenas acusar. [11] No entanto, se examinarmos o governo atual, veremos que, a despeito de se reconhecerem avanços em muitos setores, ele tem sérias alianças à direita e suas principais políticas são aquelas que atendem aos interesses dos grandes grupos econômicos.

NOTAS

[1] A primeira reforma estrutural feita pelo governo Lula foi a reforma da previdência do setor público, que o governo FHC tinha tentado fazer, mas não tinha conseguido, principalmente por causa da oposição do PT. No governo, o PT a fez, para atender aos interesses do capital privado.
[2] "Indígenas vivem em ‘Faixa de Gaza brasileira’, diz Eduardo Viveiros de Castro". "Por que os índios lideram o ranking dos suicídios no Brasil?" Blog de Bruno Paes Manso. O Estado de São Paulo, 07/07/2014.
[3]Cientistas pedem a suspensão dos transgênicos em todo o mundo”. Carta de 815 cientistas de todo o mundo chama a atenção dos governos para os riscos dos transgênicos: “Nós, cientistas abaixo-assinados, pedimos a suspensão imediata de todas as licenças ambientais para cultivos transgênicos e produtos derivados dos mesmos, tanto comercialmente como em testes em campo aberto, durante ao menos cinco anos; (...)”. As razões são os perigos que os transgênicos representam para a biodiversidade, a segurança alimentar, a saúde humana e animal; além disso, eles intensificam o monopólio corporativo, exacerbam as desigualdades e impedem a mudança para uma agricultura sustentável que garanta a segurança alimentar e a saúde em todo o mundo (12/06/2014).
[4] Além do excelente documentário de Sílvio Tendler, “O veneno está na mesa”, cabe citar o livro que Marie-Monique Robin publicou analisando a consequência do uso de pesticidas, fungicidas, inseticidas (comumente chamados de agrotóxicos) para os agricultores, em primeiro lugar, e para todos os que se utilizam dos alimentos produzidos com o uso destes produtos químicos, intitulado “Nosso veneno cotidiano” (“Notre poison quotidien”, Paris/Issy les Molineaux, Éd. La Découverte/Arte Éditions, 2011).
[5]A retórica do desenvolvimento e o fantasma do apagão num emaranhado jogo de disputa política”. Entrevista especial com Célio Bermann.
[6] Neste governo, os juros só baixaram durante um ano, depois voltaram a subir.
[7] Sobre este tema, ver Guilherme Delgado, “Desigualdade social no Brasil”, no livro “Os Anos Lula. Contribuições para um balanço crítico, 2003-2010” (Rio de Janeiro, Garamond, 2010), p. 413-418.
[8] A combinação de superávit primário (...) com a política monetária de juros altos incidentes sobre a dívida pública resulta “num dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres para os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo. (...) Na verdade, o mais poderoso mecanismo de concentração de renda na economia é essa combinação de política fiscal e monetária perversa, onde o Estado atua como um redistribuidor de renda e de riqueza a favor dos poderosos” (Assis, 2005: 89). (trecho do meu artigo “Risco de volta da direita?”, de novembro/2013).
[9] Existem propostas para o Brasil já elaboradas que foram divulgadas nos últimos meses: por exemplo, a “Agenda Brasil Sustentável” apresenta sete eixos estratégicos, preparados por 60 organizações da sociedade civil; mais de 60 movimentos sociais e entidades apresentaram recentemente uma plataforma política para debate no processo eleitoral. Várias das políticas e iniciativas que elenquei aqui constam destas propostas.
[10] Ver: Ivo Lesbaupin, “Por novas concepções de desenvolvimento”. In: ABONG (org.). Por um outro desenvolvimento. São Paulo, Maxprint Editora e Gráfica, 2012, p. 37-48.
[11] Há candidatos que se apresentam claramente de direita, não precisa demonstrar.

Fonte: Instituto Humanitas (IHU), Unisinos, 29 de setembro de 2014
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