A visita do Papa Francisco aos países sul-americanos neste mês, já caracteriza-se como um marco em seu pontificado. Além disso, a viagem a Cuba e aos Estados Unidos, o Sínodo Ordinário sobre a família, a visita à África negra, abertura do Jubileu da Misericórdia e sua primeira encíclica são eventos significativos na trajetória de Francisco e de sua contribuição tanto na esfera eclesial como social.
Em 24 de maio de 2015, o Papa Francisco lançou a sua esperada encíclica sobre o meio ambiente, com o título “LAUDATO SI”, “Louvado sejas”. Nesta encíclica, o Papa Francisco dirige-se a todos os habitantes do planeta. Volta-se não só ao mundo cristão, mas também aos adeptos de outras religiões e aos que não professam religião alguma, mas se mostram abertos a uma mensagem em defesa do ambiente e dos pobres e fragilizados.
Oferecemos então, o artigo “Cuidemos de nossa Casa Comum” escrito por Pe. Martinho Lenz, sj, atual Capelão Universitário, que apresenta de forma sintética e organizada os eixos da encíclica; a sequência dos temas; as mudanças profundas e os sinais de esperança apontados por Francisco.
Citamos também, 20 frases marcantes da encíclica, escrita a próprio punho pelo Papa.
Por fim, apresentamos uma entrevista com Alberto Melloni, professor de História do Cristianismo na Universidade de Modena-Reggio Emilia e da Cátedra Unesco sobre Pluralismo Religioso e Paz da Universidade de Bologna, disponibilizada pelo portal IHU.
Desejamos que os artigos sejam um convite à reflexão.
Boa leitura.
A carta do Papa sobre Ecologia:
Cuidemos de nossa Casa Comum
Pe. Martinho Lenz, SJ
O planeta, nossa casa comum, está ameaçado. Sofre os efeitos da degradação ambiental e das mudanças climáticas. Cresce o número dos que são atingidos por tragédias da natureza, pela escassez de alimentos e de água potável e por guerras e conflitos. Alguns conflitos na atualidade tem origem na disputa por recursos. Um exemplo histórico é o conflito entre israelenses e palestinos (conflito pela terra, pela água e outros bens). Os refugiados e migrantes forçados somam hoje 48 milhões, segundo dados da ONU.
Em sua recente encíclica sobre a Ecologia, “LAUDATO SI’ ” (“Louvado Sejas” – daqui em diante: LS), o Papa Francisco critica o atual modelo de desenvolvimento por ser socialmente injusto e ambientalmente insustentável, analisa as causas dos desastres sociais e ambientais e aponta caminhos, na esperança de que seus coirmãos no mundo mudem suas atitudes e se unam na defesa de nossa casa comum: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (LS n. 13).
Uma nova encíclica
Com data de 24 de maio de 2015, o Papa Francisco lançou a sua esperada encíclica sobre o meio ambiente, com o título “LAUDATO SI”, “Louvado sejas”. “Louvado sejas, meu Senhor” são as primeiras palavras do Cântico das Criaturas, considerado o primeiro texto ecológico da história, composto por S. Francisco de Assis, pouco antes de sua morte em 1226. Assim como o “Poverello” de Assis, o Papa Francisco se refere no texto “ao irmão sol, à irmã lua e à irmã Terra”, para pedir medidas contra as mudanças climáticas, contra o desmatamento, o desperdício e a economia do descartável, mas também contra a fome, a desigualdade e a pobreza. Para a encíclica, as questões da vida humana digna e a defesa do meio ambiente são inseparáveis.
Nesta encíclica, a primeira escrita só por Francisco (a Lumen Fidei foi escrita a quatro mãos, com Bento XVI), o Santo Padre deseja unir a humanidade por um desenvolvimento sustentável e integral. O texto é fruto de muitas consultas a cientistas e teólogos, mas foi escrito de próprio punho pelo Papa, em espanhol – como nos informa Mons. Marcelo Sorondo, presidente da Pontifícia Academia de Ciências. O Papa agradece aos que trabalham para garantir a proteção da casa que partilhamos. Apela para que se renove o diálogo sobre como estamos construindo o futuro do planeta. Quais as causas da frustração de muitos esforços salvar o planeta? Francisco entende que é a recusa dos poderosos em fazer sua parte, abrindo mão de interesses privados, assim como a indiferença ou ainda a confiança cega em soluções técnicas. Por isso propõe uma linha de diálogo e maturação humana. Pergunta: que mundo queremos deixar para as novas gerações? Para mudar a cultura do descartável e o estilo de vida insustentável que levamos, o Papa exorta a uma conversão ecológica, que requer um caminho espiritual. E lança uma mensagem de esperança: somos capazes de mudar.
Com linguagem direta, bem ao seu estilo, o Papa Francisco escreveu um texto bem articulado, denso, amadurecido e de agradável leitura. No texto oficial italiano tem 191 páginas, divididas em seis capítulos e 246 parágrafos numerados (nas citações indico o respectivo parágrafo). Usa uma linguagem moderada, mas o conteúdo é radical. Denuncia a insensibilidade dos que destroem riquezas naturais em proveito pessoal, poluem o ambiente e depredam a natureza, sem a menor consideração pelo bem comum e pelo sofrimento causado a outros, sobretudo a multidões de pobres, que são a maioria no planeta, diz o Papa.
Eixos da encíclica
O coração da Laudato Si é o conceito de ecologia integral, como um novo paradigma e um caminho espiritual a percorrer. O conceito é novo, pois o que prevalecia até agora era uma visão antropocêntrica, divulgada pelo ambientalismo. Tudo era visto em função do homem, como se as outras criaturas não tivessem uma valor em si. “Cada criatura tem um valor e uma função, nenhuma é supérflua”, afirma o Papa Francisco (LS n. 84). Isso não tira a preeminência da pessoa humana no conjunto da criação, em razão de sua consciência reflexa, inteligência superior e livre vontade. Os Papas anteriores haviam falado da defesa do meio ambiente e da terra, mas não dentro desta nova perspectiva sistêmica.
Ecologia integral significa que tudo está interligado, tudo está conectado, formando um grande todo. Significa que os problemas do meio ambiente, o natural e o social, devem ser tratados levando em conta as cadeias ecológicas e a interdependência dos diversos fatores. Implica também um caminho espiritual, de contemplação do mundo com o olhar da Trindade, cuja unidade de natureza na diversidade das pessoas é modelo de todo universo. O Papa vê o mundo não como fruto “do acaso e da necessidade”, mas como resultado de um ato Criador, em constante evolução e transformação. Vê a Deus como um Pai amoroso, que cuida de cada uma das criaturas e que nos faz irmãs e irmãos universais.
Nesta encíclica, o Papa Francisco dirige-se a todos os habitantes do planeta. Volta-se não só ao mundo cristão, mas também aos adeptos de outras religiões e aos que não professam religião alguma, mas se mostram abertos a uma mensagem em defesa do ambiente e dos pobres e fragilizados. Valoriza o ecumenismo, citando extensamente um texto do Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu. Um texto citado é esse: “É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta” (LS n. 8).
Sequência dos temas
A encíclica inicia fazendo breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica, “com o objetivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido”. A partir desta panorâmica, o Papa retoma algumas argumentações que derivam da tradição bíblica judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procura analisar as raízes humanas da crise atual, identificando não apenas os seus sintomas, mas também as causas. Francisco identifica como causa mais profunda da crise a globalização do paradigma tecnocrático, homogêneo e unidimensional. Dela resulta a manipulação e a crença num crescimento sem limites e na disponibilidade infinita de bens no planeta. O resultado foi um excesso de antropocentrismo, que coloca no centro os interesses contingentes de grupos ou países e que não se preocupa em medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões. Pondera o Papa: a técnica separada da ética dificilmente será capaz de limitar seu poder de intervenção na natureza. A solução da crise sócio-ambiental virá de uma ecologia integral, que inclui os bens da natureza e a sociedade humana que nela habita. Não bastam intervenções técnicas, mas é preciso considerar a complexidade dos problemas locais e obter a participação ativa dos habitantes.
A ecologia humana integral é inseparável da noção de bem comum, o bem de todos os habitantes do planeta, que engloba também as gerações futuras, o que vamos deixar para nossos filhos e netos. Há necessidade de uma nova cultura e novos hábitos de vida que superem o individualismo e a obsessão consumista em que vivemos, uma reeducação respeitosa dos limites do crescimento e do bem comum. Isto exige uma profunda conversão ecológica. Escreve o Papa: “Convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã” (LS n. 15). Todo texto é visto em continuidade da tradição do ensino social da Igreja e das grandes encíclicas sociais dos Papas (a presente é a 11ª).
Mudanças profundas
“Louvado sejas” é uma encíclica eminentemente “política” – não de política partidária, mas da política do bem comum. Advoga mudanças profundas; pede nada mais nada menos que os governos abandonem o modelo tecnocrático, incompatível com uma sociedade harmoniosa e justa e reencontrem um olhar respeitoso sobre a criação e em relação às populações, sobretudo os mais pobres. Digam não à tecnocracia, e sim aos benefícios da tecno-ciência, que é coisa bem diferente, respeitadora da natureza, dos ecossistemas e seus limites. Busquem reverter o domínio da economia financeira para dar mais lugar à economia real, sustentável e com distribuição justa da renda, promovendo uma economia em harmonia com a ecologia humana e a criação.
A encíclica pede que a comunidade internacional assuma o conceito e a prática efetiva de desenvolvimento sustentável, tendo consciência de quanto as mudanças climáticas e os desastres relacionados afetam mais cruelmente as populações pobres e desprotegidas. Pede ainda um compromisso com a sustentabilidade, com a moderação no consumo e, quando necessário, de “decrescimento” (não “mais do mesmo”, mas melhor qualidade de vida, em harmonia com a natureza). Para viabilizar a tomada de decisões globais, o Papa propõe a criação de uma autoridade internacional, com um governo supranacional.
Sinais de esperança
O Papa Francisco expressa repetidamente a esperança de que nem tudo está perdido e refere-se a mudanças que são sinais de esperança num futuro sustentável e mais justo.
“Em alguns países, - escreve o Papa - há exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com obras de saneamento ambiental, projetos de edifícios de grande valor estético, progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas ações não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo” (LS, n. 58).
Há sinais de esperança. Papa Francisco tem confiança na sabedoria que vem do alto. Confia na capacidade dos homens e mulheres de entender a necessidade dessa “mudança epocal” e a coragem de agir de acordo. Ou mudamos, e drasticamente, ou corremos risco de um cataclisma universal. Como em outras encíclicas, esta também termina com duas orações, de grande beleza e profundidade mística, sobre o tema da ecologia: uma, para os que acreditam em um Deus criador; outra aos que creem em Jesus Cristo. Concluímos este artigo com a oração para todos os que creem em Deus, intitulada de “Oração pela nossa terra”:
“Deus Onipotente, que estais presente em todo o universo, e na mais pequenina das vossas criaturas, Vós que envolveis com a vossa ternura tudo o que existe, derramai em nós a força do vosso amor, para cuidarmos da vida e da beleza. Inundai-nos de paz, para que vivamos como irmãos e irmãs, sem prejudicar ninguém. Ó Deus dos pobres, ajudai-nos a resgatar os abandonados e esquecidos desta terra, que valem tanto aos vossos olhos. Curai a nossa vida, para que protejamos o mundo e não o depredemos, para que semeemos beleza e não poluição nem destruição. Tocai os corações daqueles que buscam apenas benefícios à custa dos pobres e da terra. Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas no nosso caminho para a vossa luz infinita. Obrigado porque estais conosco todos os dias. Sustentai-nos, por favor, na nossa luta pela justiça, o amor e a paz. Assim seja!”.
Viagem, Sínodo, Jubileu: em três meses, três etapas fundamentais do pontificado. Entrevista com Alberto Melloni
"De setembro a dezembro: em três meses, Francisco vai jogar os jogos fundamentais do seu pontificado." Da viagem a Cuba e aos Estados Unidos, ao Sínodo Ordinário sobre a família, da visita à África negra à abertura do Jubileu da Misericórdia.
A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no sítio Vatican Insider, 14-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quem indica esse "fio condutor" na iminente agenda papal é Alberto Melloni, professor de História do Cristianismo na Universidade de Modena-Reggio Emilia e da Cátedra Unesco sobre Pluralismo Religioso e Paz da Universidade de Bologna.
"O pontífice quis enquadrar a sua missão nos EUA e na ONU entre duas viagens dedicadas aos indigentes sul-americanos e africanos", explica ao Vatican Insider o diretor da Fundação para as Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.
Eis a entrevista.
De três países pobres da América Latina (Equador, Bolívia, Paraguai) às áreas mais difíceis do continente negro, passando pela visita a Cuba e aos EUA. Que sentido você identifica nessa "geopolítica das viagens"?
Colocada entre duas visitas aos pobres na América do Sul e na África, a viagem aos Estados Unidos não corre o risco de parecer como uma corrida de corte na iminência das eleições presidenciais com um projeto político. Os discursos sobre as injustiças sociais proferidos na América Latina são tão fortes que esclarecem qual é a visão do papa sobre o tabuleiro internacional. Além disso, a sua resposta no avião sobre o crucifixo dado pelo presidente boliviano Morales é muito importante do ponto de vista do conteúdo doutrinário. Para Francisco, não é um problema o recurso ao marxismo por parte da Teologia da Libertação.
O que une o sentido das viagens ao do Sínodo sobre a família?
As viagens sempre têm um resultado extremamente positivo, porque Francisco tem uma personalidade magnética e de forte aderência. O que está em jogo no Sínodo, no entanto, é totalmente diferente e representa uma ruptura enorme em comparação com o que aconteceu até a sua eleição. Bergoglio ativou um mecanismo sinodal que nunca tinha funcionado. Uma transformação que ainda não foi completada, mas o papa já obteve uma vitória indiscutível, porque, finalmente, no Sínodo, confrontam-se posições diferentes e há uma discussão de verdade. Na ideia de Francisco, não existe uma ruptura entre duas Igrejas diferentes. Para ele, a Igreja é uma só, e o Sínodo é o lugar em que se confrontam as diversas sensibilidades e podem se confrontar posições distantes entre si.
O que você prevê?
A chamada oposição dos conservadores defendia que não havia nada a discutir no Sínodo, mas só aderir a posições imutáveis. Um ponto que hoje está totalmente superado. No Sínodo, de fato, podem-se abordar livremente as questões sobre a família. E isso representa um evidente sucesso para o papa.
Em que o Ano Santo extraordinário dedicado à misericórdia é inovador?
Se a justiça é uma alternativa à misericórdia, então não é a justiça cristã. Por isso, Francisco derruba aquela que foi durante séculos a doutrina das indulgências. Na bula de proclamação do Jubileu, o pontífice se refere à indulgência de Deus. Administrá-la não é mais prerrogativa do papa e da Igreja. O caminho vai de todos em direção a todos.