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[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
20.11.2014 | 08:41 | #capelania-e-identidade-crista
[Convite à Reflexão] - Capelania UCPel
Estamos em plena Semana da Consciência Negra, associada à memória do líder Zumbi dos Palmares (20/11). Aproveitamos a ocasião para colaborar na denúncia às injustiças históricas perpetradas contra essa etnia. Mas não só. Queremos igualmente dar a conhecer os valores da cultura negra e oportunizar a divulgação de alguns frutos já maduros.

Inauguramos hoje, em nosso “Convite à reflexão”, uma nova modalidade de texto: a entrevista. Nossa opção é dar a palavra a gente da própria UCPel. E quem nos brinda desta vez com a sua experiência, abrindo o formato, é o prof. Eduardo Teixeira da Silva, do curso de Engenharia Elétrica. Formado nessa área pela PUC/RS, concluiu o seu mestrado em 2012 na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, onde atuou como professor substituto. Seu projeto de doutorado está em andamento. Colabora em movimentos sociais e assessora organizações populares. Em 2013 passou a trabalhar na UCPel. 

Eduardo discorre sobre sua trajetória acadêmica e seus projetos na área das fontes renováveis de energia, sobre a presença (ou ausência) das pessoas negras no corpo docente e discente da Universidade, sobre sua atuação social (particularmente junto às comunidades quilombolas).

Acompanha a entrevista a notícia acerca da campanha da Anistia Internacional sobre o índice de homicídios no Brasil. Nosso país granjeia a triste estatística de campeão de assassinatos (é a região sem guerra declarada que mais mata gente no mundo). Essa violência atinge em sua maioria os jovens e, dentre esses, 77% são negros.

A campanha “Jovem Negro Vivo” quer evitar tantas perdas desnecessárias e alertar para o risco da indiferença do conjunto da sociedade para com esse fato tão invisibilizado.

Boa leitura! Boa reflexão!



Entrevista com o prof. Eduardo Teixeira da Silva


1) Prof. Eduardo, o senhor viveu em uma "comunidade alternativa". Foi uma opção por construir outro modo de vínculo, de convívio. Conte um pouco mais sobre isso.

Na verdade, "comunidade alternativa" é um termo muito genérico, e às vezes até um pouco distorcido. Eu diria que é uma comunidade intencional e não convencional, pelo modelo que a gente adotou. Essa comunidade foi formada em 2002, a partir de um grupo de pessoas que tinha projetos sociais em Porto Alegre, num bairro próximo do centro. Esse grupo veio pesquisando e revendo seus paradigmas e reconhecendo assim que precisava mudar seu modo de vida.

Aí mudaram alguns hábitos que tínhamos e não eram saudáveis na época. Por exemplo, deixou-se de comer proteína animal. A partir daí esse grupo se afinou. Nós nos sentíamos muito bem juntos e, com o nascimento das primeiras crianças nesse grupo (uma delas foi a minha filha) a gente decidiu, principalmente por causa das crianças, ter uma formação mais dentro daquilo que a gente acreditava e os valores que a gente estava construindo, de morarmos juntos, num espaço onde a gente tivesse a liberdade de criá-los não tão estimulados pelo modelo convencional.

Decidimos adquirir uma propriedade, que não foi por cotas. Cada um "entrou" com o que tinha para contribuir e compramos um local, um terreno em Triunfo onde fundamos a comunidade. E a partir dali a gente começou a estabelecer uma relação comunitária, na qual criamos alguns princípios que norteiam a comunidade até hoje. Um deles: todas as crianças vão ser educadas pela comunidade. Então, tudo seria compartilhado dentro do espaço. Tínhamos algo muitos simples, diálogos para “afinar as diferenças”, porque não nos conhecíamos há muito tempo. Esse foi o processo mais desafiador! A superação do ego, dos interesses pessoais, em prol do coletivo... Mas conseguimos avançar e a comunidade já existe há mais de 12 anos. Eu fiquei morando na comunidade 12 anos, me afastei agora, depois que vim pra Pelotas. Mas foi uma experiência muito rica, muito forte, que definiu os valores nos quais eu movimento a minha vida hoje. 

2) O senhor fez referência aos valores, que são positivamente pensados, que se deseja viver, que são alternativos a outro modo de vida. Que valores "alternativos" são esses?

Na nossa sociedade, o padrão é um sistema muito individualista. A maioria das pessoas vive pra atender suas necessidades e muitas delas são estimuladas para alimentar esse sistema de consumo. Somos uma sociedade de consumo, em síntese. Então um desses princípios que a gente queria trabalhar nos nossos filhos é que eles fossem seres mais solidários, mais envolvidos com o coletivo, mais preocupados com a humanidade, não apenas com o espaço, com o núcleo que eles foram formados. Esse foi um dos motivos pelos quais a gente definiu que todos eles seriam educados pela comunidade e não apenas pelos pais - e não ter os pais como única referência. Todo trabalho desenvolvido na comunidade vem com esse propósito.

Os mesmos projetos que realizávamos antes de ir para a comunidade se ampliaram, então a gente tem um trabalho forte com a comunidade ao entorno, da região e até com ações nacionais e internacionais. Eles vêm sendo formados nesse princípio da troca, da solidariedade, do respeito com o próximo, com a natureza, de ter essa relação integrada, que não existe um meio ambiente: que nós fizemos parte desse meio e que somos um todo, com respeito com os animais, às plantas, que todos são seres vivos. A gente percebe que estes valores estão consolidados neles. Não matar animais para comer é um dos princípios da nossa dieta vegetariana. Alguns valores nesse sentido, de olhar para o todo, de saberem que não são únicos no mundo e que não só as suas necessidades que são importantes. E isso com certeza nesse meio que a gente vive, no cotidiano, seria muito difícil de construir dentro deles.

Os princípios que a gente considera como diferentes são esses, que acho que estão na base da maioria das filosofias religiosas; solidariedade, respeito com o próximo, cuidado com o todo. E a gente, além de ter essa opção de uma vida nesse modelo, também tem uma profunda conexão com a espiritualidade, que é o que nos norteia, o que faz com que a gente se mantenha unido nos momentos de diferença. Porque os desafios não são poucos. É muito estimulado na gente de ter as coisas na hora que a gente quer, como a gente quer. No ambiente coletivo a gente precisa saber respeitar o outro, o interesse do todo. 

Por exemplo, teve um rapaz que queria comprar um tênis porque "precisava". As nossas compras são todas de fato quando realmente necessárias. A gente não compra nada simplesmente porque quer ter. Todas as decisões são feitas no coletivo, através de círculos, e avaliamos que ele precisava do tênis. Só que ele queria um tênis de determinada marca. Dissemos: "você vai ter um tênis" (risos).

Trabalhamos muito com troca. Umas pessoas trabalham dentro da comunidade e outras fora. As que geram renda, de fato, são as que trabalham fora. As outras geram renda de outras formas. A ideia de trabalho foi também uma coisa revista, porque trabalhar não é só trabalho remunerado (e a gente trabalha o tempo todo). Normalmente quem está em casa trabalha muito mais do que quem trabalha fora. Essa foi uma desconstrução que a gente fez, então todo mundo trabalha. Não tem essa de chegar em casa e "vou descansar". Quando for descansar, todo mundo vai descansar.

3) Todo mundo tinha essa opção, assumiram juntos por opção. Mas nessas situações, que não deixam de ser situações de conflito, é preciso contornar através de diálogo, de encontro do grupo para tratar e resolver. Essas situações de conflito chegaram a um momento que foi mais tenso ou alguém desistiu?

A comunidade viveu vários momentos. No início de um relacionamento, quando gostamos de alguém, estamos "ligados" e achamos que é para sempre, que ia ser eterna a nossa convivência. E aí teve a primeira experiência - um dos membros fundadores decidiu sair e aí foi um impacto muito profundo para todos nós. Mas isso foi importante porque a gente aprendeu que a dinâmica da vida é essa, que tudo é transitório e aprendemos a viver com essa possibilidade, que as pessoas estão por um tempo (que a gente não sabe o quanto), mas com certeza deixam alguma coisa e levam alguma coisa. 

Com esse conceito fomos lidando depois com as outras mudanças que a comunidade teve. Os motivos dos que saem e dos que ficam são diversos. Normalmente o que a gente percebe é que mudamos ao longo do caminho. Não tem como dizer que vai ser sempre o mesmo. A gente até pode ter essa impressão, mas não é verdade. Quando assume isso como uma verdade, fica mais fácil de lidar com as mudanças e as incompatibilidades (porque cada um tem um jeito de ser e de lidar com as coisas). E aprender a lidar com essa diversidade, que é rica, porque o difícil é quando  queremos padronizar. Quando estamos em um pequeno grupo, sozinho, achamos que está tudo muito bom, muito perfeito e quando tem mais pessoas o feedback é maior. Isso é muito importante lá na comunidade: muito diálogo para mostrar o que a pessoa está fazendo, precisa fazer, o que não precisa. Eu hoje, particularmente, acredito que é um modo muito rico de evoluir espiritualmente como ser dentro de um ambiente coletivo. Onde haja uma relação de sinceridade, de veracidade, onde as pessoas dizem aquilo que sentem com respeito, com carinho, com amorosidade, mas serem verdadeiros. Isso auxilia muito cada um a se olhar, se rever, porque do contrário a acabamos nos enganando (e às vezes uma vida toda) - se veste de determinados personagens ou para transitar em alguns meios para conseguir sobreviver se adapta e muitas vezes a gente não sabe quem é. E se reconhece por um nome, por um título, por um número de documento que não tem nada a ver com a gente. Esse é o padrão da nossa sociedade. Então temos formado e construído isso com as crianças. Nós adultos temos muito mais dificuldade para lidar com isso, mesmo os que estão lá ainda hoje, mas todo mundo está se esforçando pra avançar. Os progressos são muito significativos, perceptíveis. O comprometimento que uns têm com os outros. Gostaria de comentar o nome da comunidade, que é Morada da Paz, que é uma comunidade espiritual, sustentável e quilombola. Não é uma comunidade quilombola tradicional, mas percebemos que tínhamos muitas características de comunidades quilombolas, porque a maioria das pessoas que moram lá são negras e começamos a perceber que isso fazia muito mais sentido pra nós. Chamamos de Comunidades Quilombolas Contemporâneas, que são diferentes das comunidades tradicionais. Inspiramo-nos nos princípios fundamentais das comunidades que têm muito a ver com o nosso modelo de vida (que hoje já não é muito comum nem nas comunidades quilombolas).

4) E quanto a seu itinerário acadêmico, quais são os elementos que considera mais relevantes?

De fato foram as minhas opções de vida, a minha própria história de vida. A minha família era muito pobre, eu tinha nove irmãos eu fui o único que conseguiu estudar, nada diferente de muita gente. Inspirei-me também em muitas pessoas que usei como referência para sair daquele estágio em que eu estava. Fiz Eletrotécnica e isso me foi possibilitando outras relações no ambiente no qual eu vivia, que era muito saudável no sentido de princípios, mas muito pobre no sentido de recursos materiais. A experiência social dentro da comunidade fez com que eu optasse, após a conclusão do curso de Engenharia, fazer uma formação que eu pudesse aplicar em áreas sociais. Esse foi um dos elementos fortes que eu carrego dentro das minhas ações acadêmicas, como professor ou estudante. Tento fazer essa vinculação com a minha história de vida e com mundo.

5) Qual foi seu projeto de mestrado? O que está pensando para o doutorado?

Meu tema de dissertação foi Eletrificação em Comunidades Isoladas. Fiz um estudo de caso na comunidade quilombola Quenta Sol, em Salvador (BA), onde eu pude conhecer o contexto das comunidades quilombolas do norte do país e propor um sistema de energia eólica e solar pra essa comunidade. Vindo para a Católica fui convidado para participar de um projeto nessa área pela EMBRAPA. O projeto de doutorado vai pelo mesmo caminho, porque as energias renováveis podem ser aplicadas nos níveis macro e micro. No nível micro - que é uma das maiores demandas que a humanidade tem hoje - uma quantidade muito grande de indivíduos não tem energia elétrica. No Brasil ainda tem uma demanda bastante significativa, apesar de o governo ter feito um projeto que é considerado um dos mais bem sucedidos no mundo, o Programa Luz para Todos, que levou energia pra milhões de pessoas. Até 2004 tínhamos no Brasil aproximadamente 10 milhões de pessoas sem energia elétrica e atualmente tem em torno de 3 milhões. Na América Latina são 30 milhões e no mundo o número é de aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas.

A minha pesquisa vem com o propósito de levar energia para essas pessoas que ainda não tem. Hoje em dia a base do desenvolvimento é o acesso à energia elétrica. Se você não tem energia elétrica você está basicamente isolado do mundo. Tem dificuldade de manutenção, produção, comunicação e tudo mais. No doutorado a ideia é manter essa linha de pesquisa. Estou montando o projeto para trabalhar com o impacto da microgeração no sistema, principalmente na área rural. A minha intenção é prestar serviço em países que são mais carentes, como África, Índia e aqui na América Latina. Tem um programa que se chama Engenheiros sem Fronteiras, que é inspirado no Médicos sem Fronteiras. A ideia é montar um escritório desse Engenheiro sem Fronteiras aqui no sul do país para poder fazer esse movimento.

6) Em que outras frentes de trabalho de engajamento social o senhor está envolvido atualmente?

Atualmente sou coordenador desse projeto junto à EMBRAPA, que é um estudo de viabilidade técnico-econômica em propriedades rurais da agricultura familiar. Esse projeto foi solicitado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário através da EMBRAPA, que fez uma parceria com a Católica e com o IF-Sul para desenvolver essa pesquisa. São seis unidades hoje no Estado do Rio Grande do Sul, unidades-piloto em que está instalado um sistema eólico e um solar. É uma composição de mais de um sistema de energias renováveis, que a gente chama de "sistema híbrido". Dois deles ficam aqui em Pelotas, um no IFSul-CAVG, outro na EMBRAPA; um em Seberi; outro em Santa Cruz do Sul; outro em Candiota, em uma comunidade de agricultura familiar; e em São Lourenço do Sul, numa comunidade quilombola. Pretendemos ampliar as ações. Em princípio o projeto é para fazer um estudo do impacto do sistema na comunidade. Alguns dados já estamos coletando do Quilombo Monjolo, em São Lourenço do Sul, da repercussão positiva que o sistema está trazendo.

O sistema é um modelo que veio através da ANEEL, pela Lei nº 482/2012, que possibilita que qualquer usuário possa gerar sua própria energia elétrica. Os sistemas ficam conectados à rede. É um sistema de compensação de energia, onde o usuário produz a energia que consome ou parte dela. O excedente retorna pra rede e a concessionária devolve em crédito para o usuário. Na verdade, hoje no Brasil qualquer um pode ser um microgerador de energia elétrica. Essa lei permitiu que os projetos que estamos trabalhando possam ser conectados à rede. Existem dois tipos de sistema: aquele que é conectado à rede, e o isolado, no qual ainda não chega a energia convencional. Nesse último caso, quando se precisa armazenar essa energia para se consumir a hora que não tiver essas fontes, são utilizadas baterias. Estamos montando uma cartilha de capacitação de jovens para trabalhar com projetos elétricos e energias renováveis. A ideia é socializar com outras comunidades carentes, com outros jovens da periferia, até aqui na Universidade.

Outras experiências que eu tenho tido na região. Uma delas é a Casa Pallet, como colaborador junto com o professor Noé [Vega Cotta de Mello], aqui da Arquitetura da UCPel. Também fui convidado para dar um auxílio na Colônia Z3, em uma cooperativa de geração de renda para mulheres. Eles têm uma câmara frigorífica que está depredada, precisa ser reativada. Estou ajudando a refazer o projeto pra que eles possam acessar o recurso e reativar a câmara para que essas mulheres consigam trabalhar.

Outra área que exige atenção é a da violência. As estatísticas de assassinato no Brasil são absurdas: em torno de 40 mil pessoas assassinadas no Brasil por ano. Sendo que desse percentual 50% são jovens negros. Isso é um absurdo! Mata muito mais que guerras e a sociedade está alheia a isso. Teve uma chacina de Vigário Geral que matou dezenas de pessoas, crianças, meninas, mulheres, homens; pela polícia. E isso não foi comentado porque eram negros. Tem um preconceito muito forte ainda da nossa sociedade que precisamos olhar e precisa ser revisto, porque são tragédias com a humanidade. Na Bahia, 85% da população é negra. Em relação a questão dos alunos na universidade... Quando eu cheguei lá, com esse percentual, eu tinha uma imagem da Bahia, que a gente sempre tem - a gente chega lá parece que está entrando em uma África... Entrei na universidade e era só branco. Eu fiquei chocado com aquilo! Mas como pode? Esse é um exemplo da nossa realidade. E aqui mesmo em Pelotas, é uma das maiores populações negras do Estado. E na cidade a gente quase não encontra negros. Quando eu soube disso eu pensei: onde estão os negros dessa cidade? Vai olhar, estão na periferia.

7) Como o senhor vê a presença negra no espaço acadêmico? Por que a porcentagem de pessoas negras no corpo docente e discente das Universidades continua ainda sendo tão baixa?

O percentual de alunos negros nas universidades é muito baixo. Na minha compreensão isso se dá por uma questão histórica. Não é falta de interesse ou falta de qualquer elemento que possa ser caracterizado. Acho que há a questão forte da desigualdade social e o acesso mesmo à educação de má qualidade no ensino fundamental e de referências negras também que estimulem esses jovens a quererem estar na universidade. É um processo complicado e complexo que justifica a ausência de mais alunos negros nas universidades. Acredito que no curso de Engenharia aqui da UCPel tem em média quatro alunos que passaram por mim e na Universidade vejo poucos negros transitando. Eu não sei exatamente o percentual, mas, a nível geral, é baixíssimo o número de alunos negros nas universidades. 

Hoje está havendo algumas oportunidades que não existiam antes, que são as cotas que possibilitaram um maior aceso de negros à universidade. Há muitas discussões em relação a isso, principalmente por quem não conhece a história dessa diferença social que o negro vive em relação à sociedade branca no Brasil e se a gente for ver, historicamente, faz apenas 126 anos que houve a abolição da escravatura. E a abolição não foi feita de uma forma que permitisse ao negro se incluir e entrar na sociedade de maneira equilibrada. Muito pelo contrário, ele ainda continua sendo explorado pelos donos de escravos. Continuam sendo escravos de uma forma indireta, até porque a escravidão não foi abolida pela Lei Áurea: foi um processo de matemática financeira, no qual se avaliou que a escravidão no Brasil não era economicamente viável. Claro que teve muitos movimentos abolicionistas que foram importantíssimos e significativos.

Mas os negros alforriados continuaram a prestar serviço na fazenda, tendo apenas a impressão de liberdade. Esse foi um dos mecanismos utilizados para a abolição. E assim o negro ficou à margem da sociedade. Isso se manteve e se mantém até os dias atuais. Se a gente for ver nas vilas e nos bairros mais pobres a maioria da população é negra e nesses bairros, invariavelmente, não tem estrutura que possibilite uma boa formação dessas pessoas que vivem em condições às vezes quase subumanas.

Não é muito difícil de ter essa experiência. É só visitar qualquer vila próxima aqui do Centro. O bairro Dunas é um exemplo claro disso, da pobreza e da miséria que algumas pessoas vivem. Tem um projeto da casa pallet lá mesmo e as pessoas ainda cozinham em latas. E a gente pode pensar: com toda informação, recursos e acesso que tem, é porque querem? Ou porque realmente não tem? Na verdade é uma junção de coisas. Uma visão mais simplista pode dizer: o camarada não trabalha porque não quer, é vagabundo porque é mais fácil roubar, é mais fácil se entregar nesse ambiente que, aparentemente, é mais fácil, mas não é verdade isso. É realmente falta de oportunidade e de referência.

Quando fui trabalhar na casa pallet conheci um jovem que me relatou a sua história de vida. Envolveu-se com droga, o pai foi assassinado e ele foi criado sem pai. Essa foi a formação que ele teve. Ele se destaca dos demais porque fez até o sétimo ano, fez vários cursos que foram ofertados para ele, só que ele disse: “Olha, eu arrumo emprego e quando as pessoas sabem a minha história, me demitem. Eu não consigo emprego e o que eu vou fazer? Eu preciso sobreviver”. Isso não é algo muito incomum. Não possibilitam às pessoas saírem daquele padrão. E é uma responsabilidade de toda a sociedade e não apenas do governo. A gente tende a dizer que o governo é o responsável, mas nós também temos uma ação de passividade com essa situação. A gente primeiro rotula que aquele bairro não dá para chegar, afasta-se e entra para nossas casas, bota um monte de grade em volta e se sente protegido, mas a gente desconsidera que aquele indivíduo que a gente deixa de estar auxiliando ou estar envolvido, pode ser uma vítima em potencial, dessa desigualdade social. Pode acontecer uma tragédia ou um acidente com amigo ou parente e eu vejo que essa nossa ausência e discriminação contribuem muito para manter essa desigualdade. Porque, às vezes, são ações simples. Não precisa nem a gente dar alguma contribuição financeira. É simplesmente um olhar cândido, de entender que são pessoas, que não são diferentes de nós por estar em uma condição de vida diferente. Nosso olhar, muitas vezes, é discriminatório, de afastamento, e isso deixa essas pessoas em condições muito mais vulneráveis.

Algumas políticas que vêm auxiliando bastante em possibilitar que o negro tenha acesso a universidade, mas claro que é preciso muitas melhorias. A universidade também tem um compromisso com isso porque mesmo tendo acesso é preciso que a universidade acompanhe esse aluno. Eu tive relatos de aluno que não tinha internet em casa e tem disciplina do curso que é feita pela internet. É um desafio muito grande para os alunos negros se manterem na universidade. Eu vejo também que a universidade poderia ter um olhar diferenciado. Essa ideia de igualdade é importante, mas não pode ser em todos os aspectos, porque nós não somos iguais. Somos iguais enquanto seres humanos, mas temos necessidades diferentes. E, portanto, precisaria ter uma atenção mais específica para dar um suporte. 

Não basta o acesso; você precisa se manter. É algo que precisa ser resolvido e para a gente chegar em uma sociedade democrática de fato, essas diferenças precisam ser eliminadas. É um processo, e o processo histórico é muito grande. Recuperar esse fosso que ficou entre a sociedade negra e a branca precisa um esforço muito grande, por isso as políticas afirmativas são extremamente importantes. Elas dão um "corte" para poder possibilitar esse trânsito do caminho de igualdade, mas leva um tempo. Nos Estados Unidos foi assim. Toda história dos Estados Unidos é diferente da nossa. As leis foram definidas para inserir o negro no espaço que eles não tinham acesso, e aqui, o nosso caminho precisa ser nesse mesmo formato, para que as futuras gerações já possam vir em uma condição melhor, mais equilibrada para poder competir de forma equivalente. Na universidade a gente já tem esse exemplo e se a gente for ver, em relação a mercado, os melhores empregos não são os negros que ocupam. Já existe estatística que comprovam que mesmo ocupando o mesmo cargo, o salário dos negros é mais baixo. Sem falar na mulher negra, que ainda tem mais desafios.

Em relação a professores negros na universidade, eu só conheço três. Então, isso também é importante, ter mais profissionais formados, mais professores, porque também são referências para os jovens. No nosso ensino, até pouco tempo, as referências que se tinha nos livros era sempre do negro sendo escravo, empregado doméstico, em funções subalternas dentro das famílias. Os brinquedos também, pois todas as bonecas eram brancas e aqui no sul é o branco típico europeu, então não se tinha essa referência. Isso, com as políticas atuais, vem se trabalhando para desconstruir e trazer essas referências. O objetivo específico da Lei 10.639 é que seja ensinada na escola a cultura afro-brasileira e a cultura africana. Todas as disciplinas deveriam trazer conteúdos associando o negro como referência e a importância que ele teve na construção da sociedade brasileira em todas as áreas, para que essa cultura seja construída: o negro sendo protagonista do país e, de fato, ele foi a principal mão de obra para tudo que o Brasil tem hoje. Toda história econômica do Brasil foi construída com mão de obra escrava, e hoje, de certa forma, com a mão de obra barata do negro no mercado de trabalho.

8) Estamos celebrando mais uma Semana da Consciência Negra, dentro da qual fazemos a memória de Zumbi dos Palmares. Qual a importância desse tema e como o senhor tem acompanhado as populações quilombolas em seu processo de autoafirmação e de reconhecimento de seus direitos?

A Semana não foi criada pelo governo federal, ela foi uma construção de muita luta dos movimentos negros e de todos os movimentos que, historicamente, vêm lutando pelos direitos negros. A referência é o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, que é considerado um herói genuíno brasileiro. Por quê? O Quilombo dos Palmares foi o quilombo mais bem sucedido na história. Aliás, a sociedade mais bem sucedida política e economicamente que se tem registro, apesar de isso não ser algo ensinado nas escolas. O Quilombo dos Palmares existiu por cem anos e dentro desse período da sua existência foi uma comunidade composta por todas as etnias (negros, brancos, índios), e que era muito igualitária. Todas as decisões eram tomadas por vários vilarejos e núcleos e dentro de cada um desses havia representantes. Essa decisão era levada para o grande grupo, que era o conselho do Quilombo, onde eram tomadas as decisões que atendessem as necessidades de toda a comunidade. Não existiam diferenças sociais nem de tratamento em função da etnia e religiosidade, que era mais universalista, apesar de preservar a religião africanista dentro do quilombo. Eles se desenvolveram muito economicamente e socialmente e começaram a ameaçar o governo local no sentido de que forneciam utensílios para a comunidade branca da região. Os fazendeiros da região se tornaram dependentes, de certa forma, economicamente da comunidade Quilombo dos Palmares. O governo fez muitas investidas para tentar desconstruir o Quilombo e a estratégia que eles adotaram, e que se adota ao longo da História, foi dividir para poder dominar. Então infiltraram vários espiões dentro da comunidade, perceberam as fragilidades da comunidade e disseram a Ganga Zumba, que era um dos líderes do Quilombo, que o governo de Pernambuco ia doar terras para eles e libertar os negros que assumissem esse contrato com o governo. Eles poderiam viver livremente sem precisar estar vivendo nessa condição de constante insegurança de um ataque iminente. Um grupo desceu da Serra da Barriga, que era onde ficava o Quilombo, para Pernambuco e nessa descida foi feita uma emboscada, quando se dizimou a maior parte desses negros. Ganga Zumba conseguiu fugir e retornou para o Quilombo, ele e mais um grupo. Lá ele foi assassinado por Zumbi, pois tinha sido contrário a essa decisão e com isso o Quilombo ficou realmente muito mais frágil e, ao longo desses anos, os soldados brancos do governo foram desenvolvendo armas mais poderosas e aí contrataram um estrategista espanhol, Domingos Jorge Velho, para fazer um ataque ao Quilombo. Como já havia vários espiões lá, criou-se uma estratégia e se conseguiu chegar no Quilombo, pois ele era estruturado para guerrilha e por isso conseguiu sobreviver tanto tempo. No dia 20 de novembro destruíram o Quilombo, prenderam Zumbi e o enforcaram e deceparam em praça pública. Portanto, esse dia ficou sendo uma referência para a comunidade. Onde se faz um resgate de conscientização ao brasileiro como um todo... Da nossa história, dos valores da cultura negra e da importância que o negro teve para o desenvolvimento do Brasil.

E a partir daí outras políticas vieram sendo construídas: as chamadas políticas afirmativas, como as cotas e a Lei 10.639, que são conquistas desses movimentos de consciência negra e de programas específicos para a comunidade negra que o governo tem. Um deles é para o reconhecimento das comunidades Quilombolas como patrimônio do país. Com um trâmite legal podem ser enquadradas como quilombolas e recebem a posse dessas terras. É complexo isso, pois muitas propriedades que pertenciam ao quilombo, ao longo da história foram sendo invadidas e tomadas pelos brancos, que foram se apoderando e mantendo essas pessoas subalternas. Existe muita discussão ainda nesse termo. Então hoje para uma comunidade ser reconhecida como quilombo, primeiramente ela precisa se reconhecer - que também é outro desafio aqui de Pelotas que eu tenho tido. Muitas comunidades não se assumiam, não só aqui de Pelotas, mas no nordeste também. Não queriam se assumir como quilombos por causa dos processos de discriminação que sofriam - quando iam para a cidade eram vistos com preconceito, tratados com palavras rudes e não ter acesso ao que outros tinham. Então se criou nessas pessoas um comportamento de autodefesa. Preferiam não se assumir como negros - e até tem o senso da etnia. Há muitos negros registrados como pardos, mascarando sua identidade em função de se protegerem e acabarem perdendo a identidade em razão de todos esses maus-tratos que viveram.

Aqui na nossa região, existem 43 comunidades reconhecidas, mas há muitas outras, que ainda não conseguiram se identificar.

9) Gostaria de acrescentar mais algum comentário?

Em relação ao projeto Monjolo: as pessoas e os acadêmicos tendem a levar a fórmula pronta e se desrespeita o conhecimento, a tradição e o ritmo. Isso acontece em muitos trabalhos que estão sendo feitos nessas comunidades e há reclamação deles quanto a isso. Essas comunidades tradicionais funcionam em um ritmo diferente do nosso, dessa nossa dinâmica urbana. E quando eles têm essas experiências vivenciadas lá, geralmente não são positivas. As pessoas vão, levam suas propostas, eles acolhem, pois as comunidades tendem a ser muito acolhedoras. No entanto o retorno que eles têm não contempla o investimento que eles fazem. Eu como já tive essa experiência lá em Salvador e pela minha própria história, tomei muito cuidado com isso. Antes de levar o projeto para eles a gente fez uma primeira visita para socializar a proposta e para que eles pudessem avaliar e ver se era viável e interessante para aquele momento. 

O que eu constatei nessas visitas com os alunos aqui da Universidade me surpreendeu que alguns nunca tinham ouvido falar em quilombos e muito menos que existiam quilombos aqui na nossa região.

O Monjolo se destaca em relação a isso; ele tem sido pioneiro em vários aspectos: foi um dos primeiros quilombos a ser reconhecido aqui na região, um dos primeiros com as políticas públicas a ter uma produção para vender dentro do programa de merenda escolar e em energias renováveis. Ele também é o primeiro do Brasil com sistema conectado a rede - já há sistemas instalados em alguns quilombos, mas com uma única fonte e isoladas. Eles também têm mais acesso a uma formação mais baseada nos valores das suas tradições. Eles vão à escola, mas a escola não trabalha com a cultura africana, não trabalha o idioma africano e é superimportante, pois isso está ligado à valorização da cultura, da identidade, pois um povo sem identidade fica fácil de ser dominado.

Quero destacar também a possibilidade de poder estar trabalhando com a comunidade acadêmica e aproximar os estudantes dessa realidade. Hoje tenho um aluno que está fazendo um trabalho específico de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) sobre esse projeto do quilombo. Ele está acessando informações que não tinha e a gente tem trabalhado em sala de aula a cultura do negro e com frequência vem a discussão das diferenças de classes, se realmente existe preconceito e das próprias políticas afirmativas. Acho que as pessoas estarem repensando, independente da opinião que tenham, é muito saudável. Uma questão que os alunos trazem muito é: como vai ensinar a cultura africana na escola e não ensinar a cultura branca na escola? A cultura branca já faz parte. Como vou chamar o negro hoje? Chamo de negro, pretinho, de mulato? Vou estar sendo preconceituoso ou não? Eu acho que esse tipo de reflexão é muito rica, pois as pessoas são preconceituosas sem se dar conta, sem perceber. Às vezes em pequenas frases, as pessoas são depreciativas e não percebem. A questão da identidade cultural é importante para todos, pois se eu conhecer a sua cultura eu aprendo a respeitar e entendo porque as coisas são dessa forma ou de outra. Por exemplo, as religiões de matriz africana. Elas têm um embasamento, mas as pessoas discriminam porque não conhecem. A religião tem uma história e muitas vezes as pessoas que praticam essas religiões africanas também não tem um conhecimento aprofundado. A cultura negra é passada oralmente e pode, muitas vezes, não ser transmitida na íntegra. Então resgatar essa identidade é importante.



Anistia Internacional lança campanha sobre o alto índice de homicídios de jovens

(09 de novembro de 2014)


A Anistia Internacional lançou no domingo (09/11), na pista de skate do Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, a campanha “Jovem Negro Vivo”. A mobilização chama a atenção para o alto número de mortes de jovens no país, em especial entre a juventude negra.

“Além de ser um país com um dos maiores índices de homicídios no mundo, o Brasil está matando mais seus jovens e, entre estes, os negros. Os números são chocantes. Dos 56 mil homicídios que ocorrem por ano, mais da metade são entre os jovens. E dos que morrem, 77% são negros. A indiferença com a qual o tema é tratado na agenda pública nacional é inaceitável. Esteve presente de forma tímida no debate eleitoral, está fora das manchetes dos jornais. Parece que a sociedade brasileira naturalizou esta situação”, afirma Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil.

Com a campanha “Jovem Negro Vivo”, a Anistia Internacional convida todas as pessoas a conhecer e contribuir para mudar esta realidade. Para isso, mobiliza a sociedade para assinar o manifesto “Queremos ver os jovens vivos”, que defende o direito a uma vida livre de violência e preconceito. E ainda pede políticas públicas de segurança, educação, saúde, trabalho, cultura, mobilidade urbana, entre outras, que possam contribuir para o enfrentamento desta realidade.

“A morte violenta não pode ser aceita como destino de tantos jovens. As consequências do preconceito e dos estereótipos negativos associados a estes jovens e aos territórios das favelas e das periferias devem ser amplamente debatidas e repudiadas”, destaca Átila Roque.

Campanha
As peças desenvolvidas para a campanha “Jovem Negro Vivo” buscam sensibilizar a sociedade brasileira para o alto índice de homicídios no Brasil, o que faz do país um dos mais violentos do mundo. A campanha é uma parceria com a agência de publicidade DM9 Rio.

O vídeo da campanha, os infográficos estáticos e o videográfico animado dão um panorama sobre os números da violência no Brasil, comparado a outros países, inclusive, aqueles que vivem conflitos armados. E mostram também como os homicídios vitimam mais os jovens do que a população brasileira em geral.

Os dados são contundentes em mostrar como os homicídios no Brasil têm atingido mais os jovens e, entre eles, os negros. Enquanto a taxa da morte de jovens brancos tem diminuído, a que se refere à morte de jovens negros tem aumentado anualmente.

Lançamento
O lançamento da campanha incluirá denúncia, lazer, apresentações culturais e música. Durante todo o dia haverá exposição interativa com “manequins invisíveis”, criada pelo artista Humberto de Castro, que retrata os jovens que tiveram suas histórias de vida interrompidas ao serem vítimas de homicídio. O DJ Flash, do Baile Black Bom, vai dar o ritmo do movimento.

Acontecerá também a Batalha pela Vida – O Passinho pela Igualdade, que será um desafio entre grupos de passinho, organizado pelo produtor cultural Julio Ludemir. Depois será a vez do DJ Emílio, da Festa Phunk animar os participantes, seguido da Disputa de Barbeiros com WL do Corte e Edú do Corte (Corte do Jaca). O Dream Team do Passinho encerra a programação.

Átila Roque ressalta que o objetivo do evento é “fazer um dia de festa no Aterro”, e acrescenta: “apesar da campanha tratar de um tema difícil, a morte dos nossos jovens, queremos valorizar o protagonismo dos jovens em defesa de seus direitos e chamar a atenção para a importância do país criar condições para que parte expressiva da juventude não tenha sua história interrompida pela violência. O destino dos jovens é viver”.

Durante o mês de novembro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra (20/11), outros eventos da campanha “Jovem Negro Vivo” serão realizados em comunidades da cidade do Rio de Janeiro. Em 2015, eventos da campanha acontecerão também em outros estados do país.

Confira o vídeo “Jovem Negro Vivo” e outros detalhes da campanha aqui.



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