No final do mês de outubro celebrou-se a 30ª Romaria de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cascata, além do Seminário Mariológico realizado pela Arquidiocese de Pelotas, em setembro deste ano. Portanto, em comunhão com a Arquidiocese e na busca de cumprir sua missão, a Capelania optou nesta semana pelo eixo: Igreja: reflexões pastorais.
Afirma ainda, que a devoção mariana vivida no horizonte da centralidade de Jesus e do Reino de Deus é legítima e saudável. Deve ser respeitada e estimulada, para que a mãe de Jesus molde nosso coração de discípulos e missionários de Cristo, levando-nos a realizar “tudo o que ele disser”.
A devoção marial no Brasil contemporâneo: olhar panorâmico
Por Afonso Murad
Cumpre realizar um “discernimento pastoral”, em âmbito local, paroquial e diocesano, diante das devoções marianas. E, nesse campo, não se trata de taxar as manifestações devocionais de “certas” ou “erradas”, mas sim identificar em que proporção favorecem a adesão a Jesus e à causa do Reino de Deus e permitem uma forma aberta e dialogal de estar no mundo.
Analisar a devoção mariana no Brasil contemporâneo, em vista de ação pastoral lúcida e eficaz, é tarefa arriscada e também necessária. Não estamos em terra firme, como parece à primeira vista. Quando alguém caminha na beira da praia, sobre a areia fofa, experimenta certa insegurança e necessita maior energia e atenção para dar os passos. Mais difícil ainda quando se entra em áreas alagadas, denominadas de “banhados” em algumas regiões do país. Nesse espaço, misturam-se de tal forma água e terra, que o caminhante desavisado pode afundar. Por vezes, o panorama mariano assemelha-se a um manguezal. No tempo de maré alta, é possível navegar ou “nadar de braçada”. No cenário de maré baixa, exige-se maior cuidado. Esta é a primeira constatação: a devoção mariana não é um terreno tão evidente e seguro, como pode aparentar. O que a faz tão movediça? Talvez o fato de apresentar simultaneamente, no mesmo fenômeno, aspectos teológico-pastorais positivos e elementos ambíguos. Mesclam-se ainda muitos elementos culturais e subjetivos, que não serão objeto deste artigo, com os explicitamente teológico-pastorais.
1.1. O terreno movediço da devoção: terra, água e detritos
A devoção aos santos e a Maria faz parte da identidade católica. Ela está enraizada em grande parte da população. Praticamente, a oração da Ave-Maria é a primeira que se aprende na infância. Invoca-se a mãe de Jesus como a “nossa mãe do Céu”. A figura de Maria glorificada, traduzida em estátuas, pinturas e nas distintas “Nossas Senhoras”, tem imensa atratividade pastoral. Atrai e conserva boa parcela dos fiéis. Mobiliza grupos e multidões para peregrinações nos muitos santuários marianos. Os templos católicos ficam cheios, sobretudo nas “festas da padroeira”. Do ponto de vista comunitário, devoções marianas clássicas, como a oração do terço, novenas e outras expressões, favorecem práticas religiosas com a vizinhança que fortalecem os laços interpessoais, criam e animam a comunidade local.
Acrescentam-se a isso fenômenos antigos, com alguns traços modernos. Proliferam na mídia os “depoimentos” de pessoas que se converteram ou foram curadas milagrosamente após recorrerem à mãe de Jesus. Aumentam as comunidades de vida e aliança, de inspiração carismática, relacionadas com a devoção mariana. Movimentos aparicionistas, no Brasil ou no exterior, alimentam a chama da devoção mariana, com mensagens e sinais extraordinários. No meio do clero predomina uma visão pragmática. Mesmo que o presbítero não seja pessoalmente um devoto de Maria, ele estimula os movimentos marianos de qualquer espécie, pois acredita nos seus benefícios pastorais. Em suma, mesmo que algumas coisas pareçam estranhas, tem-se a ideia de que tudo o que se relaciona com a devoção mariana é bom e deve ser aceito. Ou, ao menos, tolerado.
O reverso do quadro também é verdadeiro. O último censo religioso, de 2010, mostrou que a população evangélica no Brasil continua aumentando, embora em ritmo menor do que na década passada. Em várias regiões urbanas do Brasil, mais de um terço da população declara-se evangélica. Parte desses “convertidos” mantém alguma prática devocional mariana, apesar da censura dos seus pastores. Mas as novas gerações já não herdam esse componente simbólico. Portanto, não é correto afirmar que a devoção mariana constitui a identidade do brasileiro/a. Ela faz parte, sim, de um grupo (ainda) majoritário. Qual o significado da devoção mariana em uma sociedade urbana e plural, na qual o campo religioso se altera de forma impressionante? Se a devoção mariana é algo tão enraizado e forte, por que é insuficiente para manter as grandes massas das periferias urbanas na pertença católica?
Outro dado preocupante, apontado pelo censo, diz respeito à relativa diminuição de mulheres no contingente católico. Como são elas as primeiras difusoras da devoção no âmbito familiar, tal dado pode sinalizar uma tendência de diminuição, a longo prazo, da devoção mariana no próprio âmbito católico. Além disso, a onda devocional mariana, que por vezes parece um tsunami, não traz no seu bojo somente águas, mas também muitos detritos, tais como intolerância religiosa, certo fanatismo, visão mágica, exageros e até manifestações com claros traços de desequilíbrio psíquico. O que dizer, por exemplo, de movimentos que propõem a prática de uma infinidade de Ave-Marias ou de Salve-Rainhas ou então a atitude de andar com uma corrente, para sinalizar que se é “escravo de Maria”? Ou de mensagens estranhas, moralistas e terrificantes de pretensas aparições?
Cumpre realizar um “discernimento pastoral”, em âmbito local, paroquial e diocesano, diante das devoções marianas. E, nesse campo, não se trata de taxar as manifestações devocionais de “certas” ou “erradas”, mas sim identificar em que proporção favorecem a adesão a Jesus e à causa do Reino de Deus e permitem uma forma aberta e dialogal de estar no mundo. Nesse discernimento, identificam-se, de forma provisória, os elementos positivos e os aspectos ambíguos que apresentam riscos de degenerar a experiência cristã. Por fim, empreendem-se ações pastorais de renovação da devoção mariana para as massas, para a população que frequenta as igrejas e para as lideranças eclesiais.
Cabe aos presbíteros, religiosos/as e leigos/as superar certo superficialismo e pragmatismo pastoral. Este se manifesta em posturas como: “Eu promovo as devoções marianas (mesmo que elas não sejam importantes para mim) porque o povo gosta”. O argumento é inconsistente do ponto de vista teológico. Ora, o discurso baseado no lema “porque o povo gosta” é usado de forma antiética em muitas instâncias da sociedade. Basta lembrar os programas de rádio e TV que exploram a violência e a tragédia porque isso rende audiência (e, consequentemente, patrocínio). Ou ainda, a sensualidade desmedida e precoce, presente em vários veículos da mídia. É certo que devemos levar em conta as tendências e os gostos dos nossos destinatários e interlocutores na evangelização. Mas esse não é o critério decisivo. Evangelizar não se reduz a vender um produto religioso que agrada ao cliente e lhe dá satisfação espiritual. Promovemos a devoção mariana porque ela tem fundamentos doutrinais e espirituais, não simplesmente porque faz sucesso.
Além disso, o próprio conceito de “sucesso” é questionável. O profetismo, elemento fundamental da mística cristã, comporta uma crítica aos comportamentos massivos, ao formalismo, à religião do sistema. O cristianismo tem um elemento irrenunciavelmente minoritário. Embora destinado a todos, convoca para um “mais”. Pretende ser sal e fermento. Postula atitudes exigentes, posturas reflexivas, custosas e renúncias.
A ação pastoral conjuga, em diferentes âmbitos e intensidade, duas dimensões aparentemente contraditórias. De um lado, busca aumentar o número de fiéis e conquistar as massas. Para isso, recorre a esquemas massivos, de impacto, nas quais predominam a linguagem imediatamente acessível, o convencimento, a sedução, o encantamento, “a magia”, os gestos simbólicos. De outro lado, por fidelidade ao evangelho de Jesus, denuncia os enganos da religiosidade fácil, convida a gestos mais profundos, propõe pensar, cria espaços de reflexão, provoca conflito ao desmascarar estruturas pecaminosas. Ora, uma devoção mariana lúcida e equilibrada mantém a tensão entre essas dimensões. Por ser profética, não cede aos encantos da religiosidade fácil e manipuladora. Para impactar as massas, busca formas e expressões que penetrem no tecido social. Usemos aqui uma analogia rural: o profetismo e a tendência massiva são como dois bois atrelados na mesma canga. Cada um puxa o carro em sua direção. Mas, atualmente, o “boi massivo” está levando o carro a alguns “descaminhos”.
Certa vez, em curso de mariologia destinado ao clero, um padre disse: “Eu uso a devoção como isca, para atrair o povo para a missa e os sacramentos”. Ora, mais uma vez aqui se desvela o caráter instrumentalizador da devoção, desta vez para fins clericais explícitos.
Então, qual seria o fundamento teológico-pastoral do culto a Maria? E os seus limites e possibilidades?
2.A legitimidade do culto a Maria no horizonte católico
Se você perguntar a um grupo de católicos: “Por que você reza a Maria, e não diretamente a Jesus?”, encontrará respostas curiosas. Uns justificarão que “desde criança eu rezo para Nossa Senhora, e dá certo” (!). Outros, “porque ela é minha mãe do Céu”, ou ainda “ela é muito bondosa e sempre escuta nossos pedidos”; “Ela é a poderosa rainha do céu e da terra”. E não faltará aquele que diz “peça à mãe, que o Filho atende” e “Maria passa na frente”. O fato é que a devoção mariana é muito mais afetiva do que intelectual. Por isso, não se explicitam as razões.
O fundamento da visão católica contemporânea sobre a legitimidade do culto a Maria se encontra no capítulo 8 da Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II. Após apresentar alguns traços do perfil bíblico de Maria e refletir sobre a relação entre a Mãe de Jesus e a Igreja, aborda-se de frente a delicada questão: Se Jesus é o único mediador entre Deus e a humanidade, como compreender então a intercessão de Maria? Coerente com os dados bíblicos, o documento conciliar confirma que Cristo é o único mediador. Mas essa única mediação de Cristo não é compreendida de forma exclusiva ou excludente, pois os santos são colaboradores de Jesus.
Segundo os padres conciliares, a missão materna de Maria não diminui a mediação única de Cristo, mas mostra a sua potência. Não se origina de uma necessidade interna, mas do dom de Deus. Não impede, mas favorece a união dos fiéis com Cristo (LG 60). Nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano do Verbo encarnado e redentor. Mas o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos pelo povo de Deus, e a bondade de Deus é difundida nas criaturas. A única mediação do Redentor suscita nas criaturas uma variada cooperação, que participa de uma única fonte (LG 62). O concílio reconhece a legitimidade de recorrer à intercessão de Maria, pois se trata de cooperação na única mediação de Cristo. Não se utiliza a expressão “medianeira”, até então marcada com acento maximalista.
A colaboração de Maria não se situa no mesmo plano da missão redentora de Jesus. Põe-se em função dessa missão e dela depende incondicionalmente. O culto a Maria é singular, diferindo e se orientando para o culto à Trindade (LG 66). E o concílio avança, mostrando que o culto a Maria é bom, enquanto exercitado de maneira equilibrada: “Recomenda-se o culto a Maria, evitando tantos os exageros quanto a demasiada estreiteza de espírito. A verdadeira devoção a Maria não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa vã credulidade, mas no reconhecimento da figura da Virgem Maria e no seguimento de suas virtudes” (LG 67).
Portanto, justifica-se o culto a Maria, no horizonte do seguimento de Jesus e da comunhão dos santos. Maria coopera de forma especial na única mediação de Cristo, que é inclusiva.
O concílio diz que Maria é membro, símbolo e mãe da Igreja, a partir de sua relação ímpar com Jesus. Não se trata somente da maternidade. Porque mãe, companheira e serva do Senhor, torna-se, assim, nossa mãe, na ordem da graça (LG 61). Devido à sua maternidade, à união de missão com Cristo e às suas singulares graças e funções, está também intimamente relacionada com a Igreja (LG 63). Como Maria, a Igreja é mãe: gera novos filhos pelo batismo, guarda a Palavra, vive na fé, esperança e caridade (LG 64).
Essa chave da “relacionalidade” é fundamental para situar a devoção mariana no seu lugar. Em primeiro plano estão Jesus, a causa do Reino de Deus e a comunidade dos seus seguidores. Conforme o texto conciliar, Maria é simultaneamente mãe, discípula e companheira de Jesus (LG 61). Com ele convive, ensina e aprende. O título de “companheira” causa certa estranheza para alguns. Ele indica uma atitude de “estar junto com Jesus e seus seguidores”.
A Maria nos dirigimos e nela nos inspiramos, sem concorrência com Jesus, nosso Mestre, Senhor e Salvador. Nesse lugar especial na comunhão dos santos, o mais perto de Jesus e mais próximo a nós (LG 54), ela nos acompanha e intercede por nós.
Vale recordar algo importante, especialmente àqueles que atuam em contextos urbanos e multirreligiosos. Na perspectiva católica, a prática de dirigir a oração a Maria é legítima e recomendável. Mas não obrigatória. É comum encontrar leigos, religiosos/as e presbíteros que admiram a pessoa de Maria, identificam-se com suas atitudes, mas não sentem a necessidade de rezar a ela. No âmbito devocional, reina grande liberdade e diversidade. Por isso, soa como inadequada e até autoritária a postura dos que apregoam que Maria, na voz de seus videntes, ordena praticar diariamente determinadas devoções.
3.Maria no culto cristão: a contribuição de Paulo VI
O papa Paulo VI, na Exortação Apostólica sobre o Culto a Maria (Marialis Cultus), de 1974, fornece um quadro teológico-pastoral extraordinário, que foi esquecido nos últimos anos. Vale a pena retomá-lo. Na primeira parte do documento, Paulo VI mostra como a renovação da liturgia, após o Vaticano II, situou Maria no lugar adequado. Várias solenidades, festas e memórias marianas foram realocadas e ressignificadas dentro do ciclo litúrgico (MC 2-13). O critério fundamental residiu em situar Maria “no mistério de Cristo e da Igreja”, como se resume o título do capítulo 8 da Lumen Gentium. A reforma pós-conciliar considerou a Virgem Maria com uma perspectiva adequada no mistério de Cristo; e, em sintonia com a tradição, reconheceu-lhe o lugar singular que lhe compete no culto cristão, qual mãe de Deus e enquanto cooperadora do Redentor (MC 15).
Parece-nos que a grande contribuição de Paulo VI, útil para nós hoje, consiste na originalidade da sua abordagem. Antes de falar sobre o culto a Maria, ele mostra que Maria é figura inspiradora da Igreja no culto a Deus (MC 16-22): Maria é o modelo da Igreja na fé, na caridade e na união com Cristo, as disposições com que a mesma Igreja o invoca e, por meio dele, presta o culto ao Pai (MC 16). Apresentam-se, então, com base nos dados bíblicos, sobretudo do Evangelho de Lucas, quatro características básicas de Maria de Nazaré: Virgem que ouve e acolhe a Palavra de Deus com fé, mulher dedicada à oração, mãe de Jesus e pessoa oferente. Ao contemplar a figura de Maria, a Igreja se reconhece nela em atitudes fundamentais:
– Ouvir e acolher a palavra de Deus com fé. Assim faz a Igreja na liturgia: escuta com fé, acolhe, proclama e venera a Palavra de Deus e a distribui como pão da vida. À luz da Palavra, perscruta os sinais dos tempos, interpreta e vive os acontecimentos da história.
– Cultivar a oração. A Igreja, a exemplo de Maria, dedica-se à oração. Todos os dias apresenta ao Pai as necessidades de seus filhos, louvando o Senhor e intercedendo pela salvação de todos.
– Ser mãe. A Igreja, pelo batismo, gera novos filhos de Deus.
– Oferente. A Igreja se oferta a Deus e oferece os dons na eucaristia.
Então, antes de ser objeto de culto, Maria é modelo do culto a Deus, que não se limita ao ambiente da liturgia e da devoção. Inclui toda a vida como serviço a Deus. Nesse sentido, Maria nos ensina como cultuar a Deus e fazer o caminho da conversão a Jesus e do seu seguimento. “Maria é a mestra da vida espiritual para cada um dos cristãos. Os cristãos olham para Maria, a fim de que, como ela, façam de sua própria vida um culto a Deus, e do seu culto um compromisso vital” (MC 21).
Várias expressões da Marialis Cultus se tornaram conhecidas – sem que o fiel tivesse conhecimento de sua origem – por meio dos cantos da missa “Maria, mãe da Igreja”, de autoria de Fabretti e Navarro. Consoante essa mensagem, assim se diz no canto de ofertório:
Sobe a Jerusalém, Virgem oferente sem igual.
Vai, apresenta ao Pai, teu menino-luz que chegou no Natal […]
Mãe, vem nos ensinar a fazer da vida uma oblação.
Culto agradável a Deus é fazer a oferta do próprio coração.
Maria é mais do que a santa poderosa e bondosa à qual os fiéis recorrem, sobretudo nas suas necessidades. A raiz do culto a Maria (compreendido no duplo viés de liturgia e devoção) não está na pretensa eficácia das fórmulas e dos ritos, mas na inspiração em suas atitudes básicas.
Paulo VI, porém, não se limita à dimensão ético-performativa do culto mariano. Afirma que a Igreja traduz as múltiplas relações que a unem a Maria em outras tantas atitudes cultuais:
– veneração profunda, quando reflete que ela, por obra do Espírito Santo, se tornou mãe do Verbo encarnado;
– amor ardente, quando considera a maternidade espiritual de Maria para com todos os membros da Igreja;
– invocação confiante, quando experimenta sua intercessão, como advogada e auxiliadora (LG 62);
– serviço amoroso, quando descobre na humilde serva do Senhor a Rainha da misericórdia e a mãe da graça;
– imitação operosa, quando contempla a santidade e as virtudes da “cheia de graça” (Lc 1,28);
– admiração comovida, quando vê nela a imagem realizada do que a Igreja deseja e espera;
– estudo atento (MC 21).
Paulo VI é mais incisivo do que qualquer documento eclesial posterior, seja do papa João Paulo II, seja do episcopado latino-americano. Segundo ele, as manifestações da piedade mariana aparecem de muitas formas, de acordo com o tempo e o lugar, a sensibilidade dos povos e suas tradições culturais. Como são sujeitas ao desgaste do tempo, necessitam de renovação, para valorizar os elementos perenes e substituir os anacrônicos, incorporando os dados da reflexão teológica e do magistério. Por isso, deve-se fazer uma revisão dos exercícios de piedade mariana, ao mesmo tempo respeitando a sã tradição e estando abertos para receber as legítimas instâncias da humanidade no nosso tempo (MC 24).
Paulo VI aponta três critérios para rever ou recriar exercícios de piedade mariana.
– Cunho bíblico: não somente diligente uso de textos e símbolos tirados da Escritura, mas que “as fórmulas de oração e os textos destinados ao canto assumam os termos e a inspiração da Bíblia”. O culto a Maria deve estar permeado pelos grandes temas da mensagem cristã (MC 30).
– Cunho litúrgico: as práticas devocionais devem considerar os tempos litúrgicos e encaminhar para a liturgia, como grande celebração da vida, morte e ressurreição de Jesus. Evitem-se os extremos dos que desprezam os exercícios de piedade, criando um vazio, e dos que misturam exercício piedoso e ato litúrgico em celebrações híbridas (MC 31).
– Sensibilidade ecumênica: devido ao seu caráter eclesial, no culto a Maria refletem-se as preocupações da própria Igreja. Entre elas, destaca-se o anseio pela unidade dos cristãos. A piedade mariana torna-se sensível aos apelos do movimento ecumênico e adquire também um caráter ecumênico. Assim, “sejam evitados, com todo o cuidado, quaisquer exageros, que possam induzir em erro os outros irmãos cristãos, acerca da verdadeira doutrina da Igreja católica; e sejam banidas quaisquer manifestações cultuais contrárias à correta prática católica” (MC 32).
É notório que as palavras proféticas de Paulo VI caíram no esquecimento. Basta ver como nos últimos anos se retomaram, de forma anacrônica, práticas devocionais que já poderiam ser suprimidas. E se criaram e difundiram outras que estão longe dos critérios propostos: cunho bíblico e litúrgico, sensibilidade ecumênica. Parece que, no que toca à devoção mariana, em vários casos se perdeu a lucidez e a noção de limites.
4.Um olhar latino-americano
A título de ilustração, tomemos algumas conclusões da última conferência dos bispos do nosso continente e um autor latino-americano, pouco conhecido no Brasil. O Documento de Aparecida, que reúne as conclusões da 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, inicia-se evocando a presença da mãe de Jesus na Assembleia. Reconhece, com gratidão: “Maria, mãe de Jesus Cristo e de seus discípulos, tem estado muito perto de nós, tem-nos acolhido, tem cuidado de nós e de nossos trabalhos, amparando-nos na dobra de seu manto, sob sua maternal proteção” (DAp 1). E acompanha uma súplica: “Temos pedido a ela, como mãe, perfeita discípula e pedagoga da evangelização, que nos ensine a ser filhos em seu Filho e a fazer o que Ele nos disser” (idem).
Conforme o Documento de Aparecida, a devoção a Maria tem muitas características positivas: “Em nossa cultura latino-americana e caribenha, conhecemos o papel que desempenha a religiosidade popular, especialmente a devoção mariana, contribuindo para nos tornar mais conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e da dignidade perante seus olhos” (DAp 18). A piedade popular, fortemente mariana, deve ser assumida na evangelização, pois ela “penetra a existência pessoal de cada fiel. Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos recorrem a algum pequeno sinal do amor de Deus”, como o rosário ou uma imagem de Maria. Nesse sentido, “a fé encarnada na cultura pode penetrar cada vez mais nos nossos povos, se valorizarmos positivamente o que o Espírito Santo já semeou ali” (DAp 262).
No entanto, a piedade mariana tem seus limites. Pode ser um ponto de partida, para que a fé amadureça e se faça mais fecunda. Dizem os bispos: “é preciso ser sensível à devoção popular, perceber suas dimensões interiores e seus valores inegáveis” e assumir sua riqueza evangélica. Mas devemos também corrigir os desvios e exageros da devoção. “É necessário evangelizá-la ou purificá-la” (DAp 262). Mais ainda. Não basta repetir as práticas devocionais recebidas do passado. É preciso dar novos passos. Entre outras coisas, o Documento de Aparecida sugere: conhecer a vida de Maria e dos santos, para se inspirar no seu jeito de ser e agir. Além disso, intensificar o contato com a Bíblia, a participação na comunidade e o serviço do amor solidário (cf. DAp 262).
O jesuíta Antonio González Dorado, que trabalhou muitos anos no Paraguai, escreveu a obra Mariología popular latinoamericana. De la Maria conquistadora a la Maria liberadora (Assunção: Loyola, 1985), na qual valoriza a devoção popular latino-americana tradicional e rural, mostrando suas possibilidades de contribuir para uma prática pastoral libertadora. Segundo ele, a devoção popular latino-americana acentua a figura de Maria mãe. Tal característica está relacionada com a idealização da figura da mãe numa cultura opressora e machista. No contexto patriarcal latino-americano, a mãe é o símbolo do lar, é o regaço amoroso e sofrido. Nela se encontram todas as virtudes “caseiras”: fidelidade, honestidade, economia, ordem, cuidado e atenção. Perante a violência machista, a mãe é a que compreende e perdoa os filhos. Ela é a ajuda permanente nas necessidades ordinárias e também a última solução e esperança nas situações-limite. Cabe à mãe ser também o testemunho da piedade religiosa. No fundo, considera-se a mãe como uma fortaleza resistente maior que o varão (p. 67).
Evidentemente, o fato de identificar a mulher com a mãe, de um lado, traz reduções drásticas para a própria identidade feminina e para as relações de gênero. De outro lado, a mãe é para os oprimidos sua segurança, seu consolo e esperança. Intui-se nela imensa capacidade de ajuda e desencadeamento de energias libertadoras (p. 69).
Haveria três notas características da piedade popular mariana na América Latina: exaltação quase ilimitada de Maria; a mãe de Jesus se humaniza e se aproxima da vida do povo; a devoção se concretiza e se localiza em imagens e espaços determinados (p. 75). Uma leitura positiva dessas características, sem ingenuidade, ajuda a compreender a originalidade da devoção mariana no nosso continente.
A exaltação a Maria, forte e intensa, tem raízes culturais: “a maternidade vivida pelos filhos num ambiente machista tende à idealização da mãe, para a qual se reserva no coração um lugar extraordinário, a quem se adorna com todas as virtudes ‘caseiras’ e em quem se reconhecem autoridades e poderes quase onipotentes” (p. 75). Por isso se vê Maria tão próxima de Deus, no céu. Esse traço pode leva a sublinhar a figura de Maria glorificada, em detrimento de Maria de Nazaré.
Como então Maria-mãe se torna próxima? Pela identificação com o sofrimento humano, especialmente dos pobres. A maternidade, vivida no contexto patriarcal e dominador, é sofrida e dolorosa. Então, “Maria, na fé do povo, torna-se profundamente humanizada, enraizada na vida e no mundo real, na história concreta, tendo sua própria e particular história de pobreza e de opressão” (p. 78). Por isso, na fé popular, as cenas mais comuns de Maria de Nazaré são Belém e o Calvário. A história de Maria se faz tão extraordinariamente realista, que uma das representações preferidas do povo se realiza na imagem de “Nossa Senhora das Dores” (p. 81).
A estátua ou o quadro de Maria é fundamental na teologia popular latino-americana. Nelas a mãe se faz presente, permitindo relações humanas de proximidade, visualização e contato interpessoal individualizado. Mediante a imagem, a maternidade de Maria se faz “minha”, afetiva e imediatamente (p. 82-83).
Como compreender então o fascínio dos santuários marianos na devoção popular? Eles são a casa da mãe. “A mãe é que tem casa, que é a casa e o lar dos seus filhos, um lugar bem localizado e conhecido. Assim, no caso de Maria, sua casa será um modesto oratório, a Igreja ou o santuário, mas localizada num ambiente com limites bem definidos, no qual habitam seus filhos, e à qual os filhos recorrem facilmente em momentos de necessidade, de alegria, de comemorações e de festas” (p. 84).
Ao final de sua obra, González Dorado mostra que, apesar de tantos elementos positivos, a devoção tradicional é insuficiente. Ela precisa ser enriquecida com uma visão de Igreja-comunidade, com a leitura libertadora da Bíblia, com práticas sociais transformadoras e a criação de relações de gênero que superem o patriarcalismo.
Conclusões abertas (em tópicos)
– No contexto plural que marca a sociedade contemporânea e a Igreja, há enorme diversidade a respeito da relação dos cristãos com a mãe de Jesus. Nos extremos estão as correntes maximalistas e minimalistas. Para as primeiras, Maria é tão importante, que não há limites para o culto mariano. Pode-se desviar a ponto de perder a centralidade de Jesus, favorecendo práticas devocionais esdrúxulas e pouco saudáveis para a fé cristã. As últimas demonstram certa indiferença em relação à mãe de Jesus, muitas vezes por desconhecer a beleza do perfil bíblico-espiritual de Maria. Não existe uma forma-padrão de equilíbrio. Cada pessoa, grupo, comunidade ou Igreja particular podem estar marcados por diferentes características marianas e manifestar maior ou menor intensidade nas suas expressões cultuais. Precisamos aprender a conviver com essas diferenças.
– As manifestação devocionais marianas, como qualquer outra expressão humana, são ambíguas. Apresentam elementos teológicos e espirituais preciosos, por vezes implícitos. E também trazem consigo limitações, traços anacrônicos e riscos reais de desvio. Cabe às distintas lideranças eclesiais (leigos/as, religiosos/as, padres e bispos) analisar o fenômeno e realizar o discernimento, assumindo então posturas pastorais. A ingenuidade ou a omissão poderão trazer sérios problemas no futuro.
– Com exceção de práticas explicitamente desequilibradas e insanas (que existem e se espalham com facilidade), no âmbito da devoção é difícil classificar “o certo” e o “errado”. Seria mais eficaz, no espírito de discernimento, perceber o que é mais conveniente e salutar. Para que rezar centenas e centenas de Ave-Marias sem parar se a tradição eclesial propõe o rosário, com a meditação dos mistérios? Por que aderir à entoação seguida e desmedida de dezenas de Salve-Rainhas se no rosário se reza somente uma vez, ao final do “terço”? De um lado, respeitam-se as práticas devocionais. De outro, não devemos ter medo de frear os exageros e questionar os movimentos marianos sectários.
– Há que superar uma visão ingênua e purista a respeito das devoções marianas, como se elas fossem algo puro e intocável. Atualmente, com o advento da sociedade midiática e da cultura urbana, sobraram poucas manifestações marianas autenticamente populares, que nascem e se desenvolvem espontaneamente. Predomina a devoção midiática, que já não é popular, nem em sua origem nem no protagonismo. Suas práticas devocionais são geradas, apoiadas e difundidas por pessoas e grupos organizados, nos quais se incluem padres, leigos, institutos religiosos, novas comunidades e movimentos eclesiais bem determinados. Infelizmente, alguns desses protagonistas da “devoção midiática” têm pouco senso eclesial. Sobrepõem-se às comunidades locais, paróquias e dioceses. Nutrem forte espírito corporativo e megalomania (mania de grandeza).
– A legitimidade da devoção mariana não reside no fato de ser atrativa e reunir multidões nem em constituir uma “isca” para outras práticas devocionais e litúrgicas. Ela se fundamenta na presença especial de Maria na comunhão dos santos, a serviço da única mediação de Cristo. Jesus, único mediador, inclui os santos na sua missão salvífica.
– Já na vida de Jesus de Nazaré, Maria é apresentada nos evangelhos com um perfil rico e diversificado, que deve ser resgatado na devoção: discípula, serva, mãe e companheira de Jesus. Em relação à comunidade cristã, Maria exerce o papel de membro, modelo de vida, irmã, aprendiz, pedagoga, mestra e mãe. Reduzir a figura de Maria à maternidade biológica ou à “mãe do Céu” empobrece seu perfil, como também a própria vivência cristã.
– A devoção mariana, vivida no horizonte da centralidade de Jesus e do Reino de Deus, é legítima e saudável. Deve ser respeitada e estimulada, para que a mãe de Jesus molde nosso coração de discípulos e missionários de Cristo, levando-nos a realizar “tudo o que ele disser”.
Afonso Murad
Ir. Afonso Murad, marista, é doutor em Teologia. Professor na Faje (Faculdade Jesuíta) e no Ista (Instituto Santo Tomás de Aquino) em Belo Horizonte. Autor de várias obras, entre as quais: Maria, toda de Deus e tão humana – Compêndio de Mariologia (Paulinas/Santuário); O que Maria tem a dizer às mães de hoje? (Paulus); Gestão e espiritualidade (Paulinas).