Uma política de higienização, é possível? Antônio Pedro Soares, do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura, afirma: "Temos verificado que sim, há um cruzamento de dados que mostra que esses processos de 'higienização' sempre ocorrem antes dos grandes eventos realizados no Rio de Janeiro. Foi assim na Jornada Mundial da Juventude, na Copa da Confederações, e agora na Copa do Mundo. Eles tendem a fazer os recolhimentos à noite, dificultando o trabalho dos órgãos fiscalizadores”.
A Capelania faz um convite à reflexão. O primeiro texto é uma notícia sobre o recolhimento de moradores de rua próximo ao período da Copa do Mundo: MP diz que Rio tirou 669 mendigos das ruas para Copa apesar da proibição. O segundo é um artigo de Leonardo Sakmoto: Xinga o movimento sem-teto, mas acha bonito doar cobertor na rua.
MP afirma que o Abrigo Rio Acolhedor apresenta irregularidades,
entre elas a presença de percevejos nos colchões
Da BBC Brasil, no Rio
03/07/201416h39
Vivian Pernandez/MPRJ/Divulgação
Números divulgados pelo MP-RJ (Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro) mostram que a prefeitura carioca retirou 669 mendigos das ruas --muitos de forma compulsória-- levando-os para o Abrigo Rio Acolhedor (Paciência), entre os dias 20 de maio e 2 de junho deste ano, às vésperas da Copa do Mundo.
Polêmico, o local é alvo de denúncias de superlotação e má higiene e, de acordo com uma liminar judicial, não poderia mais receber novos abrigados desde maio. O MPRJ disse à "BBC Brasil" que deve entrar com petição na Justiça nos próximos dias para reiterar o pedido de fechamento total do local, alegando lotação além da capacidade e outras irregularidades – entre elas o descumprimento de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) assinado com a prefeitura há dois anos, que passou a proibir a retirada forçada de pessoas vivendo em situação de rua no Rio.
Consultada pela "BBC Brasil", a SMDS (Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social) nega que tenha executado recolhimentos forçados, e que suas ações com essa população visam "ao acolhimento e ao restabelecimento dos vínculos (destas) com a família e a sociedade".
Mas, de acordo com a promotora Patrícia Villela, que coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Cidadania do MPRJ, além de desrespeitar o TAC, a administração municipal estaria descumprindo a liminar da juíza Gisele Guida de Faria, da 9ª Vara da Fazenda Pública, que determinou em maio deste ano que todos os colchões do Abrigo de Paciência fossem trocados e que o abrigo não recebesse mais nenhuma pessoa devido à superlotação.
"O município tomou para si diversas obrigações quando assinou o TAC, admitindo uma série de irregularidades e se comprometendo a resolvê-las. Então, não é que não estejam cientes, eles só não cumpriram as decisões mesmo", argumenta.
Vans e outro lado
Vídeos gravados durante a visita do MPRJ (obtidos pela BBC Brasil) mostram duas vans chegando ao abrigo no momento em que os técnicos do órgão faziam uma visita no início de junho. "Falamos com aquelas pessoas e algumas nos relataram que haviam sido retiradas compulsoriamente das ruas, o que é ilegal", aponta a promotora Patrícia Villela.
Outro fato ilustraria, na visão do MP, o caráter forçado das ações. "Das 669 pessoas recolhidas entre 20 de maio e 2 de junho, 176 deixaram o local imediatamente, o que mostra que ali não queriam estar".
A Prefeitura do Rio, no entanto, rejeita as acusações de que esteja promovendo o que o MP e outros críticos classificam como uma política de "higienização" ou "limpeza social", retirando os mendigos das áreas mais turísticas da cidade durante a Copa.
"A SMDS esclarece que não há, na cidade do Rio de Janeiro, uma política de 'higienização', com a retirada de pessoas em situação de rua em função da Copa do Mundo ou de qualquer outro evento. Desde 2013, as ações da SMDS visam ao acolhimento e ao restabelecimento dos vínculos com a família e a sociedade", diz o governo local.
Quanto à lotação, o governo local diz que "não existem novos abrigados no Rio Acolhedor. Há pessoas que entram à noite e deixam o local pela manhã. Outras vão só para fazer as refeições. Os que permanecem também saem da unidade para trabalhar, fazer tratamento de saúde, retirar documentação, retornando nas vans da SMDS. A Prefeitura está recorrendo da decisão judicial por acreditar que o abrigamento é necessário embora não tenha descumprido a liminar".
Além disso, o órgão diz ter criado um "Comitê de Convergência" para garantir os direitos da população em situação de rua e complementa que "o sucesso do projeto levou o Ministério do Desenvolvimento Social e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a recomendar a criação do mesmo comitê nas outras 11 cidades-sede da Copa do Mundo".
Críticas e grandes eventos
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil acreditam que o Rio já vinha empreendendo políticas de "limpeza social" há algum tempo e que há uma correlação entre os grandes eventos sediados na cidade e o "desaparecimento" dos mendigos das áreas mais turísticas.
Na visão dos críticos, a prática teria ganhado força a partir de 1º de janeiro de 2009, quando o Rio estabeleceu operações que ficaram conhecidas como "choque de ordem".
Mas o grande impulso teria ocorrido em 2011, ano de aprovação da resolução número 20 da então Secretaria Municipal de Assistência Social, hoje SMDS, que legalizou a retirada forçada de crianças e adolescentes das ruas como medida para conter o uso de drogas, sobretudo o crack.
Os analistas apontam, no entanto, que a resolução (revogada com a assinatura do TAC em 2012) teria "oficializado" a retirada forçada também de adultos em situação de rua.
"Entre maio de 2010 e setembro de 2012 registrou-se a ida de 56.507 pessoas para o Abrigo Rio Acolhedor, sendo 47% delas recolhidas na Zona Sul, 30% no Centro e 15% na Zona Norte, ou seja, lugares de maior interesse turístico do Rio", diz a psicóloga Isabel Lima, membro da ONG Justiça Global.
Ao rebater as críticas, a Prefeitura diz que não existe mais "acolhimento compulsório" no Rio de Janeiro, e que a SMDS não faz internações, ou seja, "o direito de ir e vir é garantido e o abrigado pode desistir do acolhimento".
Mas Isabel Lima diz que é preciso se atentar ao fato de que o Abrigo de Paciência está distante mais de 70 quilômetros do centro do Rio, no bairro de Santa Cruz, e que muitos ficam impossibilitados de deixar o local pela ausência do recurso para a condução. "A distância é um fator importante. Não tem facilidade de transporte público, e a região tem bastante atuação de milícias e traficantes, bastante complicada", diz.
Antônio Pedro Soares, do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura, órgão independente que se reporta à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e monitora espaços como presídios, abrigos e centros de detenção, é taxativo quanto à relação entre a retirada de moradores de rua e os grandes eventos.
"Temos verificado que sim, há um cruzamento de dados que mostra que esses processos de 'higienização' sempre ocorrem antes dos grandes eventos realizados no Rio de Janeiro. Foi assim na Jornada Mundial da Juventude, na Copa da Confederações, e agora na Copa do Mundo. Eles tendem a fazer os recolhimentos à noite, dificultando o trabalho dos órgãos fiscalizadores", diz.
Xinga o movimento sem-teto, mas acha bonito doar cobertor na rua
Leonardo Sakamoto, jornalista, em artigo no seu blog, 26-07-2014
Toda vez que o frio chega com força à capital paulista, lembro a quantidade de imóveis que têm como inquilinos ratos e baratas, visando à especulação imobiliária, enquanto tem gente virando picolé do lado de fora. Ou pessoas que dormem – sob temperaturas de conservar sorvete napolitano – em barracos, cortiços e habitações frias e precárias.
“Tá com dó? Leva para casa!'' é uma frase clássica utilizada por quem tem apenas dois neurônios – o Tico e o Teco. É proferida ad nauseam quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o burgo paulistano – locomotiva da nação, vitrine do país, orgulho bandeirante que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas caindo de velhos e me dão um enjôo pré-vômito. É só falar da necessidade de políticas específicas para evitar que o direito à propriedade oprima os outros direitos fundamentais, que reacionários vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder.
Como já disse aqui neste espaço e repito, boa parte dos trabalhadores que entraram na linha do consumo, há poucos anos, adota com facilidade o discurso conservador. Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências. Em debates sobre déficits qualitativos e quantitativos de moradia, por exemplo, quem tem pouco adota por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes proprietários e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de “mão-beijada'' por parte do Estado.
Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.
Você acha que apenas doar agasalhos e cobertores resolve o problema de quem está passando frio do lado de fora e que a vida vai mudar com a somatória de pequenas ações de caridade coloridas e cintilantes? Pede mais educação, mais saúde, mais segurança e, ao mesmo tempo, quer menos impostos e menos Estado? Desculpe, você é muito desinformado. Ou, pior: patético.
Não é uma responsabilidade individual minha ou sua tomar cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa. Mas a construção participativa de saídas é um dever coletivo que tem no Estado o ator principal.
Como aqui já disse, sabe o artigo sexto da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então, é mentira.
Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Se o artigo sétimo fosse verdade, talvez pudesse ajudar o sexto a ser também.
Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas, viver em São Paulo é lindo – se você pagar bem por isso.
Isso contribui com a faxina social que ocorre, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes privados. Talvez para não melindrar o cidadãos de bem, que não gostam de mendigos mal-cobertos por doações de agasalhos ferindo o senso estético por aí, têm horror a qualquer crítica à intocabilidade da propriedade privada e querem tomar um café quentinho em seu restaurante sem serem importunados por famílias de olhos do lado de fora das vitrines.