A Capelania da UCPel retoma neste mês o Projeto “Convite à Reflexão”. Este se constitui num espaço em que se realiza o diálogo fé e cultura; fé e razão, fé e ciência e em que se busca favorecer a aproximação entre a dimensão pastoral, própria da capelania, e a comunidade acadêmica. Todas as quartas-feiras são disponibilizados novos artigos voltados a fomentar esse diálogo.
O tema principal desta semana é a Campanha da Fraternidade 2015. A Igreja durante quarenta dias vivencia o período da Quaresma, tempo de preparação para a Páscoa. Desde de 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), promove a Campanha da Fraternidade (CF) que este ano tem como tema “Fraternidade: Igreja e Sociedade” e lema “Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45).
Oferecemos nesta semana a Mensagem do Papa Francisco por ocasião da Campanha da Fraternidade, o artigo “Eu vim para servir” escrito pelo capelão Pe. Martinho Lenz e outro sobre a Reforma Política (tema abordado pela CNBB, trabalhado pela Capelania e abordado no texto base da CF).
Um bom ano letivo!
Boa leitura.
“Eu vim para servir”:
Campanha da Fraternidade 2015: uma chamada ao compromisso social
“O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade” (EG, 177). Esse texto do Papa Francisco encontrou eco no tema da Campanha da Fraternidade de 2015 da CNBB (CF-15), que tem como tema “Igreja e Sociedade” e como lema: “Eu vim para servir” (cf. Mc 10,45). A Igreja, povo de Deus, está mergulhada nessa sociedade, dela faz parte e nela vive sua fé e seu compromisso cristão. A Igreja, como diz o Concílio Vaticano II na Gaudium et Spes, assume “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje” (GS, 1). As tentativas de calar a Igreja são arbitrárias e não se sustentam. “Ninguém pode nos exigir que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam os cidadãos” (EG, 183).
As perguntas estratégicas que a CF-15 nos coloca são: quais os grandes desafios que o Brasil enfrenta na atual conjuntura? Como a Igreja se posicionou na história do país? Que contribuições a Igreja pode dar na atual conjuntura mundial e brasileira? Vou destacar alguns aspectos do Texto Base, acrescentando outros pontos que me parecem relevantes.
O Brasil e seus desafios, hoje
Na análise de conjuntura mais recente da CNBB, às vésperas das eleições de 2014, foram destacados nove problemas concretos, percebidos como desafios que atingem a todos e pesam sobretudo para os mais pobres: os gastos com a dívida pública, que absorvem 40 % do orçamento federal; a violação dos direitos dos povos indígenas e quilombolas; a lentidão da reforma agrária; a terra urbana como capital especulativo; os megaprojetos de infraestrutura e suas repercussões sobre as populações envolventes; as privatizações de setores estratégicos; o sistema tributário e a desigualdade social; o oligopólio da grande mídia; e a gravidade da situação ambiental e os efeitos da mudança climática.
Esses problemas são vistos dentro de um quadro mais amplo de deterioração de valores e de atitudes que atentam contra o bem comum, constatados em análises anteriores. Nelas se constatava um agudo relativismo e um crescimento de fundamentalismos, associados muitas vezes a um “laicismo militante, irracionalidade na cultura midiática, amoralismo generalizado, desrespeito diante do povo e projeto de nação que nem sempre considera adequadamente os anseios do povo”. Constatava que “os critérios que regem as leis de mercado estariam regulando as relações humanas, sociais, familiares e religiosas, considerando os mais pobres como supérfluos e descartáveis, dentre outras consequências”. No campo religioso, percebia-se o surgimento de práticas e vivências religiosas como o emocionalismo e sentimentalismo, com uma série de decorrências religiosas negativas.
Na parte do Ver, o texto da Campanha 2015 apresenta um breve histórico das relações entre Igreja e Sociedade no Brasil, desde os tempos da colônia e do império. Nesse período, Igreja e Estado regiam-se pelo Padroado Régio. O Catolicismo era a religião oficial do Estado, sendo os bispos e párocos nomeados por indicação do imperador. O clero recebia seus proventos dos cofres públicos. Houve conflitos sérios entre a Igreja e o Estado, tal como a Questão Religiosa, mas também muita colaboração. Figuras do clero se destacaram na administração imperial, como o Regente Pe. Feijó; antes que se generalizasse a educação pública, era a Igreja que mantinha escolas e hospitais, asilos e orfanatos.
A República decretou a separação entre Igreja e Estado, em 1890, benéfica para ambas as partes. Fonte de problemas é a confusão entre laicidade do Estado e laicismo, uma ideologia militante e antirreligiosa, que não respeita o pluralismo nem a liberdade religiosa, assegurada pela constituição. O texto também nos situa diante dos desafios atuais da sociedade brasileira: mudança demográfica com o progressivo envelhecimento da população brasileira, a baixa qualificação profissional, a urbanização sem planejamento, uma crise ética e política, corrupção e ineficiência do Estado, criticada por maciças manifestações de rua em junho de 2014. Faz-se a crítica ao individualismo e o materialismo, “que tende a transformar as pessoas em puros consumidores” (102). O texto aponta também sinais positivos, de novos tempos, de uma cultura de respeito ao pluralismo e de tolerância das diferenças, de sensibilidade com os pobres. Neste contexto, a Igreja se propõe a servir com uma mensagem salvadora, que cura as feridas do povo, ilumina caminhos de mudança e aponta horizontes.
O texto não fala da fratura que a votação presidencial revelou no segundo turno das eleições: 51,6% para Dilma Rouseff contra 48, 4% para Aécio Neves, expondo “Um País Partido”, como o historiador Marco Antônio Vilela titulou seu livro sobre “a eleição mais suja da História” (S. Paulo: LeYa, 2014).
Proposta da Igreja
A Igreja tem muito a dar à sociedade e a receber dela. Sua proposta de diálogo e serviço se baseia em uma visão de fé e um chamamento à conversão de corações e estruturas. A Aliança entre Deus e o povo libertado do Egito foi um sinal da nova sociedade, baseada num modo fraterno e solidário de viver, com uma estruturação social justa. A experiência da Bíblia mostra que há sistemas (então, a monarquia) que favorecem distorções do projeto de uma sociedade fraterna, dão espaço a pastores que se apascentam a si mesmos e deixam de defender o direito do oprimido. Jesus de Nazaré nos ensina a ter compaixão pelo povo, a afirmar o primado dos pobres e a usar a autoridade para servir e não para ser servido. A Igreja primitiva buscou seguir os passos de seu mestre ao formar suas primeiras estruturas. O apóstolo Paulo criou uma rede de comunidades e colaboradores/as nas periferias das grandes cidades do império romano e ensinou que numa assembleia cristã não há judeu nem grego, homem ou mulher, escravo ou livre. Hoje, as paróquias, quando comunidade de comunidades, atualizam esta antiga tradição na Igreja de ser fermento na massa.
A CF-15 recupera o ensinamento da Igreja em seu magistério social e no Concílio Vaticano II, que indica os rumos para uma sociedade nova. A comunidade de seguidores de Jesus, que ultrapassa os limites históricos da Igreja Católica, põe-se a serviço da construção de uma nova sociedade no Brasil. Propõe um desenvolvimento integral na perspectiva do bem comum, rumo à meta de uma civilização do amor, na expressão de Paulo VI. A Igreja reconhece a família, os corpos intermédios e a sociedade política como lugares indispensáveis para o progresso da humanidade. A justiça social é qualificada pelo amor fraterno. Essa missão é inerente à própria natureza da Igreja, como afirma Bento XVI: “O serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável de sua própria essência” (Bento XVI, 2012). A ação evangelizadora repercute positivamente na organização e fortalecimento da comunidade humana. A própria Igreja é ajudada pela sociedade, pois ela não se coloca sobre nem abaixo da sociedade, mas vitalmente inserida nela. Exercita-se em perscrutar os sinais os tempos, os desafios ou apelos internos e externos. Com a Igreja da América Latina, faz a opção pelo ser humano e pelos pobres. Essa missão eclesial exige de nós uma conversão pastoral e eclesial, ser uma Igreja em saída, segundo o apelo insistente do Papa Francisco, que não se confunde com uma ONG piedosa. A missão se desdobra simultaneamente em duas frentes: o socorro a necessidades urgentes (“a fome não espera”, dizia Betinho), e a ação de colaboração para organizar estruturas mais justas. Em sua ação pública, a Igreja não pede vantagens nem privilégios. Só pede liberdade de ação no cumprimento de sua missão.
Ação pública em colaboração com a sociedade
Qual o conteúdo da colaboração da Igreja? Ela atua em favor de tudo que eleva a dignidade humana, consolida o bem comum e a coesão social e confere sentido à atividade humana. Atua como Instituição e através de cada um de seus membros, prestando uma atenção especial aos pobres e sofredores, ao povo nas periferias existenciais, alertando contra a globalização da indiferença. Quer promover ativamente a inclusão social dos pobres (EG, 186-192). Concretamente, em que serviços a Igreja se distingue? Um campo prioritário é a proteção e promoção dos direitos humanos fundamentais e avanço dos direitos básicos. Colabora em campanhas, mas sobre tudo na luta para propor e monitorar políticas públicas de inclusão social. As pastorais sociais da Igreja se voltam a segmentos especialmente fragilizados: pastoral da criança, carcerária, dos migrantes, das populações de rua, de indígenas e ribeirinhos, dos idosos e tantas outras. Três frentes merecem especial atenção no campo do interesse público: a superação da violência e construção da paz, onde as Comissões de Justiça e Paz tem um papel relevante, tendo o ano de 2015 sido proclamado pela 52ª Assembleia da CNBB como Ano da Paz; a colaboração para fortalecer as organizações da sociedade civil, sobretudo os Conselhos Paritários e de Direitos – grande legado da Constituição de 1988; e a luta pela Reforma Política, uma reforma estrutural urgente.
O atual sistema político favorece formas maciças e sistemáticas de corrupção institucionalizada. A Constituição de 1988 introduziu uma distorção estrutural, ao aprovar um Parlamento para um regime parlamentar: depois, quando caiu a proposta de regime parlamentar, deu ao Presidente poderes de regime presidencial. Assim, podemos ter no Brasil um governo sem maioria no Congresso. Para garantir a governabilidade, o governo barganha apoios, constituindo maiorias em troca de “favores”, cargos, emendas de parlamentares e até da compra de votos. No parlamentarismo, o primeiro ministro, eleito pela maioria, só governa se mantiver essa maioria. A reforma política – e da constituição - é prioridade para o Brasil. A Igreja é uma das promotoras da “Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”. Teses centrais desse projeto: financiamento público dos partidos; um novo sistema eleitoral: o “voto transparente”, em dois turnos; maior destaque para a mulher na política; e fortalecimento da democracia participativa, complementando a democracia representativa. O sistema de governo ficou fora dessa proposta. Haverá espaço para negociar esse ponto, sem a convocação de uma constituinte exclusiva?
Para além do texto da CNBB
A CF-15 insinua questões cruciais, não só para o Brasil, sobre as quais a Igreja, com sua presença universal, pode exercer sua influência. A primeira é o capitalismo globalizado. Diante do silêncio geral, o Papa Francisco critica abertamente esse sistema. A crença dominante hoje, diz ele, é que “todo crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismo sacralizados do sistema econômico reinante... Hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Essa economia mata” (EG, 53). “Hoje entra em jogo a competitividade e a lei do mais forte, em que o poderoso engole o mais fraco”. Em apoio a um estilo de vida que exclui os outros, baseado num ideal egoísta, “desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer, ao ouvir os clamores alheios...” (EG, 54). Em sua mensagem de Quaresma de 2015, o Papa Francisco chama os fiéis a refletirem, a renovarem sua união com Cristo, buscando combater a globalização da indiferença.
Segundo, como fruto desse sistema, temos o crescimento da desigualdade, que está à raiz de muitas formas de violência. O crescimento da desigualdade foi solidamente documentado pelo economista francês Thomas Piketty, cujas pesquisas mostraram o aumento da concentração da riqueza em todos os países desenvolvidos. Em seu best-seller “O Capital no Século XXI” chegou à conclusão que o crescimento econômico global foi menor do que o aumento da riqueza das grandes fortunas e que o capitalismo não está gerando uma melhor distribuição da riqueza e da renda, mas sim sua concentração. Como remédio, Piketty propõe a taxação progressiva dessas fortunas e dos ganhos do mercado financeiro. A pergunta é: como atuar frente a essa tendência perversa do capitalismo global, em que já a partir de 2016, 1% da população vai concentrar 50% da riqueza global? Que decisões políticas poderiam favorecer maior igualdade na distribuição dos bens e da renda no Brasil?
A concentração da riqueza é também se alimenta da corrupção generalizada, não só de políticos ou executivos de empresas. A corrupção, como a investigada pela Operação Lava-Jato na Petrobrás, tem raízes históricas no Brasil e está difusa na sociedade e em comportamentos quotidianos, às vezes acobertados por eufemismos como “dar um jeito”, e na mania de querer “tirar vantagem em tudo”. A isto se acrescenta a falta de respeito pelo patrimônio público (facilmente depredado ou apropriado privadamente). A mudança dessa cultura de corrupção começa por cada um de nós, pela adesão a padrões éticos de honestidade e honradez e por uma nova consciência do bem público, a ser respeitado por todos. Os pobres e os cidadãos comuns são as maiores vítimas da corrupção, frequentemente fraudados na quantidade e qualidade dos serviços públicos prestados.
Na luta contra a corrupção e pela justiça contamos com a força do Evangelho e a coragem de anunciá-lo. “Não deixemos que nos roubem a força missionária” (EG, 109).
Pelotas, 15 de fevereiro de 2015 – P. Martinho Lenz, SJ
Reforma política de Eduardo Cunha é antidemocrática, diz um dos articuladores do Ficha Limpa
Resposta de Dilma Rousseff às manifestações de junho de 2013, a proposta de realizar um plebiscito pela reforma política perdeu força tão logo chegou ao ouvidos do Congresso. Eleito presidente da Câmara em janeiro, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) decidiu retomar as discussões sobre o tema, mas aos seus moldes.
Em 10 de fevereiro, foi instalada na Câmara uma nova comissão especial de reforma política. A presidência do colegiado foi entregue por Cunha, integrante da base aliada ao governo, a um oposicionista, Rodrigo Maia (DEM-RJ).Além disso, Cunha decidiu que o texto a guiar as discussões será a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 352/2013 do ex-deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP). O projeto é duramente criticado por constitucionalizar o financiamento privado de campanhas eleitorais, visto como interferência indevida no processo democrático.
As doações eleitorais por parte das empresas foram consideradas inconstitucionais pela maioria dos magistrados do Supremo Tribunal Federal, mas o julgamento ainda não terminou, graças a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Se o texto de Vaccarezza for aprovado antes de Gilmar Mendes liberar o processo no STF, o que não tem data para ocorrer, o financiamento privado estará "protegido".
Por conta disso, para o juiz eleitoral do Maranhão Márlon Reis, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), um dos artífices da lei da Ficha Limpa, as ações de Cunha tratam-se de um ato antidemocrático. Reis e o MCCE integram, ao lado de outras 106 organizações nacionais, como a OAB e a CNBB, a coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas.
Nesta entrevista a CartaCapital, 23-02-2104, o juiz detalha o objetivo da aliança: conseguir 1,5 milhão de assinaturas e levar aos deputados um projeto popular de reforma política, que preveja mais transparência nas doações partidárias e o fim do financiamento por empresas, visto como um caminho para empreiteiras e outras empresas "se aproximarem perigosamente da máquina pública".
Eis a entrevista.
O projeto de reforma política que está no Congresso, feito pelo ex-deputado federal Candido Vaccarezza (PT-SP) e defendido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é adequado para as necessidades do Brasil?
É preciso igualar as chances de disputa. Se essa não for a premissa mais elementar da reforma, é porque essa reforma está indo no caminho antidemocrático. Não há democracia com chances de igualdade na disputa eleitoral atual. E a proposta delineada pelo deputado Vaccarezza, e que agora conta com toda a boa vontade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tem justamente o objetivo de não apenas manter as doações empresariais, como protegê-las, dando-lhes forma constitucional. E parte de uma falácia, a de que cada partido escolherá a sua forma de financiamento. Mas como alguém vai optar pelo uso de recursos públicos, se outro partido vai optar pelo uso de recursos privados num volume incontrolável?
A que o senhor atribui o ímpeto pela aprovação deste projeto?
O incentivo a esse projeto tem o objetivo claro de impedir a sequência do julgamento que acontece no Supremo. Esse processo está vindo de encomenda, para um fim particular, que é impedir a aplicação da Constituição de 1988, como a sociedade brasileira quis que ela fosse feita. O que se pretende agora é subverter uma das partes mais importantes da Constituição, que conclui que pessoas jurídicas não podem doar para campanhas.
O senhor diz que as eleições hoje são baseadas no abuso de poder econômico. Poderia explicar isso melhor?
O dinheiro não se apresenta de forma neutra nas campanhas, mas de forma orientada por interesses não políticos ou democráticos e sim que apresentam a conquista de lucros. E, além disso, não participa de forma sutil do processo, pois chega à campanha desequilibrando a disputa em favor dos poucos que foram escolhidos pelas empresas, para representar os seus interesses e não os interesses do eleitorado.
Qual é melhor modelo de financiamento de campanha para o Brasil?
Um modelo misto e essencialmente público, mas ao qual se possa acrescentar uma carga de doações de pessoas físicas, feitas de maneira completamente transparente e fiscalizada. Essas doações serão de pequenos valores, no máximo de 400 reais, para impedir que algum detentor de grandes fortunas venha tentar substituir o papel das empresas e cause o desequilíbrio do pleito. Além disso, nós defendemos que as doações feitas por pessoas físicas não sejam a cada candidato, mas ao partido político, que fica obrigado a distribuir igualitariamente aquela doação.
Como é o projeto defendido pela coalizão?
Nós elaboramos um projeto com mudanças baseadas no texto constitucional. Foi possível elaborar um projeto de lei ordinária, no qual se apresenta por iniciativa popular, seguindo o exemplo da lei da Ficha Limpa. Já temos 600 mil assinaturas e vamos até o final, coletar 1,5 milhão, que é necessário hoje para apresentar um projeto direto do povo no parlamento.
De que forma a população pode participar da reforma política?
Nós adotamos duas posturas. A primeira de mobilizar a sociedade sobre a importância de vencer essa tentativa antidemocrática de parte da Câmara de aprovação do projeto do Vaccarezza e sensibilizar as bancadas com quem nós temos mantido contato. Mas nós também não deixamos de adotar outra providência. Nós já apresentamos o mesmo texto da lei, com a assinatura de 164 deputados federais de todos os partidos, para discussão parlamentar, de forma que o debate já comece a acontecer. Inclusive, por reivindicação de parlamentares de vários partidos, o Eduardo Cunha afirmou que todos os projetos de reforma política serão votados, inclusive o nosso.
Por que alguns parlamentares têm receio da reforma política popular?
Na verdade, se nós formos analisar a projeto do Vaccarezza, chegamos à conclusão de que ele representa uma não reforma. É um conjunto de medidas que busca apresentar-se como uma reforma política, mas que não tem o poder de mudar absolutamente nada nas relações que já acontecem. Pelo contrário. Medidas como colocar as eleições ocorrendo juntas, por exemplo, voltam ao centro da questão, que é o abuso do poder político e econômico. Até mesmo a reeleição, para diversos cargos, poderia ser aceitável, se não houvesse o abuso do poder. O centro do debate está sendo evitado, que é quem financia as campanhas e também como se vota nas eleições parlamentares. Essas listas abertas, da maneira como ocorrem, são grosseiramente contrárias aos interesses da sociedade brasileira.
Por que o atual sistema de votação para o Legislativo é contrário à sociedade brasileira?
O modelo de votação atual não é transparente. O eleitor não tem a menor noção do que de fato está fazendo. E não tem como adquirir essa noção. O nosso sistema é ruim. Eu, que me considero uma pessoa extremamente interessada no assunto, muito preocupado com o sistema do voto, me sinto angustiado quando vou votar para deputado federal, estadual e vereador, porque nosso modelo gera o voto imprevisível. O eleitor não tem como ter certeza de qual vai ser o resultado, não tem certeza para quem será dirigido seu voto. Um exemplo: nas eleições de 2010, 29% dos eleitores do Distrito Federal escolheram os deputados distritais. Significa que 71% não votaram nos eleitos, mas tiveram os seus votos aproveitados indiretamente pelos eleitos, por causa do sistema. É por isso que a sociedade tem às vezes a sensação de que "eles não me representam".
Como a compra de votos e apoio político influencia o comportamento eleitoral da população?
Especialmente nas eleições parlamentares, paga-se por apoio, e dá-se a isso o nome de estrutura de campanha. Só que na verdade, quem não oferece a tal estrutura de campanha não obtém apoio, de tal maneira que o sistema "cospe" aquele que tem menos dinheiro. E abre avenidas iluminadas para os que chegam com os milhões das mega empreiteiras, e outras empresas interessadas em se aproximar perigosamente da máquina pública. Passa-se a imagem de que a competição é econômica, em torno do quem arrecada mais. E essa mensagem chega até os líderes políticos locais e até o eleitor, que vêem essa corrida como um mercado eleitoral.
Por que o sistema vigente é uma "máquina de escândalos", como o senhor diz?
Nós precisamos aproveitar didaticamente e politicamente do episódio da Lava Jato, por exemplo. Para ilustrar o tipo de relação que é incentivada ao extremo pela maneira como nós financiamos as nossas campanhas. Não é possível negar a gravidade dos fatos ocorridos lá, mas é importante aproveitar os fatos e tentar transformar isso não só num processo criminal, que é também, mas numa questão que vai além disso. A Operação Lava Jato tem um efeito, eu diria, até pedagógico. As práticas que estão ali denunciadas são as mesmas que acontecem até mesmo nas eleições dos municípios mais pobres da Federação. Essas relações econômicas entre o público e o privado se repetem.