Nosso primeiro texto de hoje é a metade inicial de uma homilia dominical do bispo mártir Oscar Romero, de El Salvador. Datada de 1978, consiste no comentário e atualização das leituras bíblicas do ciclo litúrgico “B” (o mesmo deste Advento de 2014, no caso em seu 3º domingo, que neste ano cai em 14/12). O tema central é a encarnação, realidade de fé que corresponde ao fato de que o próprio Deus assume inteiramente a nossa carne, isto é, a nossa realidade humana, faz-se literalmente carne em nossa História, participa desde dentro de nossa condição. O Emanuel (Deus conosco) livremente se torna um de nós e peregrina com a humanidade. Por isso a Carta aos Hebreus pode afirmar de Jesus, o Verbo eterno de Deus encarnado, que não se envergonha de ser chamado de nosso irmão e de fato Ele o é (cf. Hb 2, 11b e seguintes).
Além disso, as obras de Arte são patrimônio comum da humanidade e expressam, em liberdade criativa, algo do mistério geral que nos envolve. Fé e Arte podem mutuamente haurir bons frutos de um diálogo respeitoso, aberto e humanizador. E, desde a experiência da Fé, podemos reconhecer que nada de humano é alheio a ela, pois tudo o que ajuda a nos humanizar colabora ao mesmo tempo na realização do Reinado de Deus. Do mesmo modo, a mensagem e a prática da Fé só serão de fato Boa Notícia (Evangelho) se, inseparavelmente, vão efetivando o Bem da pessoa humana.
São textos para a mente e para o coração. Bom proveito!
O Verbo se fez carne e habitou entre nós
(homilia dominical de monseñor Óscar Arnulfo Romero, pronunciada na catedral de San Salvador, El Salvador, no 3º Domingo do Advento, 17 de dezembro de 1978) 1*
Leituras (ciclo litúrgico B): Isaías 61, 1-2a. 10-11
1 Tessalonicenses 5, 16-24
João 1, 6-8, 19-28
Queridos irmãos, estimados rádio ouvintes.
Já é o terceiro domingo que estamos tratando de concretizar, nestas três atitudes, o espírito deste tempo chamado de Advento: 1) Fé e vigilância: porque o Senhor se aproxima e queremos esperá-lo; sentimos que o Senhor está perto e necessitamos fé para experimentar a proximidade de Deus. 2) Fome e pobreza espiritual: não se pode desejar comer quando não se tem fome, não se pode ter necessidade de Deus quando se é orgulhoso, autossuficiente. Só os pobres, só os que têm fome serão saciados. Este é o espírito de pobreza do qual Maria, a Virgem cujo cântico repetimos hoje no salmo responsorial, expressa em nome de toda a humanidade: a necessidade e a fome que temos de Deus; felizes os que veem chegar o Natal como o faminto que recebe algo para comer [...]; 3) É uma atitude positiva; uma atitude de presença e de missão no mundo; virtude ou atitude missionária: fazer presente o divino que o mundo necessita.
Quero sublinhar em nossa reflexão de hoje esta terceira atitude: a presença (porque, precisamente, as leituras que acabam de escutar destacam o mistério da Encarnação, que é o que celebramos). A Encarnação é o mistério que dá sentido, dá mística, dá unidade a toda esta expectativa do Natal. E não compreenderemos o Natal se não temos fé no grande mistério da Encarnação. A Encarnação é a presença de Deus nas realidades do mundo, feito Ele um ser humano que se chama Cristo.
Este será o tema de nossa homilia de hoje, com palavras do Evangelho: O Verbo se fez carne e habitou entre nós. E vamos desenvolver esse tema, como o fazemos de costume, assinalando três pensamentos: Cristo é o Verbo de Deus que se fez humano; a Igreja, nós, somos a prolongação desse mistério da Encarnação de Cristo (o Deus que se fez humano nas entranhas de Maria segue encarnando-se no mundo por meio da Igreja, a qual prolonga essa Encarnação); e o terceiro pensamento, com o qual vamos nos aproximar do altar hoje, é esse: Deus se fez humano para que nós humanos possamos nos fazer divinos.
Cristo é o Verbo de Deus que se fez humano
O primeiro pensamento, pois, é: Cristo é o Verbo feito carne. As leituras de hoje nos falam que esse Cristo (do qual nos diz a grande testemunha junto ao rio Jordão, João Batista) não é um ser humano qualquer; há nele uma natureza misteriosa, divina. João Batista (quando o descreve no Evangelho de São João) diz [cf. Jo 1, 6-8]: “Houve um homem enviado por Deus para dar testemunho da luz; ele não era a luz, mas dava testemunho da luz”. Quem lê o Evangelho de São João se dá conta de como joga com esses simbolismos preciosos. Por exemplo, neste caso, a luz é Deus, e João apresenta seu Evangelho como a luz que veio ao mundo e que provocou duas reações: em uns, a fé, os que seguiram; e em outros, o rechaço, os que preferiram as trevas à luz. Quando vem o testemunho desse homem, João Batista, dizendo que Jesus é a luz, está dizendo: “Este é Deus”. Ante Ele vão reagir os ouvintes: seguindo-O, como quem tem necessidade de luz à noite; ou rejeitando-O, afundando-se ainda mais nas trevas, como aqueles a quem a luz incomoda a vista. Por aí vemos que essa a leitura de hoje nos diz que Cristo é Deus verdadeiro.
Também outras palavras do Evangelho de hoje [cf. Jo 1, 21-23]: “És tu Elias?” - perguntam a João. “Não sou!”; “És tu o profeta ou o profetismo que já desaparecera em Israel? Acaso contigo voltou esse carisma de falar em nome de Deus, ser profeta?” “Não!” - diz diretamente João Batista. “Quem és, pois, para podermos dizer a quem nos enviou?” E João se declara, então: “Eu não sou mais do que a voz que clama no deserto: preparai os caminhos do Senhor”.
Reparem nesse diálogo... Quem leva em conta o estilo de São João se encontra com uma presença nova de Deus em Cristo. Essa negativa de João Batista - “Não sou, não!” - nos está convidando a outra afirmação que logo vão ouvir no Evangelho de São João, quando buscam a Jesus e Ele simplesmente se identifica [cf. Jo 4, 10.26; 8, 12; 14, 6]: “Eu sou!”; “eu sou a Luz”; “eu sou o Caminho”; “eu sou a Água para a sede”. Quantas páginas belíssimas, místicas, evocadoras do divino, evocadoras daquele “Eu sou” de Deus na Bíblia do Antigo Testamento, quando Moisés pergunta [cf. Ex 3,13-14]: “Quem és Tu, para que eu possa responder ao meu povo que é Deus quem me envia?”. “Dirás a eles: Eu sou Aquele que sou”. Esse “Eu sou” é a afirmação de uma presença na criação que não é criatura, que é Criador; uma presença imanipulável, uma presença ante a qual tudo o mais é negação. João Batista, que dirá que não é digno de desatar-lhe as correias de sua sandália, diz [cf. Jo 1, 27]: “Eu não sou”. Ninguém é! Só Ele é! Ele que existia!
E vem a terceira proclamação do divino de Cristo quando João Batista diz [ cf. Jo 1, 23]: “Eu não sou mais do que a voz que clama!” Que bela consideração faz Santo Agostinho [Sermões, 288, 3; PL 38, 1304]. “A voz é o ruído que chega até o ouvido, mas nessa voz vai a Palavra, o Verbo, uma ideia”. Nesta manhã, isso está acontecendo aqui na Catedral e através da rádio. Escutam a voz, mas a voz, uma vez que deixa de se emitir, termina; é um ruído; mas fica uma palavra, a palavra é a ideia.
Esta sublime filosofia, na linguagem de São João evangelista, quer dizer: todos os que pregam a Cristo são voz, mas a voz passa, os pregadores morrem; João Batista desaparece, só fica a palavra. A palavra fica e este é o grande consolo de quem prega: minha voz desaparecerá, mas minha palavra, que é Cristo, ficará nos corações que a quiseram acolher.
O verbo é o pensamento do ser humano […] Quem pensa está concebendo. Como uma mulher grávida concebeu, o ser humano que pensa, concebe. E assim como uma mulher dá à luz o que concebeu em suas entranhas, o pensamento também dá á luz a palavra que leva a voz. […] Não temos palavras humanas para descrever esse mistério de Deus eterno pensando-se a si mesmo, e esse pensamento é seu Filho, o Verbo. Pronuncia essa Palavra e ficam criadas as coisas, porque sua Palavra é onipotente, é poderosa. Tudo quanto existe foi crido por Ele.
Irmãos, oxalá esta consideração não permaneça árida como una filosofia meramente teórica, mas o bonito é que esse Deus vivente, palpitante, pensa, pronuncia uma Palavra eterna que nos envolve em amor; e é seu Filho divino que se faz Palavra encarnada. Por isso São João Batista pode dizer esta frase que é como o cume do testemunho deste domingo [Jo 1, 26-27]: “No meio de vós está quem não conheceis. O que vem após mim existia antes que eu, e nem sou digno de desatar a correia de sua sandália”. Que bela confissão! “Antes que existisse, Ele já existia”. […] Que consistência a deste Verbo, a desta Palavra eterna de Deus!
Por isso, agora, temos que fazer um ato de confissão nessa anterioridade, nessa preexistência do Menino que vai nascer em Belém. Já existia antes que o concebera Maria em suas entranhas; como diz a famosa poesia da Divina Comédia [cf. Paraíso, Canto 33, 1]: “Mãe do teu criador!” És a única mulher que pode dizer: “Concebi em minhas entranhas um filho que já existia antes que eu. Criou a mim que sou sua mãe enquanto o humano, mas já existia”. Se perdemos esta perspectiva divina, eterna, onipotente, amorosa, o infinito de Deus, perdemos o verdadeiro sentido de Cristo. Foi de Cristo que disse São João [Jo 1, 15]: “Antes que eu existisse, Ele já existia”.
E na segunda leitura de hoje São Paulo nos fala de que nos façamos dignos do encontro definitivo com o Cristo; anuncia uma existência mais além da História, e que não terá fim. E, nesse caso, temos que Cristo, enquanto Deus, não tem princípio: existia. Assim começa o belo prólogo do Evangelho de São João [Jo 1, 1]: “No principio era o Verbo”. Reparem esse pretérito: era, já existia. No princípio, quando Deus começou as coisas, já existia, era. E agora São Paulo nos diz: “Quando terminar tua vida, quando terminar tua história, quando terminar a história da humanidade, oxalá seja digna de se encontrar com esse rio eterno que é Cristo para seguir vivendo por toda a eternidade”. Assim sucede que a História não é mais do que um pedacinho que começou e se acabará, mas Cristo enquanto Deus é o Senhor da História, porque existia antes da História e existirá depois dos mundos; não teve princípio nem terá fim. Este é o Verbo que se faz humano. Esta é a Encarnação: se faz carne.
São João usa também outra palavra de imenso sabor bíblico e também de filosofia grega: carne. A carne é o ser humano concreto; a carne somos os que estamos aqui, pessoas humanas, nas quais se pode ver a marca do tempo: a criança que começa a viver, o jovem já robusto, o velho que está terminando sua existência. A carne vai sendo marcada pelo tempo. É a situação humana concreta: o ser humano marcado pelo pecado, angustiado por suas situações; o ser humano que é pátria com uma história que parece que se meteu num beco sem saída. A carne somos todos os que vivemos encarnados. A carne, essa carne frágil, essa carne que tem princípio e que acaba, que adoece e morre, que peca, que cai em desgraça ou é feliz, segundo sua obediência a Deus: isso se fez o Verbo; fez-se carne.
Um dia explicávamos aqui uma palavra que tratei de analisar: a kenosis. Recordarão; a kenosis é a humilhação, é esvaziamento, o desfazer-se, o desaparecer. Com essa palavra se quer expressar esse ato de humildade do Deus que é infinito e eterno e se encerra no ventre de uma jovenzinha para nascer carne. O Menino que vamos adorar em Belém é carne, frágil carne de criança; mas nessa frágil carne, como num envoltório de papel ordinário, está um grande presente: “O Verbo se fez carne”. O mais belo de Cristo não é sua carne, mas sem carne não é Cristo. Carne que quer assumir em si tudo o que é carne nossa: “Igual a nós em tudo, menos no pecado”, diz a teologia de Paulo.
E quando nos novos tempos, o Concílio Vaticano II diz que o mistério do ser humano não pode ser entendido sem o mistério do Verbo encarnado, diz-nos o porquê [Gaudium et Spes, 22]: “N’Ele, a natureza humana foi assumida, e não destruída. Por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada ser humano. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado.” É de chorar de alegria e gratidão saber que esse Deus infinito se fez carne como eu e habitou entre nós. Se Cristo tivesse realizado a sua encarnação hoje, e hoje - em 1978 - fosse um homem de 30 anos, estivesse aqui na catedral, não o distinguiríamos entre todos vocês. Num homem de trinta anos, um roceiro de Nazaré, aqui na catedral, como qualquer roceiro de nossas comunidades rurais, estaria o Filho de Deus feito carne e não o conheceríamos. Em tudo semelhante a nós!
Mas esse Cristo, que é Deus (por quem foi criado o mundo), feito humano, eleva à categoria de Deus a todo ser humano. Será um novo conceito desta meditação. [...]
Neste tempo de Advento e de Natal não podemos deixar Maria de lado. Ninguém como Maria nos ensinará o espírito de adoração ante o Cristo, que é Verbo de Deus feito carne. Ninguém sentiu a experiência tão viva, de que em suas próprias entranhas o Verbo se fizera carne. Ela se ofereceu, em nome de toda a carne humana, o pequeno seio virginal, onde se encarna para assumir em si - como nos acaba de dizer o Concílio - todas as mãos dos trabalhadores, todos os cérebros dos pensadores, todos os corações dos que amam, todas as angústias dos que sofrem, todas as esperanças das pessoas, todas as alegrias humanas. Nada humano é alheio a Jesus Cristo, porque Ele se fez carne, quis assumir tudo o que significa a carne em sua dignidade de Filho de Deus.
Poderíamos prolongar muito essa meditação, irmãos. Convido-os a que, durante os dias de Natal continuem esta meditação: quem é esse Menino que nasce em Belém? E em vez de pensar tanto em presentes, em comilanças e em cartões de Natal (e coisas que fazem perder tempo e não deixam meditar), reflitam sobre isso que é o principal do Natal. Não deixemos que o comercializem, não deixemos que o profanem, que o paganizem. Vivenciemos o Natal com o espírito respeitoso e o veneremos em nosso lar, em nossa pobreza. [...] Eu sou a carne que Cristo assumiu. Bendito seja Deus que quis fazer parte de minha vida ao fazer-se carne como eu! [...]
1* ROMERO, Monseñor Óscar A. Homilías (tomo IV: ciclo B: 03/12/1978 a 17/06/1979). San Salvador: UCA editores, 2007, p. 63-83. O trecho aqui reproduzido corresponde às páginas 63 a 70, com algumas breves supressões, identificadas entre colchetes. Tradução: Rogério Mosimann da Silva.
Poemas natalinos em prosa e verso
Noite de Natal
(Eduardo Galeano)
[ In: GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 70 ]
Fernando Silva dirige o hospital de crianças, em Manágua.
Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes espocavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.
Fez um último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas, ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão:
– Diga para... – sussurrou o menino. – Diga para alguém que eu estou aqui.
INQUÉRITO DE NATAL
(Pedro Casaldáliga)
Velho do capuz,
onde está o Menino
chamado Jesus?
Onde a Boa Nova,
pregador da sorte?
Com estrelas Philips
quem descobre o Norte?
Cadê o boi e a mula
para dar pousada,
aonde o latifúndio
levou a boiada?
Quem cultiva a Paz
quando a guerra rende?
Quem crê na Promessa
quando o banco atende?
Quem acolhe os Pobres,
se não está Maria?
Quem matou a Noite
que nos trouxe o Dia?
Velho do capuz,
diabo ocidental,
onde está Jesus
que fez o Natal?
O Menino Jesus
(Adélia Prado)
[ In: PRADO, Adélia. A duração do dia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 69 ]
Sofri sozinha este insuportável,
quando me trouxeram o menino
que parecia dizer
“me pega, diz que não sou órfão
que tenho pai e mãe,
me fala que não sou um usurpador”.
Atracou-se comigo até dormir.
Mesmo rígida,
fui sua cruz mais branda.
CARTÃO DE NATAL PARA MARIE NOËL
(Adélia Prado)
[ In: PRADO, Adélia. A duração do dia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 91 ]
Nem as vidas de santos me encorajam
a abstinências e jejuns.
Ele, Jesus, perdoa-me,
pois veio aos pecadores,
aos que se escondem em árvores,
ou debaixo de camas como eu.
Até rainhas, se pretendem respeito,
precisam conhecer o seu fogão.
Conheço mais, conheço fome e culpa.
Meu estômago mói sem trégua,
só não tritura medo,
farinha que já vem pronta.
Mesmo imitando lâmpadas de azeite,
a lâmpada no sacrário é piedosa.
O padre não tem culpa, estudou em Roma
mas vem de família pobre,
julga pecar quando concede à beleza
o trono que lhe é devido.
Provo em desordem as emoções mais turvas.
Estou confusa e ansiosa,
mas de verdade desejo,
com uma ceia copiosa,
Feliz Natal para todos.