Temos acompanhado, nos últimos dias, os intensos debates sobre a redução da maioridade penal, provocados pela votação desta matéria no Congresso Nacional. A Capelania, atenta a este tema e em comunhão com a Igreja do Brasil, apresenta três artigos que remetem a votação que rejeitou na madrugada desta quarta-feira a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos para crimes hediondos.
Oferecemos um fragmento da Mensagem do Conselho Permanente da CNBB, órgão mais importante dessa Conferência, depois da Assembleia Geral, disponibilizado por Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, à sociedade e às comunidades eclesiais.
Em seguida, apresentamos a reportagem de Afonso Benites, publicada por El País que aborda a tensão em torno deste tema e seus desdobramentos.
Finalmente, suscitamos a leitura da reportagem que aborda a Carta Aberta destinada aos parlamentares evangélicos brasileiros com o posicionamento de líderes evangélicos contrários à redução. Assinada por diversas entidades religiosas e evangélicas, o documento contra a PEC 171/93, foi entregue aos parlamentares evangélicos, em Brasília.
A Capelania convida todos para refletir à luz da missão da Universidade Católica de formar seres humanos, profissionais orientados pelos valores cristãos, a serviço da pessoa e da sociedade; como também pelos valores da justiça e da promoção da vida.
Os textos foram publicados pelo Instituto Humanitas da Unisinos.
Boa leitura!
A Redução da Maioridade Penal
Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger
Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil
Tendo como subtítulo uma frase de Jesus Cristo no Sermão da Montanha: “Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6), o Conselho Permanente da CNBB, que é o órgão mais importante dessa Conferência, depois da Assembleia Geral, aprovou uma Mensagem, da qual extraí as passagens que seguem:
"Temos acompanhado, nos últimos dias, os intensos debates sobre a redução da maioridade penal, provocados pela votação desta matéria no Congresso Nacional. Trata-se de um tema de extrema importância porque diz respeito, de um lado, à segurança da população e, de outro, à promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. É natural que a complexidade do tema deixe dividida a população que aspira por segurança. Afinal, ninguém pode compactuar com a violência, venha de onde vier.
É preciso, no entanto, desfazer alguns equívocos que têm embasado a argumentação dos que defendem a redução da maioridade penal como, por exemplo, a afirmação de que há impunidade quando o adolescente comete um delito e que, com a redução da idade penal, se diminuirá a violência. No Brasil, a responsabilização penal do adolescente começa aos 12 anos. Dados do Mapa da Violência de 2014 mostram que os adolescentes são mais vítimas que responsáveis pela violência que apavora a população. Se há impunidade, a culpa não é da lei, mas dos responsáveis por sua aplicação.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), saudado há 25 anos como uma das melhores leis do mundo em relação à criança e ao adolescente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade. As medidas socioeducativas nele previstas foram adotadas a partir do princípio de que todo adolescente infrator é recuperável, por mais grave que seja o delito que tenha cometido. Esse princípio está de pleno acordo com a fé cristã, que nos ensina a fazer a diferença entre o pecador e o pecado, amando o primeiro e condenando o segundo.
Se aprovada a redução da maioridade penal, abrem-se as portas para o desrespeito a outros direitos da criança e do adolescente, colocando em xeque a Doutrina da Proteção Integral assegurada pelo ECA. Poderá haver um “efeito dominó” fazendo com que algumas violações aos direitos da criança e do adolescente deixem de ser crimes como a venda de bebida alcoólica, abusos sexuais, dentre outras.
A comoção não é boa conselheira e, nesse caso, pode levar a decisões equivocadas com danos irreparáveis para muitas crianças e adolescentes, incidindo diretamente nas famílias e na sociedade. O caminho para pôr fim à condenável violência praticada por adolescentes passa, antes de tudo, por ações preventivas como educação de qualidade, em tempo integral; combate sistemático ao tráfico de drogas; proteção à família; criação, por parte dos poderes públicos e de nossas comunidades eclesiais, de espaços de convivência, visando a ocupação e a inclusão social de adolescentes e jovens por meio de lazer sadio e atividades educativas; reafirmação de valores como o amor, o perdão, a reconciliação, a responsabilidade e a paz.
Consciente da importância de se dedicar mais tempo à reflexão sobre esse tema, também sob a luz do Evangelho, o Conselho Permanente da CNBB, (...) dirige esta mensagem a toda a sociedade brasileira, especialmente, às comunidades eclesiais, a fim de exortá-las a fazer uma opção clara em favor da criança e do adolescente. Digamos não à redução da maioridade penal e reivindiquemos das autoridades competentes o cumprimento do que estabelece o ECA para o adolescente em conflito com a lei.
Que Nossa Senhora, a jovem de Nazaré, proteja as crianças e adolescentes do Brasil!"
Em revés para Cunha, Câmara rejeita reduzir maioridade penal no Brasil
Faltaram apenas cinco votos dos 308 necessários. Num desfecho pouco esperado, e após dia intenso de protestos e pressão do Governo Dilma Rousseff, a Câmara dos Deputados rejeitou na madrugada desta quarta-feira a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Por 303 votos a 184 e 3 abstenções, os deputados federais foram contrários à Proposta de Emenda Constitucional 171 de 1993, que depois de duas décadas tramitando na Casa voltou em cheio ao debate nacional neste ano por iniciativa do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB -RJ).
A reportagem é de Afonso Benites, publicada por El País, 01-07-2015.
Por se tratar de uma PEC, a medida precisava de maioria qualificada, um total de ao menos 308 dos 513 votos dos parlamentares, e foi justamente isso que Cunha e outros favoráveis à medida, como a bancada ligada a ex-policiais, parte de evangélicos e parte da oposição, não conseguiram após um dia inteiro de manifestações reprimidas, debates inflamados e tumulto com parlamentares. A votação desta quarta não era a definitiva, mas era um marco na discussão do tema de grande apelo popular. Se passasse, a proposta ainda precisaria ser analisada em uma segunda votação pela Câmara e votada duas vezes no Senado Federal antes de passar a vigorar.
O texto votado foi um substitutivo, uma versão alterada pelo relator da matéria e prevê que a redução da maioridade penal vale apenas para os crimes hediondos e dolosos contra a vida. Assim, só seriam punidos os infratores que cometerem homicídios, estupro, tráfico de entorpecentes e roubo qualificado. No caso de condenação nessas situações, os jovens de 16 e 17 anos deveriam ficar presos em estabelecimentos diferentes dos outros adolescentes e não poderiam seguir para penitenciárias onde só há adultos. Ou seja, teriam de ficar detidos em um ambiente que atualmente não existe em nenhum Estado brasileiro.
Agora restará aos deputados analisar PEC que reduz a maioridade penal para todos os delitos, que tem menos aceitação dos partidos que votaram favoravelmente à redução para crimes hediondos. A base governista queria aproveitar e já votar essa PEC na madrugada de quarta, para não correr o risco de que a oposição consiga os votos necessários para aprová-la. Cunha, entretanto, adiou a votação, alegando que já estava tarde para continuar. O presidente da Câmara, que durante meses anunciou a intenção de votar a proposta neste semestre, nesta terça repetia que seu compromisso era com a votação no tema, não com o resultado, já prevendo a possível rejeição. De todo modo, será difícil afastar o gosto de derrota em uma votação que botou do mesmo lado bancadas de parlamentares adversárias.
Membros do PT e alguns do PSDB foram contra a redução da maioridade penal. Entre os que defendiam a redução, o argumento era de que a delinquência juvenil ocorreria deveria ser punida mais duramente. Também justificavam que a maioria da população brasileira era a favor da diminuição. De acordo com a última pesquisa Datafolha que analisou essa questão, 87% dos brasileiros gostaria que a idade penal fosse reduzida para 16 anos.
O Governo Dilma Rousseff (PT) articulou fortemente para que sua bancada derrubasse a proposta. Durante a manhã de terça-feira, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, concedeu uma entrevista coletiva para se posicionar contra a mudança legislativa. Ele disse que a aprovação da medida seria uma “bomba atômica para o sistema prisional dos Estados” e que o déficit de vagas nas penitenciárias, que hoje é de 220 mil vagas, só aumentaria.
Diante da pressão para mudanças na atual lei, a intenção do Governo é aprovar outras propostas que endureçam as punições de adolescentes, como uma que tramita no Senado e prevê o aumento do tempo máximo de internação de três para oito anos.
Tensão
No entorno do Congresso Nacional, cerca de 6.000 manifestantes protestavam contra a redução da maioridade penal. As galerias da Câmara, que costumam ter acesso livre ao público, foram parcialmente fechadas e só podia entrar quem tivesse uma senha previamente distribuída pelas bancadas partidárias. Nem mesmo membros de entidades estudantis que conseguiram um habeas corpus autorizando a entrada tiveram acesso ao plenário.
Quase 200 pessoas protestaram em um dos acessos à galeria por conta dessa decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). No empurra-empurra em um dos acessos, o deputado Heráclito Fortes (PSB-PI) foi derrubado quando tentava entrar no local para participar das discussões.
A decisão de fechar o espaço se baseou no que ocorreu no início do mês, quando seguranças da Câmara usaram spray de pimenta para afastar estudantes que se manifestaram em uma reunião da comissão parlamentar que analisava a proposta. Entre os que conseguiram assistir aos debates na noite de terça-feira, havia grupos favoráveis e contrários à proposta.
“Pula, sai do chão, quem é contra a redução”
Bastou um segundo para que o Plenário da Câmara explodisse em êxtase após o painel de votação apontar que, por apenas cinco votos, a proposta de emenda pró-redução da maioridade penal havia sido rejeitada.
A reportagem é de Talita Bedinelli, publicada por El País, 01-07-2015.
Das galerias, jovens ligados a entidades estudantis, movimentos sociais e partidos de esquerda, que só conseguiram garantir suas presenças graças a uma liminar do Supremo Tribunal Federal, puxaram um coro de gritos e cantorias que logo contagiou os deputados. “Pula, sai do chão, quem é contra a redução”. Os homens engravatados obedeceram. E se abraçaram, entre gritos de “não, não, não à redução!”. Há semanas esses mesmos jovens transitavam em campanha por Brasília segurando faixas de protesto até nos portões do aeroporto, na expectativa de sensibilizar qualquer parlamentar nem que fosse na última hora.
A alegria não agradou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que logo mandou esvaziar as galerias. Os jovens saíram pacificamente, mas não interromperam a comemoração.
Nas redes sociais do parlamentares contrários à redução, o clima também era de comemoração intensa. “Vitória espetacular da democracia e da liberdade na votação da maioridade. Cara de tacho de Cunha e da bancada da bala é imagem da desolação”, afirmou Ivan Valente (PSOL). “A RAZÃO VENCEU O ÓDIO! O lugar de crianças e adolescentes não é nos presídios, mas nas escolas”, disse Jean Wyllys (também do PSOL).
Até essa madrugada, nem Eduardo Cunha, nem Jair Bolsonaro, os grandes defensores da redução, haviam se manifestado nas redes.
Líderes evangélicos contra a maioridade penal
“Deus sabe quando nesse país os prisioneiros são massacrados sem compaixão. Sim, o Senhor sabe quando torcem a justiça num processo” (Lamentações 3: 34-36). É com este trecho bíblico que a Carta Aberta destinada aos parlamentares evangélicos brasileiros tem início.
A reportagem é de Marcelo Pellegrini e publicada por CartaCapital, 30-06-2015.
Assinada por diversas entidades religiosas e evangélicas, o documento contra a PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, está sendo entregue a todos os parlamentares evangélicos, em Brasília. "Nossa intenção é constranger os deputados e senadores mostrando como a redução da maioridade penal é incoerente. Não tem como um cara que acredita na Bíblia defender que a única solução para os nossos jovens é o encarceramento", afirma Welinton Pereira, pastor evangélico e assessor da organização humanitária Visão Mundial.
Em tom crítico, a carta afirma que o Congresso quer endurecer uma das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é a internação, sem cumprir as outras seis. “O sistema penitenciário brasileiro não tem cumprido sua função social de controle, reinserção e reeducação. Assim, enviar jovens mais cedo para o sistema prisional é decretar a falência de nossa sociedade em prover oportunidades de vida digna para nossa juventude e condenar nosso futuro como nação", afirma o documento.
De acordo com a carta, tanto os parlamentares quanto a sociedade estariam sendo “hipócritas ao propor a redução da maioridade penal enquanto não garantirmos todas as oportunidades de desenvolvimento para as nossas crianças e adolescentes".
"Tem muita gente nessa bancada que está vendo um livro grosso e está confundindo com a Bíblia", afirma o deputado estadual evangélico Carlos Bezerra Jr. (PSDB-SP). "Eles estão confundindo a Bíblia com Game of Thrones, estão confundindo Jesus com Darth Vader [personagem de Guerra nas Estrelas]. As prioridades de Jesus são outras. A ótica de Jesus é dar proteção para o excluído e não o inverso", completa.
Segundo Bezerra, há uma onda de desinformação oportunista se aproveitando do medo população com a violência para angariar votos. "Porque esses deputados não defendem com a mesma veemência a garantia da vaga na creche para o filho da mãe pobre ou uma melhor educação. Isso é o que resolve o problema da violência, não a cadeia", afirma.
O deputado paulista não foi o único líder evangélico a manifestar indignação diante das pautas conservadoras impostas pela bancada da Bíblia, em Brasília. Ao lado de Bezerra outras lideranças evangélicas se reuniram em São Paulo para lançar a mobilização contra a redução da maioridade penal.
Para quem estranha o posicionamento do movimento, os organizadores lembram a presença das igrejas evangélicas em projetos e discussões sociais. "Faz tempo em que estamos na estrada, não é uma questão de modinha. Essa guerra começou em 1988, com a Constituição Federal e depois em 1990, com o ECA [Estatuto da Criança e Adolescente]", afirma Levi Correa, pastor evangélico da Igreja Batista. "Nossa caminhada também é como movimento social", completa.
O posicionamento de pastores contra a bancada da Bíblia traz nuances e complexidade a um setor que é entendido como um bloco único e coeso pela opinião pública. "A Igreja evangélica não é a que está na TV, no Congresso e na capa de revistas. É a que está nas periferias fazendo trabalho social", afirma o pastor Ed René Kivitz, que defende o fim do discurso bélico encampado por parlamentares.
Com isso, comunidades evangélicas se unem à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contra a redução da maioridade penal. "Oportunistas com motivações suspeitas se juntam, formam uma bancada da Bíblia, que junto com a bancada do Boi, da Bala e da Jaula, formam a frente mais horrorosa que esse País já teve e o pior: com camaradas que ainda se dizem evangélicos. Diante disso, não podemos ficar quietos", explica o pastor Levi Correa.
O texto divugado pelas entidades evangélicas reforça a incapacidade do Estado em oferecer instituições preparadas para reeducar os jovens infratores. “Muitos adolescentes, que são privados de sua liberdade, não ficam em instituições preparadas para sua reeducação, reproduzido o ambiente de uma prisão comum", diz o documento.
Atualmente, o adolescente pode ficar até 9 anos em medidas socioeducativas, sendo três anos de internação, três em semiliberdade e três em liberdade assistida. Dessa forma, afirma o texto, a solução não passa pela redução da maioridade penal, mas sim pela efetivação do ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), órgão desenvolvimento para atender o menor infrator.