Nesta semana a Capelania dá seqüência aos temas relacionados tanto ao eixo “Igreja e Sociedade como“Igreja e Reflexões Pastorais”. Oferecemos três artigos sobre a beatificação de Dom Óscar Romero, todos disponibilizados pelo IHU.
No dia 23 de maio deste ano, mais de 200 mil pessoas foram às ruas de San Salvador celebrar a beatificação de Romero, processo que foi retomado pelo Papa Francisco. Diante deste momento ímpar, queremos fazer “eco” a mensagem do bispo assassinado como também proporcionar a reflexão sobre este acontecimento.
O primeiro texto “A religião como crítica à opressão -A figura messiânica de Óscar Romero” aborda sua atuação e trajetória na Igreja de forma breve.
O seguinte “Multidão vê Dom Romero ser beatificado como um mártir e herói dos pobres” apresenta a receptividade de católicos, evangélicos e da população como um todo, deste fato histórico em San Salvador.
Por último apresentamos o artigo “Luzes e sombras da beatificação de dom Romero” que discute sobre as alegrias, dificuldades e desafios da própria Igreja e do Papa Francisco em torno desta celebração ocorrida no mês passado.
Que este singelo convite à reflexão nos motive a pensar sobre a Igreja e como a mensagem de Romero pode ser atualizada em nossa realidade.
Boa leitura e reflexão.
A religião como crítica à opressão.
A figura messiânica de Óscar A. Romero (1917-1980)
“Houve a necessidade de que um Papa latino-americano reconhecesse que Romero foi um mártir da fé, que se lançou defendendo politicamente seu povo reprimido, para que, agora, possa ser venerado como figura messiânica exemplar. Nem João Paulo II, nem Bento XVI podiam desafiar a oligarquia salvadorenha, latino-americana e norte-americana dando esse passo. Agora é possível, ainda que nunca se saiba por quanto tempo!”, escreve o filósofo Enrique Dussel, em artigo publicado pelo jornal La Jornada, 23-05-2015. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Em inícios deste mês, estive nas universidades John Hopkins, de Frankfurt e de Heidelberg, dando um ciclo de conferências. O professor Ulrich Duchrow, da última casa de estudos mencionada, informou-me sobre recentes investigações em torno das circunstâncias históricas que podem estar na origem das religiões universais (como a mesopotâmica e egípcia, e no taoísmo, o budismo, os profetas de Israel, o cristianismo e o islã) e da própria filosofia (como entre os pré-socráticos). É um tema apaixonante neste começo do século XXI, que tem relação com o que o professor de Frankfurt, Matthias Lutz-Bachmann, denomina, em seu último livro de 2015, que me presenteou: uma idade pós-secular.
Trata-se de uma conjuntura econômica e política na qual as antigas civilizações nomeadas (de Mesopotâmia e Egito, na China, Índia, Palestina e Grécia) chegaram a uma maturidade estrutural que lhes permitiu começar a acunhar moedas metálicas (de prata e ouro, especialmente), avalizada por Estados imperiais que as usavam, entre outros fins, mas principalmente, para o pagamento de salários de soldados dos exércitos, frequentemente de mercenários.
Isto exigia o desenvolvimento da mineração (destes metais preciosos) e abria a possibilidade para mercados de grande extensão geopolítica, já que tais moedas metálicas tinham o valor que significavam (uma moeda de prata possuía o mesmo valor, tanto de moeda como joia). Esse mercado monetarizado se articulava, igualmente, com o direito à propriedade privada da terra, como também com a possibilidade de se pedir créditos, colocando como garantia a própria terra.
Quando o campesinato não podia pagar a dívida e o juro acordado, o prestamista se apropriava dos bens do trabalhador, que ainda poderia ficar como escravo, caso a dívida fosse de maior valor. Assim, apareceram estratos muito ricos da sociedade que acumularam riqueza e a maioria de um povo empobrecido. Os críticos desta situação de miséria das massas empobrecidas tiveram rápida e entusiasta resposta das vítimas dessa situação de injustiça. Desta forma, surgiram as religiões universais e os primeiros filósofos. Em Mileto, foi cunhada, pela primeira vez, a moeda de metal precioso na Hélade, e ali surgiu o primeiro filósofo grego, Tales de Mileto (de família fenícia, diga-se de passagem).
Contra a opinião da Ilustração, se é verdade que as religiões se institucionalizam e fetichizam burocraticamente com o tempo, o retorno a suas origens ocorre intermitentemente na história das religiões. Na América Latina, a crítica da teologia, da Igreja e da religião fetichizadas, invertidas diria Marx, ocorreu graças a uma geração sumamente profética, que enfrentou a inversão do cristianismo.
O arcebispo de San Salvador, Óscar A. Romero, é um exemplo paradigmático dessa função, não só em sua pátria centro-americana, como também em toda América Latina e o sul pós-colonial mundial, nas tenebrosas décadas da repressão militar de ditaduras impostas pelos Estados Unidos (pelo Departamento de Estado e o Pentágono), entre 1964 e 1984.
Tive muitos contatos com dom Romero, a partir da década de 70 do século passado. Lembro-me de um curso para mais de 50 bispos (ele era bispo auxiliar em 1972) realizado pelo Celam, em Medellín. Naquele momento, eu era professor de história da Igreja na América Latina e lecionava esse tema junto com outros professores, com a finalidade de atualizar a reflexão desses bispos responsáveis pela Igreja em diversos países.
Esses cursos foram repetidos na Guatemala a Antiga, com a presença de 27 bispos. Dom Romero era o organizador desse encontro. Lembro-me de seu rosto sorridente, como o de um menino fazendo uma travessura, quando nos escutava observando a reação dos outros bispos, sendo muitos deles conservadores, que nunca tinham ouvido expor o cristianismo a partir das categorias da Teologia da Libertação. Lá estavam, convidados por Romero, jovens pensadores críticos (eu tinha 37 anos), como Juan Luis Segundo, Gustavo Gutiérrez, José Comblin, Segundo Galilea e tantos outros. Ele garantia a presença institucional.
Na conferência latino-americana de bispos, em Puebla (1979), dom Romero era o encarregado de redigir a parte histórica inicial do documento final. Formávamos equipes externas que elaborávamos textos que, depois, na assembleia, os bispos corrigiam e adotavam. Tocou-me redigir um desses textos; eles eram entregues a dom Romero, que os introduziu no indicado documento final. Por isso, apareceram figuras exemplares, como Bartolomé de las Casas, primeiro bispo de Chiapas, e dom Valdivieso, que foi assassinado em 1550, na Nicarágua, por causa de luta na defesa dos povos originários.
No entanto, dom Romero não havia dado o passo definitivo. Foi um fato inesperado que o lançou à esfera política, profética, messiânica. Tratou-se do assassinato de Rutilio Grande (1928-1977), nosso aluno nos cursos do IPLA, a partir de 1967, em Quito, organizados pelo Celam, com o mesmo grupo de professores que deram uma nova visão crítica do cristianismo nas reuniões de bispos, acima mencionadas.
Lembro-me de Rutilio, um sacerdote jesuíta conservador. No início de nossos cursos, rebatia as exposições, tinha dúvidas, não aceitava o retorno à origem profética do cristianismo. Nas duas semanas de meu curso, pude observar uma completa transformação. Havia compreendido aquilo do ‘bem-aventurados os pobres!’ E a expressão de Jesus: ‘Ai de vocês os ricos! É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha do que um de vocês entrar no reino dos céus!’. Era a crítica de Jesus à economia monetarizada do império romano, que produzia multidões de pobres.
Rutilio voltou para sua paróquia de Aguilares, em El Salvador, e se transformou em militante cristão completamente comprometido com seu povo. Formou centenas de catequistas (como Samuel Ruiz, em Chiapas). Por isso, caiu sob a mira repressora da ditadura militar. Foi assassinado junto com mais de 200 de seus catequistas. Uma perseguição quase tão numerosa como a desatada por Diocleciano, no império romano, contra os cristãos. Nesse tempo, Dom Romero era o que se chamava diretor espiritual de Rutilio. Conhecia até seu inconsciente. Sabia quem era e, além disso, era seu mestre. Diante do seu corpo inerte, em Aguilares, dom Romero se converteu em defensor do povo e em crítico decidido contra a ditadura militar, a qual enfrentou valente e diretamente.
As homilias de dom Romero, na catedral, eram acompanhadas por multidões que não só enchiam o templo, como também a praça em frente à catedral. Era realmente entusiasmante, seguido por todos, principalmente por jovens, pobres, camponeses e indígenas. Por isso, foi assassinado como messias, como o servo sofredor que dá sua vida pela multidão.
Uma vez morto, a Igreja conservadora ocultou seu cadáver na cripta da catedral, com o débil argumento de que não deveria ser venerado enquanto Roma decidisse. Dom Romero era temido, mesmo morto. Havia sido sequestrado para que seu povo não pudesse honrá-lo como símbolo da luta de uma época da pátria, da América Latina. É o destino dos heróis e dos santos.
E daí que se alongava o processo de sua beatificação em Roma. Dizia-se que havia sido morto por causas políticas e não por ser mártir da fé. Como se o fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré, não tivesse sido acusado, diante de Pilatos, do crime político de rebelar o povo contra o império, e como se não tivesse sido posto sobre sua cruz (a ‘cadeira elétrica romana’ para os que se levantavam politicamente contra César) um título de clara conotação política: ‘Jesus de Nazaré, rei dos judeus’ (o famoso INRI).
Houve a necessidade de que um Papa latino-americano reconhecesse que Romero foi um mártir da fé, que se lançou defendendo politicamente seu povo reprimido, para que, agora, possa ser venerado como figura messiânica exemplar. Nem João Paulo II, nem Bento XVI podiam desafiar a oligarquia salvadorenha, latino-americana e norte-americana dando esse passo. Agora é possível, ainda que nunca se saiba por quanto tempo!
Multidão vê Dom Romero ser beatificado como um mártir e herói dos pobres
Em uma cerimônia realizada neste sábado (23), provavelmente o maior encontro religioso na história da América Central, o falecido Dom Oscar Romero, assassinado em 1980 por defender os pobres e as vítimas de abusos dos direitos humanos em El Salvador, foi declarado beato da Igreja Católica.
A beatificação é o estágio final antes da santidade. Romero foi beatificado como um mártir, quer dizer: como alguém que morreu dando testemunho da fé católica, na sequência de um decreto emitido pelo Papa Francisco em fevereiro passado que o reconhecia como tal.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 23-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A multidão reunida em uma praça central de San Salvador para a missa de beatificação foi estimada em, pelo menos, 300 mil, incluindo milhares peregrinos vindos de fora do país. A multidão contou com aproximadamente 300 bispos de todo o mundo e nove chefes de Estado, todos da América Latina.
“A memória de Romero ainda está viva e dando conforto aos pobres e marginalizados”, disse o cardeal italiano Angelo Amato, chefe do departamento vaticano para as causas de santidade, que celebrou a missa de beatificação.
“Ele [Romero] foi a luz do mundo e o sal da terra. Os seus perseguidores desapareceram e foram esquecidos, mas Romero continua a lançar luz sobre os pobres e marginalizados”, disse Amato.
O Papa Francisco, primeiro pontífice latino-americano, enviou uma mensagem pessoal para a cerimônia de beatificação.
“Em tempos de coexistência difícil, Romero soube como guiar, defender e proteger o seu rebanho”, escreveu o papa.
Damos graças a Deus porque concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e ouvir o sofrimento de seu povo”, disse Francisco. “Quando se entende bem e se assume até as últimas consequências, a fé em Jesus Cristo cria comunidades artífices de paz e solidariedade”.
O Cardeal Amato leu a carta do papa em voz alta no início da cerimônia.
O presidente americano Barack Obama emitiu uma nota sobre a beatificação, dizendo estar “grato pelo Papa Francisco, pela sua liderança em lembrar-nos das nossas obrigações em ajudar os mais necessitados e pela sua decisão em beatificar o Beato Oscar Arnulfo [Romero]”.
“Esperamos que a visão de Dom Romero possa inspirar a todos nós para que respeitemos a dignidade de todos os seres humanos, e para trabalharmos pela justiça e pela paz em nosso hemisfério e alhures”.
Nomeado arcebispo de San Salvador em 1977, Romero rapidamente se tornaria no mais franco opositor de um governo nacional de direita apoiado pelos EUA fortemente ligado às forças militares.
O ato público final de Romero, no dia anterior à sua morte, foi suplicar – e mesmo ordenar – que os soldados e as forças de segurança não atirassem contra os civis que protestavam contra certas políticas do governo. No dia seguinte, Romero foi baleado no coração enquanto rezava a missa numa pequena capela nas dependências de um hospital católico, que também abrigava a modesta casa em que ele morava.
Ainda que ninguém tenha sido oficialmente acusado, uma investigação conduzida pela ONU em 1992 concluiu que o autor intelectual do assassinato foi o político de direita e ex-oficial do exército Roberto D’Aubuisson.
Apesar da atmosfera de comemoração e celebração nacional em El Salvador, as divisões que rodeavam Romero em vida estiveram também presentes durante a sua beatificação.
“Com certeza ele é um beato”, disse uma salvadorenha chamada Gracie Rivas, cujos filhos estudam em uma escola particular na capital nacional. “Ele é um beato para todos os que não o conheceram realmente, e por tudo o que ele fez para as guerrilhas”.
Tais reações foram também ouvidas internacionalmente. O ex-arcebispo de Madri, o Cardeal Antonio María Rouco Varela, disse que “esta é uma beatificação política”, sugerindo que o evento seria manipulado pelas forças esquerdistas hostis à Igreja.
Falando à televisão salvadorenha, o Mons. Riccardo Urioste disse: “É comum ouvir opiniões assim na Igreja”, mas isso “não significa que elas sejam verdadeiras”.
Em Roma, o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal italiano Pietro Parolin, tentou minimizar as opiniões contrastantes sobre Romero.
Em uma entrevista à rede televisiva católica italiana Sat2000, Parolin falou que a beatificação desse sábado “foi uma escolha de fé, não ideológica, e que isso é um ponto fundamental no panorama de hoje”.
Outros objetaram dizendo que não se tratava tanto de um ato político, e sim de um ato mais ascético e espiritual.
“Romero rolará em seu túmulo se usarem-no como uma forma barata de propaganda para o governo e a cidade”, escreveu Francesco Pilenga, cidadão salvadorenho, em um tuite mal-humorado na manhã desse sábado.
Um tal sentimento, no entanto, não se fez evidente na missa de beatificação. Quando o arcebispo italiano Vincenzo Paglia, que defendeu de beatificação a causa de Romero no Vaticano, disse antes da missa que a memória de Romero é “reverenciada por todos os salvadorenhos”, atraiu aplausos gerais.
No todo, a atmosfera em torno da beatificação esteve ótima.
Um dos principais jornais salvadorenhos devotou um terço completo de sua edição de sábado, de 92 páginas, para cobrir a beatificação, enquanto que o governo nacional enfeitou as ruas de San Salvador com cartazes que celebravam o “santo da América”.
A maioria dos salvadorenhos ficaram felizes com a beatificação, mesmo aqueles que pertencem às crescentes igrejas evangélicas do país – muitas vezes vistas como rivais à Igreja Católica.
“Romero foi um exemplo a seguir, que lutou e pregou a palavra de Deus”, disse Jonathan Rivas, que é evangélico.
“Ele lutou pelos mais necessitados, pelos pobres, durante um período de guerra”, falou. “Esta beatificação é uma grande celebração para grande parte da população, mas a verdadeira celebração será quando El Salvador estiver em paz, sem gangsters e sem mortes”.
Margarita Hernandez, católica, concorda.
“Como salvadorenhos, todos devemos nos sentir orgulhosos, porque Romero foi uma pessoa que, até o fim, defendeu os seus ideais para o bem do povo”.
“A única coisa que nos deixa triste”, disse Hernandez, “é que ele não está mais entre nós”.
Luzes e sombras da beatificação de dom Romero
Como sempre, o Papa Francisco deu um passo à frente de todos nós. Seus representantes, dom Vicenzo Paglia e o cardeal Angelo Amato, deixaram muito claro quem é dom Romero para o Papa: “Com Romero, Jesus caminhava com seu povo”, diziam-nos em seus comunicados. É o que disse então Ellacuría: “Com Romero, Deus passou por El Salvador”.
A reportagem é de Daniel Barbero e Javi Baeza, publicada por Religión Digital, 25-05-2015. A tradução é do Cepat.
Algo importante ocorreu nesta véspera de Pentecostes: o reconhecimento do Espírito de Deus neste homem humilde e simples, que “carregou sobre seus ombros toda a dor dos pobres”. “Sua voz se difundiu por toda a terra e o sensus fidelium o venerou sempre como Santo”.
“A beatificação de Dom Romero é uma festa de gozo e fraternidade, é um dom do Espírito Santo à Igreja e ao povo salvadorenho”. “Romero é uma estrela luminosa que se acende no firmamento espiritual da Igreja”. “Romero não é um símbolo de divisão, mas, sim, de paz, de concórdia e fraternidade”.
Estas palavras, que os representantes do Papa nos diziam, contrastavam com os fatos que estávamos vendo: A Igreja Luterana, representada pelo bispo salvadorenho Medardo Gómez e uma bispa da Igreja Luterana de Nicarágua, assim como várias pastoras e pastores luteranos estavam isolados em um espaço da igreja São José da Montanha, de onde sairíamos em procissão até a Praça de El Salvador do Mundo, onde seria a grande celebração.
“O Papa precisou nos convidar diretamente, porque a hierarquia da Igreja salvadorenha não nos convidou”, dizia-me o bispo Medardo, que se sentia feliz “porque dom Romero é de todos, também dos luteranos”, apontava-me, pois “ele foi uma referência muito clara para reconhecer e seguir Jesus na vivência do Evangelho”. E me comunicava com satisfação: “Já se assinou um comunicado conjunto da Igreja Católica e a Igreja Luterana sobre a justificação pela fé, que tanto nos havia dividido na história da Igreja”.
E eu me perguntava: Onde estão as outras Igrejas, a Igreja Episcopal, a Igreja Batista, cujo pastor Miguel Tomás havia me convidado, no domingo, para celebrar o culto a dom Romero em sua Igreja, e onde estão a Fundação Romero, a Comunidade da Cripta, as Comunidades Eclesiais de Base, os jovens romeristas, a Coordenadora Ecumênica da Igreja dos Pobres (CEIPES), o Comitê Dom Romero de El Salvador e o Secretariado Internacional Cristão de Solidariedade com a América Latina (SICSAL), que vinham de vários países e a quem pudemos saudar pessoalmente na celebração da Vigília Popular, na Praça da Constituição, na noite anterior? Para todos eles, dom Romero era uma referência clara em sua atuação cristã, na solidariedade aos pobres e nas causas justas pelo mundo. E mais, todos eles foram os que mantiveram forte o legado de dom Romero e que sempre souberam trazer na memória e atualizar sua mensagem, oferecendo a luz e a esperança que dom Romero sempre transmite aos pobres de todo o mundo.
É significativo que, no último momento, aqueles que prepararam a celebração da Beatificação, diante das fortes críticas de todos estes grupos, tiveram que mudar o lema que dizia: “Dom Romero, mártir por amor”, pelo definitivo: “Dom Romero, mártir por amor aos pobres”.
É que todos estes grupos que entendem e vivem claramente a mensagem de dom Romero criticavam a apresentação de um Romero “light” e “muito adocicado”, e que era preciso deixar muito claro que Romero era mártir pela fé e a justiça, para que não ficasse muito “generalizado” e para que se tornasse mais concreto esse amor aos pobres, que levou dom Romero a entregar sua vida pelo povo.
Como destacava uma pessoa que foi fisicamente muito próxima de Romero, o Santo da América agora beatificado, após estas celebrações tão “excludentes”, terá que voltar a romerizar Romero.
A presença de personagens políticos próximos daqueles que idealizaram e executaram Romero - Roberto D’Awison, filho e atual prefeito de Santa Tecla -, empresários e donos de meios de comunicação combativos contra Romero provocaram gritos e reabriram feridas ao se perceber como estes, que nunca quiseram Romero, neste dia, ocupavam cadeiras proeminentes na mesma celebração.
Muitas pessoas das comunidades nos contavam, na primeira missa após a beatificação do Santo da América, celebrada na cripta da catedral aos pés da sepultura de Romero, que na celebração de beatificação faltaram cânticos salvadorenhos, aplausos, gritos de “viva Romero”... Talvez este silêncio, “a falta de gritos e aclamações”, seja a antecipação desse desafio que como crentes e cidadãos temos diante do futuro da mensagem de Romero. Não encerrá-lo em uma urna de cristal e fazer imagens e cartazes para as paredes, caso não ajudem a atualizar o frescor e a vigência de Romero.
Restam-nos muitos desafios pela frente. Estaria tudo encerrado com esta grande celebração, que acolheu tanta gente vinda de todo o mundo, algo único na história de El Salvador? Já cumprimos tudo e tudo acaba assim? Onde fica a investigação do magnicídio, o julgamento dos culpados, que já se sabe quem são, uma vez que já foram investigados pela Comissão da Verdade das Nações Unidas?
Como se atualiza sua mensagem, que também hoje é uma voz muito forte contra o imperialismo, que continua empobrecendo estes países com sua influência econômica, militar e ideológica, com sua contínua intervenção, a partir do Tratado do Triângulo Norte e suas Bases Militares, e com a espoliação das matérias-primas e dos minerais destes países, cada dia mais empobrecidos e mais dependentes?
Eduardo Galeano questionou “como em um país tão pequeno, cabem tantos mortos”. Sem pretender responder, sim, nós temos que nos deixar acolher por este povo, desejar sua dignidade... para tornar realidade aquele sonho de Romero: “se me matam, ressuscitarei no povo Salvadorenho”.