“Se a esmola é demais, o santo desconfia” é a frase de alerta em campanha da Organização Não Governamental (ONG) contra o tráfico de pessoas no Brasil. Para mostrar a realidade das vítimas nas cidades-sede da Copa do Mundo, a ONG produziu o documentário R$ 1 – O Outro Lado da Moeda, com depoimentos de mulheres e meninas enganadas por falsas promessas. De acordo com a organização, a maioria dos 27 milhões de escravizados no mundo é crianças ou jovens.
“O tráfico de pessoas tem várias faces, mas na questão sexual, o início da cadeia é a exploração sexual de crianças e adolescentes”, disse a diretora executiva da 27 Brasil,Tatiane Rapini. “Há casos em que o pai vende a própria filha ou a menina é enganada com falsas promessas, como a de que vai ser modelo”, completou. Pessoas também podem ser traficadas para o trabalho forçado e para a retirada de órgãos, atividades que movimentam US$ 32 bilhões por ano.
A falta de informação sobre a exploração de crianças e adolescentes, que é crime hediondo, aumenta a vulnerabilidade de vítimas. Somada à falta de acesso a políticas públicas, faz com que “acreditem que podem melhorar de vida”. No Brasil, na maioria das vezes, as meninas acabam traficadas para outras regiões do país, não necessariamente para o exterior. O fluxo é maior do Norte e Nordeste para o Sudeste, mas há também do Sul para o Norte.
“Manaus tem um histórico de muitas questões [de exploração], inclusive, nas populações ribeirinhas. Nossas organizações parceiras lá, reportam casos de meninas indígenas que sofrem, são levadas e vendidas, é complicado”, acrescenta Tatiane. Em entrevista à Agência Brasil, a líder Maria Alice da Silva Paulino, da etnia Karapãnam, confirmou o problema nas aldeias.
Com a exibição do R$ 1 – O Outro Lado da Moeda em áreas públicas, a 27 Brasil quer alertar as possíveis vítimas e estimular a sociedade a denunciar às polícias, ao Conselho Tutelar ou ao Disque 100. A entidade indica que são os próprios brasileiros o público-alvo da exploração. “É duro dizer isso, mas quem procura essas meninas menores de idade são homens casados, atrás de uma aventura. Ou seja, pessoas 'normais'”, esclareceu Tatiane.
O documentário faz referência a meninas que acabaram exploradas sexualmente por apenas R$ 1, por um pacote de biscoito ou por ofertas como a de uma casa. Já foi exibido em Brasília, no Lixão da Estrutural, em Belo Horizonte, na Fifa Fan Fest e segue em direção a Fortaleza. Chega à cidade-sede da final do campeonato, o Rio, em 11 de julho.
Cartão vermelho para exploração infantil no Mundial da Fifa
A realização da Copa do Mundo da Fifa no Brasil colocou em alerta as organizações que lutam contra a exploração de meninos, meninas e adolescentes, durante um acontecimento que atrai 3,7 milhões de turistas para as 12 cidades sedes. Além de divisas, oportunidades de negócios e trabalho, o Mundial também aumenta os riscos de exploração trabalhista e sexual de menores de 16 anos, segundo organizações sociais e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
A reportagem é de Fabíola Ortiz, publicada por Envolverde, 24-06-2014.
“Não temos números para medir a intensidade do problema, mas o Mundial reúne fatores para que os casos de exploração aumentem” entre meninas, meninos e adolescentes, disse à IPS a coordenadora da Childhood Brasil, Flora Werneck. Esta organização trabalha há 15 anos no combate ao abuso sexual no país. A onda de turistas entre 12 de junho e 13 de julho, nas cidades que recebem jogos da Copa da Fifa (Federação Internacional de Futebol Associado), multiplica a demanda temporária de serviços e aumenta o trabalho infantil e a vulnerabilidade dos direitos das crianças, assegurou a especialista.
Para Werneck, o ritmo acelerado de construções e projetos de infraestrutura para o Mundial gerou uma explosão de trabalhos temporários, migração de trabalhadores e despejo de famílias, aos quais se une as férias escolares, outro fator de risco. Por coerção, meninos, meninas e adolescentes podem participar de atividades ilegais, como venda de drogas e prostituição infantil. “Eles ficam mais expostos a esses e outros riscos”, ressaltou.
A incidência de violações dos direitos infantis se alimenta com fatores de vulnerabilidade social como desigualdade, pobreza, falta de acesso à educação, consumismo e cultura machista, afirmaram Werneck e outros especialistas ouvidos pela IPS. A exploração sexual de meninos e meninas relacionada a grandes eventos esportivos põe sobre a mesa um problema silenciado e pouco abordado nas políticas públicas.
Um estudo realizado em 2013 pela Universidade Brunel, de Londres, encomendado pela Childhood Brasil em associação com a Fundação Oak, apontou fatores que determinam o aumento dos casos de violência contra crianças, pela existência de “riscos significativos” para a população infantil no âmbito de grandes eventos esportivos. Além da Copa do Mundo, o Rio de Janeiro será, em 2016, sede dos Jogos Olímpicos.
Segundo o estudo, “não se pode supor que a ausência de dados que permitam verificar a magnitude dos riscos signifique a ausência de problemas”. Os especialistas consultados argumentam que o Brasil sofre uma grande carência de dados relacionados à exploração infantil. Os números existentes são do programa Disque Denúncia Nacional, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (Disque 100).
Nesse órgão, em 2013, foram registradas mais de 120 mil denúncias de violações de direitos da criança e do adolescente. Dos 12 Estados que recebem jogos do Mundial, cinco lideram estas denúncias: São Paulo (17.990), Rio de Janeiro (15.635), Bahia (10.957), Minas Gerais (9.565) e Rio Grande do Sul (6.269).
“Nenhum menino ou menina deve sofrer pela construção de um estádio de futebol ou deve ser vítima de exploração pelo turismo sexual. Não há dados consolidados que possam provar o fato de que os megaeventos coincidem com o aumento do abuso infantil”, disse à IPS o coordenador no Brasil da campanha Save the Dream, Alessandro Pinto. Mas, destacou, “estaremos aqui para observar de perto esse fenômeno no Brasil pelos próximo dois anos”.
A campanha é uma iniciativa conjunta do Centro Internacional para a Segurança no Esporte (ICSS) e do Comitê Olímpico do Catar. Pinto disse que até as Olimpíadas de 2016 pretendem reunir dados concretos sobre o vínculo entre mega-acontecimentos esportivos e violência infantil. “O esporte tem uma grande responsabilidade com o ser humano, a sociedade e os direitos humanos”, afirmou.
O ativista participou no dia 20 de junho no ato para dar o balanço preliminar da campanha Proteja Brasil contra a exploração sexual de meninos e meninas, promovida pelo Unicef e pelo governo brasileiro, focada no Mundial. Uma das estratégias utilizadas para facilitar as denúncias contra agressões a crianças foi a criação de um aplicativo que pode ser baixado gratuitamente nos telefones celulares. O aplicativo Proteja Brasil, que representa um esforço inédito no mundo, afirmou a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti.
A atividade online quer aproveitar a existência de mais de 70 milhões de telefones celulares no país para disseminar a comunicação de crimes que afetam a população infantil. O aplicativo está disponível em português, inglês e espanhol.
A chefe do programa de proteção de meninos, meninas e adolescentes do Unicef, Casimira Benge, disse que no Brasil, por ser um país de megaeventos, a violência infantil também acontece em grande escala, já que, dos seus mais de 200 milhões de habitantes, 56 milhões são meninas, meninos e adolescentes.
“Aprendemos muito com a experiência do Mundial da África do Sul em 2010. As crianças ficaram sem aula porque as escolas fecharam durante a competição e dessa forma ficaram sem supervisão. Aqui no Brasil trabalhamos para manter o acompanhamento dos estudantes mesmo durante as férias escolares”, pontuou Benge à IPS.
Entre seu lançamento, no dia 18 de maio, e o dia 20 de junho, o aplicativo online foi baixado 60 mil vezes e houve 3.800 telefonemas para os órgãos de proteção à infância. Segundo o Unicef, em um único mês a campanha chegou a 40 milhões de pessoas. O perfil das vítimas, feito a partir das denúncias do Disque 100, mostra que quase 50% são do sexo feminino, 60% das vítimas são afrodescendentes e a violência se concentra em vítimas entre oito e 14 anos, sem contar que 65% dos agressores integram o círculo familiar.
A violência sexual figurou em 2013 em quarto lugar nas denúncias do Disque 100, com 26%. Em 2012, quando houve mais de 130 mil denúncias, um terço estava relacionado com a violência sexual. Para Benge, a melhor estratégia para evitar a violência é prevenir e facilitar o processo de denúncia. A violência sexual tem duas categorias: o abuso sexual cometido no âmbito familiar, como o estupro, e a exploração sexual com fins comerciais, como a prostituição, explicou. Em 2013 houve 28.552 denúncias de abuso sexual e 10.664 de exploração sexual.
A representante do Unicef diz que se deve dar atenção especial às cidades do norte e nordeste do país, como Manaus e Fortaleza, que são mais vulneráveis. “A vigilância tem de ser nas 12 cidades sedes, mas com particular atenção para as que têm maior incidência”, opinou Benge. Desde o início do Mundial não se informou sobre detenções nas cidades sede por crimes desse tipo, mas duas semanas antes a polícia do Rio de Janeiro fechou dois locais, por suposta exploração sexual infantil.
Fonte: IHU