Nesta semana a Capelania da UCPel optou por compartilhar a “Nota de docentes e discentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e de Pelotas em Apoio ao Povo Kaingang”, bem como a notícia e comentário publicados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) sobre a prisão de cinco indígenas no Rio Grande do Sul.
“Sabemos que o histórico das demarcações de terras indígenas no Brasil demonstra que a prioridade tem sido as áreas localizadas na Amazônia Legal, deixando em segundo plano as áreas reivindicadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Enquanto não houver uma real mobilização do Estado para a demarcação dessas áreas, os conflitos tendem a se acirrar cada vez mais”, é o que afirma a nota publicada no dia 15 deste mês pela UFRGS e UFPel.
O CIMI, organismo vinculado à Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também se manifestou a respeito da prisão arbitrária dos índios Kaingangs.
A fim de contribuir com a reflexão, reproduzimos os textos.
Sigamos atentos e atentas a esta realidade.
Um boa leitura.
Nota de docentes e discentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e de Pelotas em Apoio ao Povo Kaingang
Nós, enquanto corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), juntamente com professores e pesquisadores que participaram e/ou apoiaram a elaboração deste documento, vinculados ao Laboratório de Arqueologia e Etnologia (LAE-UFRGS), ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-UFRGS), ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI-UFRGS), e ao Núcleo de Etnologia Ameríndia (NETA) da Universidade Federal de Pelotas viemos por meio desta nota manifestar nosso repúdio à prisão de cinco indígenas kaingang na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, dentre eles o cacique da aldeia Kandóia-Votoro (município de Faxinalzinho), Deoclides de Paula, ocorridas no dia 09 de maio.
Não podemos negligenciar o fato de que, em 2013, no Brasil, aconteceram 15 mortes e 10 tentativas de assassinatos de indígenas por disputas de terra dos quais a sociedade brasileira praticamente não volta sua atenção, principalmente devido à forma sensacionalista e revanchista com que os fatos são tratados. Neste contexto em particular, prestamos nossos sentimentos aos familiares e amigos de Alcemar Batista de Souza e Anderson de Souza encontrados mortos, no dia 28 de abril, próximos ao ponto em que os moradores da aldeia Kandóia se manifestavam. Sabemos que pouco pode ser feito para amenizar sua perda. Para tanto, atentamos para o fato de que as condições tendem a se agravar, e que a análise do conflito deve ser pensada numa perspectiva mais ampla, não restrita à localidade, pois o mesmo amplia-se em vários sentidos, que extrapolam a nossa compreensão imediata, tal como, por exemplo, sua relação com a morte por espancamento de um Kaingang próximo à estação rodoviária de Três de Maio, na mesma região noroeste do estado, também no domingo dia 09/05/2014.
Diante dos fatos ocorridos e manifestando em público o conteúdo de nossas pesquisas, reafirmamos a importância de contextualizar a reivindicação da Aldeia Kandóia e, assim, informar que esta aldeia está há mais de 10 anos em procedimento administrativo de regularização, tendo este processo passado pelas primeiras etapas exigidas, conforme a Constituição Federal/1988, o Decreto 1.775/1996 e a Portaria 14, que dizem respeito à forma jurídica para tramitação da reivindicação no órgão competente, FUNAI. O processo encontra-se atualmente à espera de assinatura da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o que implica no dever público por parte da autoridade competente em aplicar o Estatuto do Índio de 1973, legislação em vigor e que é complementar, na compreensão de nossa jurisprudência, para o justo cumprimento do dispositivo constitucional e, em última instância, o respeito à Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], da qual o Brasil é signatário.
Desse modo, considerando que foram implementados os exaustivos procedimentos que conduziram esse pleito territorial até o estágio atual, observados os princípios constitucionais e realizados os instrumentos técnicos exigidos para a aplicação do conhecimento antropológico e no sentido de garantir os direitos relacionados aos povos indígenas, viemos reiterar a legitimidade e legalidade do processo que traduz a tradicionalidade da ocupação Kaingang na Aldeia Kandóia, isto é, caracterizando-a como por eles habitada em caráter permanente, utilizada para suas atividades produtivas, imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessária a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Sabemos que o histórico das demarcações de terras indígenas no Brasil demonstra que a prioridade tem sido as áreas localizadas na Amazônia Legal, deixando em segundo plano as áreas reivindicadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Enquanto não houver uma real mobilização do Estado para a demarcação dessas áreas, os conflitos tendem a se acirrar cada vez mais. A omissão do Estado Brasileiro, com especial menção aos órgãos competentes, é responsável pelo acirramento dos conflitos na região. Alertamos que este quadro se agrava com o incentivo, por parte de parlamentares do estado, ao armamento e contratação de polícias privadas no combate a processos de demarcação amparados pela legislação brasileira.
Por fim, a ética antropológica e a garantia dos direitos indígenas orientam as ações da nossa comunidade científica para, neste momento, situar a ação da Polícia Federal como imprópria e arbitrária e exigir a imediata soltura dos cinco kaingang presos no dia 09 de Maio de 2014. Também exigimos a homologação imediata da área reivindicada pelos Kaingang da Aldeia Kandóia, bem como a agilidade na tramitação de outros processos de regularização de terras indígenas atualmente paralisados na FUNAI. A demarcação das terras indígenas, conforme os princípios constitucionais antes expressos, é o que torna possível a continuidade da vida indígena conforme suas formas próprias e singulares de concepção de mundo e a sua integridade enquanto grupo.
Porto Alegre, 15 de maio de 2014.
Sem provas, Polícia Federal e governo transformam cinco líderes Kaingang em presos políticos e criminalizam a luta pela terra
Nesta sexta feira, 09/05, cinco indígenas Kaingang foram presos pela Polícia Federal, numa verdadeira emboscada, enquanto participavam de “reunião” promovida por representantes do governo do Rio Grande do Sul no município de Faxinalzinho. Sem elementos concretos, evidências ou provas que ligassem as lideranças indígenas à morte de dois agricultores daquele município, os Kaingang foram presos pela polícia como se fossem criminosos há muito procurados. De caráter totalmente político, esta prisão se configura como mais um triste episódio de criminalização explícita do movimento indígena por parte do governo federal e do estado do Rio Grande do Sul.
Entre os presos, encontra-se o cacique da terra indígena Kandóia, Deoclides de Paula, que vinha reivindicando a continuidade do processo de demarcação da terra Kaingang e a garantia dos direitos constitucionais dos povos originários junto ao governo federal.
Na quarta-feira, dois dias antes das prisões, os Kaingang esperavam ansiosos a vinda do ministro da Justiça à terra indígena de Kandóia onde seria realizada uma reunião com a comunidade indígena para discutir a continuidade dos processos de demarcação e resoluções acerca do clima de conflitos na região. O ministro mais uma vez, ausentando-se de sua responsabilidade com os indígenas e com os pequenos agricultores, não veio ao Rio Grande do Sul. Enviou, porém, seu assessor especial, Marcelo Veiga, a Porto Alegre para “dialogar”, a portas fechadas, com representantes do governo Tarso Genro e da Polícia Federal.
Apenas posteriormente a esta reunião, o governo do estado, na figura de Elton Scapini, Secretário de Desenvolvimento Rural do RS, Ricardo Zamora e Milton Viário, assessores diretos do governador Tarso Genro, junto ao coordenador regional da Funai, Roberto Perin e o prefeito do município de Faxinalzinho, Selso Pelin, convenceram os Kaingang a deslocaram-se para fora da aldeia Kandóia.
Mesmo alertados por agentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de que a reunião poderia se tratar de uma emboscada, os Kaingang da terra indígena Kandóia confiaram nas autoridades públicas federais, estaduais e municipais e foram para a reunião, na sede do município de Faxinalzinho, na expectativa de darem, finalmente, encaminhamentos práticos na perspectiva da efetivação de seu direito à terra tradicional. O resultado da reunião, no entanto, traduziu-se em mais uma traição do Estado e de agentes públicos aos Kaingang. Os indígenas foram presos minutos após o início da reunião de maneira abrupta por um verdadeiro batalhão de agentes federais.
A prisão dos indígenas, ao que tudo indica, não teve nada de espontânea e muito menos parece ter sido uma “infeliz coincidência” como defendeu o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, poucas horas após o fato. Os próprios Kaingang denunciam que a reunião para a qual foram chamados tratava-se de uma emboscada forjada dentro do Palácio Piratini pelos governos para incriminar as lideranças e responder publicamente às acusações de negligência e incitação de conflito que vinham sofrendo de setores ligados ao agronegócio, eternos inimigos dos povos indígenas.
Os cinco indígenas presos foram levados, na noite de sexta-feira, 09/05, a Porto Alegre e ficaram recolhidos na carceragem da superintendência da Polícia Federal até por volta das 11 horas do sábado, 10/05. Ainda na madrugada de sábado, advogados peticionaram representação junto à Justiça Federal requerendo que os mesmos fiquem sob custódia da Funai, ou na aldeia de origem, ou mesmo na Funai em Brasília, que, por meio de ofício da sua presidência, colocou-se à disposição para a custódia, obedecendo o que prescreve o Estatuto do Índio (Lei 6001/73). Em resposta à petição, o juiz federal Dr. Murilo Brião da Silva propalou despacho determinando manifestação do delegado da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Ignorando a determinação judicial em questão, a Polícia Federal transferiu os cinco indígenas, no final da manhã deste sábado, para o presídio de Jacuí, no interior do estado do Rio Grande do Sul, após os mesmos terem recebido visita do advogado da Frente Nacional Quilombola e de missionários do Cimi.
No estado de exceção e de omissão do governo Dilma, os indígenas continuam sendo tratados como criminosos e a luta pela terra um caso de polícia. A prisão dos Kaingang da terra indígena Kandóia faz lembrar o recente episódio envolvendo o cacique Babau Tupinambá, preso em Brasília como estratégia governamental para que não denunciasse internacionalmente as violações que os povos indígenas vêm sofrendo no interior do país. A determinação do governo Dilma, atendendo interesses ruralistas, de suspender o andamento dos procedimentos administrativos de reconhecimento e demarcação das terras indígenas constitui-se num atentado à Constituição Federal e ao Estado de Direito e joga combustível nos conflitos fundiários Brasil afora. No Brasil do governo Dilma, os presos políticos têm cor e traços étnicos bem definidos, são os filhos da terra, os povos originários.
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Frente Nacional de Defesa dos Territórios Quilombolas/RS