O Convite à Reflexão dessa semana, último do ano, apresenta dois textos para consideração acerca do Natal. A festa que se aproxima e sua preparação, no tempo do Advento, possibilitam pensarmos sobre essa celebração.
Oferecemos dois artigos. O primeiro da Revista Vida Pastoral, de caráter mais teológico, nos convida a refletir sobre a revelação mais comovente e mais desafiadora de Deus. O segundo, da Revista IHU on-line, nos brinda com a possibilidade de analisarmos qual Natal queremos celebrar.
Natal: A revelação mais comovente e mais desafiadora de Deus
Por Prof. Renold J. Blank
1. O que o Natal nos revela?
Ao falar de Deus, costumamos identificá-lo com o Onipotente, o Criador do cosmo e o Senhor do céu e da terra. Sim, ele também é isso, mas é infinitamente mais.
Nele pode ser encontrada uma verdade tão chocante, que — apesar de todas as celebrações festivas do ano litúrgico — foi muito pouco assimilada pela fé das pessoas. É uma verdade que ultrapassa em muito o nosso conhecimento sobre a onipotência de Deus e a sua inimaginável glória. Na base dessa verdade, há aquele fato chocante e ao mesmo tempo maravilhoso que marca a sua revelação em Jesus Cristo: Deus é humilde e modesto.
Mas há mais! Tudo indica que Deus está mais interessado em ser conhecido exatamente assim — humilde e modesto — do que como criador e onipotente.
É essa verdade fundamental, aliás, que distingue essencialmente a nossa fé da professada pelas inúmeras outras religiões existentes. Na maioria delas também se cultua um Deus que, de uma forma ou de outra, se apresenta como poderoso e cheio de glória. Mas é unicamente na religião cristã que esse Deus se revela na pequenez e na fragilidade de uma criança, no seu desamparo e na sua necessidade de ser amado.
2. No evento do NATAL, Deus se manifesta a nós como realmente é (cf. Hb 1,3)
O Concílio Vaticano II, na constituição dogmática Dei Verbum, formula de maneira magistral a verdade fundamental de que, em Jesus Cristo, Deus nos revelou, de maneira mais clara e direta, aquilo que realmente é.
Se acreditamos nessas palavras da Igreja — e não há razão para não fazê-lo —, descobrimos, na festa do Natal, o conteúdo mais comovente e, ao mesmo tempo, mais feliz da nossa fé. Descobrimos que, diante de Deus, não precisamos ter medo, porque ele se aproxima de nós no sorriso de uma criança. Descobrimos a verdade de que Deus não se interessa em primeiro lugar pelo poder e não faz questão alguma de ser venerado como poderoso. O fato é que ele se fez pequeno e se aniquilou (cf. Fl 2,5-8), entregando-se a nós como criança que suplica pelo nosso amor.
Deus é e se revela assim! Torna-se criança para compreendermos que, para ele, há apenas uma coisa que conta: ser amado.
3. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e de poder
Se Deus se revela dessa maneira, deixando de lado as instâncias de prestígio e de poder, como é que nós poderíamos recorrer a tais mecanismos na convivência social, na vida pública ou na práxis religiosa?
Deus manifestou-se como criança para compreendermos que os seus caminhos não são aqueles do poder, mas os da ternura e do amor.
Ao tornar-se homem não na figura de um imperador poderoso, mas na forma de uma criança indefesa, Deus nos informa, de maneira indiscutível, que ele não se interessa pelos mecanismos do poder. Com isso, porém, assume grande risco. Ele se põe em nossas mãos!
Em Jesus Cristo, Deus se entrega aos seres humanos e, com isso, está totalmente sujeito ao agir e às decisões das pessoas. Ele fica à nossa mercê, assim como qualquer criança. Entrega-se a nós, assumindo o risco de que essa sua confiança possa ser traída.
A decepção diante dessa traição pode ser verificada no decorrer da história e já transparece em diferentes passagens bíblicas. Tal decepção chega ao seu cume naquele acontecimento chocante em que criaturas humanas torturam e matam o Filho de Deus no pelourinho vergonhoso da cruz. Ninguém teria tido a ousadia de crucificar um Deus onipotente que se tivesse manifestado em seu poder e glória.
Um Deus assim seria venerado por todos; mas, ao mesmo tempo, seria temido por todos. Exatamente esse medo, porém, Deus não quer!
4. Não o temor, mas o amor
Deus não quer que o temamos, mas o amemos. O evento do Natal nos mostra que ele não está interessado em nos intimidar. Em vez disso, espera que o amemos.
Para que tal fato se torne visível da maneira mais palpável, ele se revela a nós como criança indefesa que implora nosso amor. De um Deus que se apresenta na forma de uma criança, ninguém tem medo. Um Deus assim só pode ser amado de coração aberto. Só pode encontrar amparo em nossos braços e coração. É exatamente isso que Deus deseja.
5. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado; mas essa criança também pode ser rejeitada e pisada
Deus se nos mostra como criança para que percamos o medo dele e o amemos. Mas, em vez de amá-lo, também é possível outra atitude. Se esse Deus revela-se indefeso como uma criança, então pode ser rejeitado. É possível jogá-lo no chão, pisar nele e até matá-lo.
A festa do Natal também nos confronta com essa alternativa. Além de todo romantismo sentimental e emocional e de todo o barulho da indústria da propaganda comercial, descobrimos, nessa criança na manjedoura, um desafio sem igual. Descobrimos a alternativa do amor. Mas será que nós amamos efetivamente essa criança e lhe abrimos o coração? Ou será que nos fechamos diante de suas súplicas por amor e o jogamos ao chão, pisando-o e até o matando?
Certamente ninguém de nós jamais pensaria em bater naquela criança ou em matá-la. Sobre isso há consenso total entre nós que vivenciamos o Natal e estamos felizes porque Deus se tornou homem. Mas exatamente pelo fato de Deus ter se manifestado a nós numa manjedoura, por não ter permanecido distante, oculto no interior de céus distantes, ele se torna desafio constante para nós.
O desafio é este: fazemos às pessoas tudo aquilo que gostaríamos de fazer a ele? É importante lembrar: tudo aquilo que fazemos a qualquer pessoa, nós o fazemos a Deus. Com isso, porém, o fazemos também à criança que veneramos no Natal (cf. Mt 25,40.45).
Eis aí a grande e chocante verdade que tantas vezes, no decorrer da história, foi esquecida.
6. Deus, que se manifesta como criança, identifica-se de maneira plena com as pessoas
Pensar que cada um dos nossos atos para com qualquer ser humano se dirige a Jesus Cristo pode desencadear consequências que dificultem cantar as velhas músicas de Natal. Estas só dizem a verdade quando externam o amor que praticamos em favor dos nossos irmãos e irmãs, quando começamos a abrir-lhes o coração e respondemos aos seus anseios com amor.
À luz da identificação direta entre Jesus Cristo e as pessoas que encontramos no dia a dia, o Natal se torna um desafio para nós, indagação inquietante para a nossa consciência e vocação renovada cada vez mais urgente. Isso porque tudo aquilo que fazemos às pessoas, seja no bem, seja no mal, nós o fazemos à criança que veneramos no Natal.
À medida que, como cristãos e como Igreja, tomarmos a sério esse fato, nossa religião se tornará fermento e sal da terra. À medida que o Natal readquirir seu sentido original para nós, começaremos a transformar as inúmeras situações e estruturas nas quais seres humanos se encontram pisados, excluídos e desprezados.
Agiremos assim por estarmos conscientes de que, em toda pessoa humana maltratada, a criança divina na manjedoura está sendo maltratada.
Tomando a sério o que nos é revelado no Natal, passaremos a trabalhar para construir situações e estruturas que estejam em sintonia com tal revelação. Seremos colaboradores de situações onde reine o amor, a justiça e a solidariedade entre os seres humanos. Deus solidarizou-se, identificando-se conosco, de maneira direta e concreta no Natal.
Prof. Renold J. Blank
Fonte: Revista Vida Pastoral.Publicado em Novembro-Dezembro de 2006 (pp. 3-4)
Qual Natal queremos celebrar?
"Os índices assustadores de violência confirmam a tragédia na qual nos encontramos. Resta-nos esperança? Sim, esperança. Não a confundamos com expectativa. A expectativa é passiva. A esperança é ativa", escreve Reginaldo Andrietta, bispo diocesano de Jales, em artigo que publicamos a seguir.
Eis o artigo.
“O que você quer ganhar no Natal, este ano?” As respostas dadas por 70 crianças e adolescentes de uma entidade socioeducativa de Jales, nos últimos dias, surpreendeu as educadoras que lhes dirigiram essa pergunta e tem emocionado quem toma conhecimento do que disseram. A maioria disse que queria uma cesta básica, pois, como afirmou uma dessas crianças, “em casa está faltando tudo, até mesmo comida”.
Como celebrar o Natal no Brasil, hoje, sabendo que o país vive situações sociais alarmantes? Os desempregados ainda são milhões. Muitos têm emprego informal, sem garantia de direitos. A violência cresce, até mesmo nas escolas. Os professores são mal remunerados. Os hospitais continuam precários e superlotados. Os ecossistemas são destruídos. A disparidade de renda é grande. O acesso à alimentação, à habitação e à terra é restrito. Movimentos sociais que lutam por direitos da classe trabalhadora são reprimidos.
Os índices assustadores de violência confirmam a tragédia na qual nos encontramos. Resta-nos esperança? Sim, esperança. Não a confundamos com expectativa. A expectativa é passiva. A esperança é ativa. Para compreendê-la, comparemos com uma mulher grávida. Todo o seu ser vai se transformando em vista do novo ser que ela gera. Amando-o ela se engaja. A esperança é assim, nos encoraja, nos compromete com a novidade que desejamos.
Qual Natal desejamos e nos comprometemos, então, celebrar? O Natal da futilidade ou da fraternidade? O Natal da ganância ou de ações em favor dos socialmente excluídos? O Natal da extravagância ou da convivência saudável? O Natal dos homicídios ou do respeito à vida? O Natal da corrupção ou da honestidade? O Natal dos vícios ou da sobriedade? O Natal mercantilista ou humanista? O Natal dos analfabetos políticos ou dos cidadãos conscientes e responsáveis? O Natal de todos os desejos ou do que é essencial?
O essencial, sem dúvida, é Jesus Cristo. É seu Natal que celebramos. Saibamos, pois, distinguir o que é verdadeiro e o que é fútil na forma que o Natal é comemorado. Inspiremo-nos, para isso, na exortação do apóstolo Paulo: “Não vos conformeis com as estruturas deste mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12,2).
Celebremos, pois, o Natal como um novo nascimento, aprendendo com as crianças e os adolescentes, a desejar o que é, na realidade, necessário; aprendendo também com os mais calejados na vida, a lutar pelo que é justo. Que tal, então, engajarmo-nos para que todos recebamos a tão sonhada cesta básica, por exemplo, do trabalho em condições dignas, de gestões econômicas e políticas incorruptíveis, da sustentabilidade ambiental e do desenvolvimento humano integral?
Renovemos, pois, nosso engajamento com o aniversariante, festejado no Natal, de gestar uma coexistência humana realmente justa e fraterna. Que nossos projetos pessoais e sociais correspondam ao que celebramos no Natal. Que esse Natal seja, portanto, digno de um novo nascimento. Assim como “o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz” (Mt 4,16), que nossa luz seja Jesus. Ele, sim, nos conduz pelos caminhos da justiça e da paz.
Fonte: Revista IHU on-line, publicado em 08 de dezembro de 2016.