A Capelania propõe nesta semana três artigos.
Primeiramente, oferecemos um texto que nos convida a pensar sobre a universidade católica e sua relação com o mundo contemporâneo, fazendo uma ponte com o tema da Campanha da Fraternidade – Igreja e Sociedade. Para Gianfranco Ravasi, são dois os principais componentes a serem desenvolvidos: aeducação e a instrução, sendo relevante não só a instrução, mas também aeducação integral da pessoa na sua multiplicidade espiritual, moral, intelectual, artística, física, esportiva, social. Além disso, nos desafia ao diálogo com a ciência, o encontro com o mundo da arte e a presença do ensino da teologia católica.
Em seguida, abordamos o tema da Redução da Maioridade Penal, que volta a tona na discussão do cenário político e social. “Uma mudança real passa pelo entendimento de que o modelo prisional aplicado há décadas simplesmente não funciona. A redução da maioridade penal, em discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, é a resposta para uma sociedade punitiva que tem como hábito é isolar pessoas ‘desagradáveis’”.
Em 2013, a Comissão da 5ª Semana Social Brasileira – Pelotas abordou o tema, através da realização de uma “Roda de Conversa”.
Boa leitura e reflexão.
Cultura e educação católica: contribuições para a Igreja global. Artigo de Gianfranco Ravasi
"É relevante não só a instrução, mas também a educação integral da pessoa na sua multiplicidade espiritual, moral, intelectual, artística, física, esportiva, social. A ideia de que a universidade deve formar para a vida e não para a escola não é apenas uma frase retórica, mas é o programa que deve reger uma instituição católica educativa. Nessa linha, a universidade católica deve estabelecer um debate constante com o horizonte cultural global."
Publicamos aqui a conferência que o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente doPontifício Conselho para a Cultura, proferiu na Loyola University Chicago, ao receber o doutorado honoris causa que lhe foi concedido pela instituição jesuíta.
O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 22-03-2015. A tradução é deMoisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um escritor da minha pátria, o italiano Mario Soldati, na sua obra America primo amore, afirmava que "a América não é apenas uma parte do mundo. A América é um estado de espírito, uma paixão. E qualquer europeu pode, de uma hora para a outra, ficar doente de América".
A razão dessa atração é múltipla e nasce da identidade original da civilização norte-americana. Trata-se de uma interrogação que, ainda em 1782, formulava de modo lapidar John Hector St. John de Crevecoeur nas suas Letters from an American Farmer: "What, then, is the American, this new man?" [O que é, então, o norte-americano, esse novo homem?].
As respostas foram múltiplas, aliás, já antecipadas na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776): os valores da igualdade, dos direitos inalienáveis da vida e da liberdade, do bem comum, da acolhida através da inclusão social dos estrangeiros constituem a fisionomia mais genuína do cidadão estadunidense.
O europeu, nesse retrato de homo americanus, descobria qualidades que eram celebradas também no Velho Continente, mas que, lá, tinham se empalidecido e, às vezes, até mesmo extinguido. É emblemática, no século XIX, a figura do estadista francês Alexis de Tocqueville, que, no seu ensaio De la démocratie en Amérique. estabelece um paralelo dialético antitético entre os resultados daRevolução Francesa e os da norte-americana: "A revolução nos Estados Unidosfoi fruto de um gosto maduro e pensado pela liberdade e não de um vago e indefinido instinto pela independência. Ela não se baseava na paixão pela desordem; ao contrário, foi gerada pelo amor pela ordem e pela legalidade".
Isso não significa que a própria cultura norte-americana também não tenha percebido os próprios limites, a partir dos seus próprios presidentes, como Thomas Jefferson, que, nas suas Notas sobre Virgínia, não hesitava em escrever: "Temo pelo meu país quando reflito que Deus é justo".
Intelectuais famosos como Truman Capote, Norman Mailer ou Noam Chomskyafundaram duramente a lâmina da crítica no tecido social estadunidense. Outros, como David Riesman e, especialmente, Christopher Lasch com seu conhecido ensaio The Culture of Narcissism identificaram os nós emaranhados, os pontos fracos, as crises que abalavam aqueles valores considerados como patrimônio da sociedade norte-americana.
Nesse contexto cada vez mais complexo, marcado agora por uma nova revolução como a da informática e digital, que está gerando um fenótipo inédito antropológico e sociológico, como se pode colocar a presença cultural católica?
É sabido que o conceito de "cultura" não é mais apenas o aristocrático iluminista, que se referia às artes, às ciências e à filosofia. Agora, ao contrário, a cultura designa o conjunto de valores e símbolos objetivo, coletivo, transversal a todas as pessoas e classes sociais.
A essa luz, assume um significado profundo a mensagem cristã, que pode fecundar e transformar os próprios valores tradicionais fundantes da cultura norte-americana. Esses valores, de fato, em muitos aspectos, pertencem a uma categoria antropológica de base, agora submetida a muitas críticas e variações, mas ainda assim significativa. Queremos nos referir ao conceito de "natureza humana".
Ela se expressa na sociedade norte-americana em algumas tipologias que permitem um diálogo frutuoso com a concepção cristã. Como premissa fundamental, poderia ser escolhido um extraordinário lóghion ou dito de Cristo, um verdadeiro tweet ante litteram, composto, no grego dos Evangelhos, de apenas 53 caracteres, incluindo os espaços: "Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22, 21).
Desde sempre, na vida, na cultura, na história e na própria Constituição norte-americana, Estado e Igreja são rigorosamente distintos e separados. Sociedade e religião, ao contrário, não são; ou, melhor, entre as duas há sempre uma atração e uma tensão, um encontro, mas às vezes também um confronto, mas nunca separação ou indiferença. Sobre essa dialética, já se rege também a história de muitos outros países.
Desse debate entre fé e sociedade, a universidade católica deve participar, propondo uma própria Weltanschauung, rigorosamente definida e aprofundada. Ela pode apoiar e enriquecer alguns equilíbrios sobre os quais se rege a civilização contemporânea, particularmente norte-americana. Podemos exemplificar alguns desses equilíbrios ou balanços sem querer aprofundá-los.
• De um lado, tem-se o relevo da pessoa humana e, portanto, da sua identidade individual e da sua dignidade. De outro lado, deve se implementar o bem comum e o desenvolvimento da polis, ou seja, da comunidade inteira.
• De um lado, deve-se afirmar a liberdade com a sua criatividade e os seus direitos. De outro lado, também devem-se afirmar os deveres da justiça, da solidariedade, do respeito, da convivência.
• De um lado, é necessário o empenho econômico com o bem-estar. De outro lado, é indispensável a proteção dos valores éticos, espirituais e culturais, porque "não só de pão vive o homem".
• De um lado, as diversas identidades originárias étnico-culturais devem se expressar na sua variedade e riqueza. De outro lado, a democracia é um perímetro comum dentro do qual todos devem saber coexistir, na partilha de alguns valores e símbolos unificantes fundamentais.
Poderíamos continuar longamente essa lista de polos de coexistência e ilustrá-los à luz da mensagem cristã e da doutrina social da Igreja, sem fundamentalismos prevaricadores, mas também sem ausências ou silêncios que empobrecem a existência comum.
Mas, para fazer isso, a universidade católica deve se dotar de um equipamento intelectual e educativo qualificado. Por isso, são dois os principais componentes a serem desenvolvidos: a educação e a instrução.
A primeira diz respeito à formação da pessoa na sua totalidade. É o que afirmava de modo incisivo o grande pensador moral francês Michel de Montaigne, quando sugeria que o educador favorecesse "plutot la tête bien fait que bien pleine", isto é, modelar o pensar e não só encher o cérebro de dados, noções e informações. É por isso que é relevante não só a instrução, mas também a educação integral da pessoa na sua multiplicidade espiritual, moral, intelectual, artística, física, esportiva, social.
Um célebre pensador do século XIX inglês filósofo, teólogo e também cardeal,John Henry Newman, não hesitava em declarar, na sua obra The Idea of a University, que a educação universitária católica, antes ainda de formar cristãos ou católicos, deve criar "cavalheiros" [gentlemen]. A ideia de que a universidade deve formar para a vida e não para a escola não é apenas uma frase retórica – já formulada pelo filósofo latino Sêneca (Non vitae, sed scholae discimus) – mas é o programa que deve reger uma instituição católica educativa. É esse, como se dizia, o sentido mais completo da "cultura".
Há, porém, um segundo componente intrinsecamente conectado ao primeiro e é a estritamente intelectual, a instrução. Ela parte do extraordinário patrimônio cultural que em todas as disciplinas o cristianismo ofereceu ao longo dos séculos. É uma herança de arte, de ciência e de pensamento que se une intimamente à visão cristã espiritual e moral do homem, da mulher e da sociedade.
Nessa linha, a universidade católica deve estabelecer um debate constante com o horizonte cultural global e é isso que acontece há quase dois séculos de modo exemplar na Loyola University Chicago.
Penso, por exemplo, no diálogo com a ciência através das específicas faculdades de ciências e engenharia, recolhendo também os desafios que a tecnologia coloca à bioética ou que o pós-humanismo lança para a própria antropologia cristã. Penso também no mundo das disciplinas econômico-financeiras que exigem uma definição de marca humanista e não apenas meramente técnica.
Penso também no encontro com o mundo da arte nas suas novas gramáticas expressivas na arquitetura, na pintura ou escultura, na música, no cinema e na televisão. Penso na atenção que deve ser reservada à comunicação que adotou não só novos instrumentos, mas que também criou um ambiente planetário que envolve através da rede informática todo o globo terrestre.
Nessa obra intelectual, adquire um significado particular a presença do ensino da teologia católica. O seu específico estatuto epistemológico, de fato, pode debater com o das outras disciplinas culturais sem prevaricações, mas também sem timidez. O cristianismo, além disso, nos seus princípios ideais e morais fundadores é aberto ao diálogo com as diversas expressões espirituais, e, portanto, a universidade católica também se torna a sede do diálogo ecumênico e inter-religioso.
Essas e outras experiências de vocês constituem, para a Igreja universal, um grande modelo inspirador, principalmente para a inculturação da fé e, portanto, para "uma Igreja em saída", como afirma o Papa Francisco na Evangelii gaudium.
Na atual sociedade secularizada e nas grandes agregações metropolitanas anônimas, mais do que o ateísmo, domina hoje o apateísmo, ou seja, a apatia religiosa, a indiferença aos valores éticos e espirituais. A presença de uma comunidade universitária como a da Loyola pode implementar o programa queCristo tinha proposto aos seus discípulos no Discurso da Montanha, através de uma trilogia eficaz de imagens: "Vocês são o sal da terra... Vocês são a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte" (Mateus 5, 13-14).
Redução da maioridade é ilusão temporária
Uma mudança real passa pelo entendimento de que o modelo prisional aplicado há décadas simplesmente não funciona. O comentário é de Joseh Silva, jornalista, em artigo publicada por CartaCapital, 24-03-2014.
Eis o artigo.
A redução da maioridade penal, em discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, é a resposta para uma sociedade punitiva que tem como hábito é isolar pessoas "desagradáveis". É uma sociedade que vê as celas como espaços de ressocialização e solução para acabar com a violência no mundo. Crer que a reclusão, neste formato e estrutura que aí está, é a solução, revela o quão raso é o debate sobre Justiça. A cada passo seguimos para o caminho radical, desrespeitando conquistas de movimentos que lutam há décadas pela efetivação dos direitos humanos no País.
Antes de discutir os anos a mais que jovens devem passar na prisão, é necessário fazer uma profunda análise de conjuntura sobre em quais condições estão os presídios no País, sobre os ambientes em que jovens que cometem delitos são jogados e como eles são tratados. Uma reposta é evidente, no entanto: na prática, os presídios não têm como meta a ressocialização dos indivíduos, dadas as condições e características da Fundação Casa, que está longe de merecer este nome.
Deixar na margem e desconsiderar totalmente a discussão sobre os motivos que os adolescente e jovens da mesma classe social, mesmas regiões e basicamente com os mesmos atributos físicos e étnicos são condicionados a cometer delinquências é fechar os olhos para as causas e tomar medidas a partir dos efeitos colaterais.
Negar que as consequências de ações desastrosas, mal planejadas e executadas pelo poder público, que porcamente lida com as políticas de assistência social, sucateando dos Centros de Juventude, olhando para adolescentes sempre como problemáticos e não como sujeitos de direito, é tirar a responsabilidade de quem deveria dar todo o aparato para que o crime não esteja entre as primeiras opções de perspectiva de vida.
É necessária uma reforma séria e de grandes dimensões em conjunto com organizações, coletivos, indivíduos e governo para produzir mudanças que de fato possam impactar o cotidiano da sociedade. Medidas efetivamente preventivas e também de acolhimento são fundamentais para gerar transformações eficazes e essenciais.
Para uma mudança real, primeiramente é necessário admitir que o modelo prisional há décadas aplicado não está funcionando como deveria. A população carcerária só aumenta. Em cadeias e em prisões domiciliares temos mais de 700 mil pessoas, somando a terceira maior população carcerária do mundo. À frente do Brasil estão apenas a China e os Estados Unidos.
Se faz necessário, também, ter mais clareza sobre a diferença entre responsabilização e punição. A última é uma ação que acarreta ódio, revolta e faz com que o indivíduo, na maioria dos casos, não reflita sobre o que fez e sobre as consequências de seus atos. Entretanto, quando há uma tomada de consciência a partir de medidas que sejam restaurativas, o sujeito se responsabiliza pelo que fez. Isso não significa que está imune às medidas previstas em lei. A punição, assim, não é mais vista como o centro da resposta da sociedade ao desvio, mas como sequela.
É simplista se apegar a clichês do tipo: “já que são bons, leva para morar com você”. É por conta de pensamentos preguiçosos e reacionários como este que políticos, mídia e conservadores estão fechando o cerco e propondo uma medida que não tem o objetivo de resolver o problema, mas de implantar uma fantasia temporária de que está tudo sob controle.
A verdade é que o caminho viável já está proposto, mas não foi efetivado. OEstatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º, enfatiza a função da sociedade no trato da juventude: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Redução da maioridade penal pode se tornar realidade
Impulsionado pelo clamor popular, Congresso age por penas mais duras, apesar dos questionamentos sobre a legalidade e a eficácia da mudança na lei.
A reportagem é de Marcelo Pellegrini, publicada na Revista CartaCapital, 25-03-2015.
Maioridade Penal
A eleição do Congresso mais conservador desde a redemocratização está prestes a produzir seu primeiro resultado. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara pode votar nesta quarta-feira 25 a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.
A proposta está engavetada desde 1993 na CCJ, mas agora é considerada prioridade para a bancada da bala, que é formada por parlamentares ligados a forças de segurança pública e cresceu muito na última eleição. "O clamor popular pela aprovação é muito forte. Há um sentimento de impunidade muito forte e o governo não pode mais ficar negligenciando a questão", afirma o deputado federalMajor Olímpio (PDT-SP), favorável à PEC. O clamor popular a que Olímpio se refere não é mera figura de linguagem. Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes, de 2013, revelou que 92,7% dos brasileiros apoiam a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos. Isso pode fazer da aprovação da PEC 171/93uma chance para o Congresso recuperar sua popularidade em queda.
Antes mesmo de a crise política se instaurar em Brasília, a redução da maioridade penal já era defendida, durante a campanha eleitoral, por 13 dos 27 senadores eleitos em 2014. Entre eles, não figuram apenas parlamentares ligados a atividades policiais, mas também a dupla que formou a chapa presidencial do PSDB no ano passado, Aécio Neves (MG) e Aloysio Nunes Ferreira (SP). Em fevereiro de 2014, uma PEC de autoria de Aloysio que também baixava a maioridade penal para 16 anos foi barrada na CCJ do Senado por uma união de parlamentares progressistas.
A bancada da bala também conta com o apoio declarado de parlamentares evangélicos, como o deputado Marcos Feliciano (PSC-SP) deixou claro na reunião da CCJ na última quarta-feira 18. Caso seja aprovada na comissão, a PEC segue para a Comissão de Segurança Pública, dominada também pela bancada da bala, e depois é votada em dois turnos no plenário da Câmara, onde precisa de três quintos dos votos (308 votos) dos deputados. Depois, o texto segue para o Senado onde passa pelo mesmo rito processual. "Se aprovarmos na CCJ, não tenho dúvidas de que a matéria será rapidamente aprovada na comissão de Segurança e que sobrarão votos na votação em plenário", prevê o Major Olímpio, otimista.
Cláusula pétrea
Diante da pressão conservadora, órgãos oficiais e entidades de defesa dos direitos da criança e adolescente pressionam para que a CCJ da Câmara decida que a redução da maioridade é inconstitucional. O tema é polêmico e o debate, neste momento, é essencialmente jurídico.
Os direitos fundamentais, entre eles a inimputabilidade (não penalização) do menor, são considerados cláusula pétrea da Constituição. Ou seja, não podem ser alterados, a menos que se convoque uma Assembleia Constituinte. Por isso, para essas entidades qualquer alteração seria inconstitucional. Por outro lado, quem é a favor da redução defende que a inimputabilidade do menor é inalterável, mas a definição da idade do menor, não.
"A mudança da idade penal não é inconstitucional porque, no caso da redução da maioridade, não há abolição de direitos, mas sim uma modificação de conceito de menor de idade", afirma Adílson Dallari, especialista em Direito Político pelaUSP. Para o professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, a proposta é inconstitucional e, se aprovada, "poderá ser questionada ante o Supremo Tribunal Federal, que, por sua vez, deverá declará-la inconstitucional".
Mais prisão significa menos crime?
A interpretação jurídica de Serrano, que é colunista de CartaCapital, é compartilhada com a subprocuradora-geral da República Raquel Elias Ferreira Dodge. Para ela, há também uma má interpretação dos índices de violência cometidos por jovens. "Há uma sensação social de descontrole que é irreal. Os menores que cometem crimes violentos estão ou nas grandes periferias ou na rota do tráfico de drogas e são vítimas dessa realidade", diz. Atualmente, roubos e atividades relacionadas ao tráfico de drogas representam 38% e 27% dos atos infracionais, respectivamente, de acordo com o levantamento da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Crianças e do Adolescentes. Já os homicídios não chegam a 1% dos crimes cometidos entre jovens de 16 e 18 anos. Segundo a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância da ONU, dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida.
Ao mesmo tempo, não há comprovação de que a redução da maioridade penalcontribua para a redução da criminalidade. Do total de homicídios cometidos no Brasil nos últimos 20 anos, apenas 3% foram realizados por adolescentes. O número é ainda menor em 2013, quando apenas 0,5% dos homicídios foram causados por menores. Por outro lado, são os jovens (de 15 a 29 anos) as maiores vítimas da violência. Em 2012, entre os 56 mil homicídios em solo brasileiro, 30 mil eram jovens, em sua maioria negros e pobres.
Por isso, para a subprocuradora-geral da República, o remédio para essa situação não é a redução da idade penal, mas o endurecimento da pena para adultos que corrompem menores – como o Projeto de Lei 508/2015, do deputado Major Olímpio – e o investimento em políticas sociais para os jovens.
O deputado Luiz Couto (PT-PB), relator da PEC 171 na CCJ da Câmara, concorda. Em parecer contrário à proposta, Couto citou estudos psicológicos que mostram que o amadurecimento pleno se dá apenas aos 18 anos e disse que o problema reside em "um modelo de segurança pública envelhecido e apodrecido que só investe na repressão". Couto, ao lado da deputada Maria do Rosário (PT-RS), é a principal voz do governo na Câmara para barrar o andamento do projeto.
Apesar do parecer negativo na CCJ, nada indica que a proposta será rejeitada pela comissão. Se aprovada, a PEC colocará o Brasil entre os 54 países que optaram por reduzir a maioridade penal.
Entre todos, os resultados foram unânimes: ao contrário do esperado, não se registrou redução nas taxas violência. Como resultado, Espanha e Alemanha já voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos, segundo a Unicef. No entanto, países como os Estados Unidos seguem como exemplo do fracasso dessa política. Com penas maiores e mais severas previstas aos jovens entre 12 e 18 anos, o país assiste seus jovens matarem uma em cada dez pessoas vítimas de homicídios.
Por isso, entidades como a Unicef, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o Ministério Público Federal (MPF), a Anced (Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente), o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) já se manifestaram contrários ao projeto. "Uma nova lei não é capaz de resolver um problema complexo como esse, muito menos se for uma lei de caráter repressivo como é a PEC 171", analisa Vitor Alencar, secretário executivo da Anced. "Estamos investindo em repressão há 30 anos e o sentimento de impunidade e insegurança só aumentou", completa.
No Congresso, há mais de 60 projetos semelhantes à PEC 171, todos com o objetivo de reduzir a maioridade penal para 16, 14 ou até mesmo 12 anos. Por ser uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), se aprovada pelo Congresso, a medida não pode ser rejeitada pela presidência. No entanto, caso isso ocorra, entidades civis e o governo federal estudam entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal defendendo a inconstitucionalidade da proposta.
Crise do sistema penitenciário
No modelo atual, de maioridade fixada em 18 anos, os jovens infratores representam 8% do número total da população carcerária adulta (715.655, incluindo as prisões domiciliares) e padecem das mesmas mazelas que afeta o sistema prisional adulto. A Fundação Casa, entidade responsável pelos menores infratores em São Paulo, é exemplo do caos. Em maio, CartaCapital revelou com exclusividade que um terço das unidades da Fundação Casa tem superlotação. A situação é tão crítica que, em agosto passado, o Ministério Público denunciou o governo Geraldo Alckmin (PSDB) e a Fundação Casa por conta da superlotação. Em fevereiro deste ano, promotores de Justiça criticaram o fracasso de gestão do governo de São Paulo no atendimento a menores infratores e publicaram carta aberta intitulada "A falência da Fundação Casa".
Por conta de situações como a de São Paulo, em vez de passarem por um processo socioeducativo de correção, a esmagadora maioria dos menores infratores vive em reclusão e sem atividades psicoeducativas para a reintegração social. Àsuperlotação somam-se denúncias de maus tratos, que resultam em uma reincidência de cerca de 43% dos menores presos, de acordo com Conselho Nacional de Justiça. Para o coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Unicef no Brasil, Mário Volpi, seria necessário o Estado brasileiro pensar em alternativas viáveis para cuidar de seus jovens. "Se prender não é uma medida eficaz para que o jovem não volte a cometer infrações, resta pensar em soluções para que ele não entre no mundo do crime", diz.