A implantação de ações afirmativas pode passar a errônea ideia de que existe uma igualdade de condições entre pessoas independentemente da cor de pele. Mas com um pouco mais de atenção é possível perceber a existência de um preconceito algumas vezes explícito e outras vezes velado, e que ainda é comumente enfrentado por professores negros da rede de ensino pública e particular.
Uma tese do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (PPGL/UCPel) traz à tona análises de percepções que 16 docentes têm das suas experiências vivenciadas nos âmbitos institucional e social de Pelotas. A doutora Olga Pereira tem uma vida dedicada à temática. No Ensino Médio, a pesquisadora participou de diversos concursos lítero-históricos sobre a escravidão de negros no Brasil. No Mestrado em Política Social, realizado também na UCPel, pesquisou sobre a trajetória dos alunos afrodescendentes nos cursos de tecnologias do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IF-Sul).
Com a tese, orientada pelo professor Adail Sobral, tem a intenção de trazer um novo olhar sobre o preconceito racial existente na cidade de Pelotas, bem como demonstrar a reação destes docentes para quebrar este silêncio. Para compor o referencial teórico do trabalho, ela revisitou a história do papel do negro em momentos como a Revolução Farroupilha e o período Charqueadista de Pelotas. “Falar, pesquisar e refletir sobre o negro em nosso país remete a um ir e vir na história e, nessa trajetória entre o passado e o presente, permanecem diálogos, discursos que, quando revisitados, sempre trarão novas reflexões e inquietudes”, diz.
No trabalho, Olga também se utiliza das reflexões do filósofo Mikhail Bakhtin sobre exotopia, polifonia, alteridade e sujeito responsivo. Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Carlos Moore, Kabengele Munanga e Franz Fanon também são utilizados no referencial teórico para auxiliar a compreender como as identidades dos sujeitos de pesquisa se manifestam ou se fragmentam em relação ao meio social e à própria herança escravagista.
O corpo da pesquisa foi composto por 16 docentes negros (13 do sexo feminino e três do masculino) através de um questionário formado por dez questões, sendo quatro fechadas e relacionadas a dados cadastrais e as demais abertas. “As análises, a partir das respostas, dão sustentação à ideia de que o negro continua sendo discriminado tanto no que se refere à sua representatividade nas instituições de ensino como na sociedade pelotense”, explica.
Uma das respostas mostra como ainda é pouco comum um negro ser identificado como docente. “Há perguntas se és discente, bolsista ou técnica-administrativa. Ressalto que não considero estas funções depreciativas; apenas cito que a docência não aparece como um lugar a ser ocupado”, revela um dos participantes da pesquisa.
Outro tipo de violência comumente enfrentada pode ser vista na resposta de outro docente. “Alguns pais no primeiro dia de aula, questionavam: esta é professora de meu filho?”. Ainda outro participante relatou: “Outro fator é que temos que provar constantemente que somos capazes de realizar nossas atividades como qualquer outra pessoa que tenha a mesma formação. Percebe-se, na maioria das vezes, uma certa dúvida sobre nossa competência”, disse. Dos entrevistados, 69% afirmaram ter sido vítimas ou testemunhas de preconceito pela cor.
Preconceito em Pelotas
Algumas das considerações que apareceram sobre a questão “Como você descreveria o preconceito racial na cidade de Pelotas?” demonstram que o sentimento é de que Pelotas continua “sendo uma cidade muito preconceituosa em vários aspectos”, “um preconceito, velado, mas que interfere na vida dos negros que aqui residem”, “é barrado no acesso a bons empregos; a cargos de chefia; é seguido nas lojas como se fosse roubar”, “em Pelotas, na grande maioria das vezes, se vale pelo que se veste e não pelo que se é (intelectualmente falando)”.
Para a doutora, não é possível desconsiderar a dívida histórica que o Brasil tem para com os negros desde o período pré-colonial nem fingir que a escola não tenha sido a primeira instituição que alimentou uma versão deturpada desses atores. “A escola continua, sim, sendo o espaço onde o negro percebe a primeira sensação de menosprezo e exclusão. Paira um sentimento de estranheza pelo diferente que, de maneira sutil ou exasperada, revela segregações pela cor”, avaliou.
A quinta questão abordou a existência de tratamento preconceituoso com relação a docentes negros no nível institucional. 69% responderam que de alguma forma houve preconceito percebido. Algumas das respostas que demonstraram isso relatam “existência de um racismo institucional quanto aos docentes com relação às temáticas negras”, “é isto aí, este é o espaço a ti concedido. Negro pode ser destaque em Escola de Samba, futebol, bobo da corte”, “Esporadicamente as pessoas, colegas, fazem alguns comentários preconceituosos, mostrando que essa postura está enraizada neles”.
Ação
De acordo com Olga, o grande problema ao se deparar com o racismo é perceber a resistência das pessoas em torno da questão. Ela destaca algumas constatações feitas a partir das análises que merecem atenção e reflexão da sociedade, como: o negro, independente de ser ou não professor, permanece enfrentando as mais diversas formas de racismo; a escola ainda simboliza o espaço onde as manifestações de menosprezo à cor e à intelectualidade do negro se reverberam a todo instante; a cidade de Pelotas ainda presta um tratamento diferenciado a negros e negras.
Outros pontos destacados também mostram que, no imaginário coletivo de algumas Instituições de Ensino da cidade de Pelotas, ainda é resistente a imagem de um negro ou negra ocupando algum cargo de gestão e a dúvida sobre a intelectualidade dos docentes negros ainda é muito recorrente nos espaços escolares. “Os relatos deixados pelos docentes negros e negras das Instituições de Ensino da cidade de Pelotas nos leva a compreender que por trás de suas lutas silenciosas em busca de igualdade e justiça, existe uma longa caminhada do povo negro ainda desconhecida pelos não-negros”, finaliza.